sábado, 6 de dezembro de 2014

Movo


Não sei dizer se é sentimento ou simplesmente desejo. Não sei e não me importo. Eu te olho bem de perto, invado a nuca dos teus olhos atrás do que há nos fundos das ideias. Vejo a mim, sentado no pico de uma montanha, conformado com o fato de não saber mais como descer. Lá fico, e você continua contando histórias sobre mim para seus amigos. Todos no chão, eu lá em cima.

Dentro de você eu fico onde bem não me entendo. Se sou careta ou simplesmente anêmico de vivências, não sei - continuo não me importando. Estou dentro. Daqui não saio, porque daqui você não me tira. Às vezes vem me visitar, com voz macia e desprezo. Na inércia da sua insegurança, vou e volto sem me mexer. Dentro, não preciso me mover. Lá me finco, na zona de conforto alheia.

Toda noite você vem pra apagar a lua e me dizer boa noite. Toda manhã você reaparece pra ver o nascer do só. Boceja comigo, respira minha preguiça e abre as janelas das pernas para que eu tome café. A refeição mais importante do dia. Depois sai, vai cuidar de si e me esquece em cima da mesa, junto das chaves. Tranca-se do lado de fora e depois grita meu nome pra que te deixe entrar mais uma vez. Não me movo. Não preciso me mover.

E assim passamos o tempo. Eu aí, você também. Não saio, sou prisioneiro voluntário. Gosto de pertencer, por isso te deixo não me deixar. Faço questão de ir te encontrar enquanto sonho, já que o corpo desperto não me quer por perto.

Ainda me procuro nas tuas conversas, mas só me encontro no teu olhar. É através dele que eu vejo o mundo sem graça, sem espaço, sem picos, só abismos.

Não me movo. Não morro. Moro no morro. Morro de novo. E você sempre vem me buscar na hora certa, quando o relógio corre pra trás e resgata um passado presente. Retrocede os ponteiros com as pontas dos dedos úmidas e pinta meus lábios com a cor do silêncio. Faltam-me palavras então eu sorrio. Porque assim digo que está bom e que não precisa mudar. Permaneço mudo.

E quando movo, movo apenas um dedo - aquele que desenha teu rosto. Enquanto você não vem, eu também não vou. Espero pacientemente pela ligação que mais uma vez nos une. Esqueço que não estou em mim, você me diz pra à vontade que a casa no seu peito também é minha, que essa cordilheira escondida por debaixo da pele é como se fosse minha. Fico nu nos seus pensamentos, abro a geladeira e vasculho as prateleiras atrás dos medos que você conserva há anos. Escolho qualquer um, lambuzo-me dele e finjo que está tudo bem. Você nem percebe que eu mexi em algo. Diz que não sente falta de nada, só de mim.

Não me comovo. Não preciso me comover.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Nele

Joshua nasceu por algum motivo. Ou simplesmente pela falta de motivos para não nascer. Nasceu e o primeiro gemido foi seu, apenas seu. No colo morno da mãe, mamou vida e soluçou fartura. Criança forte que aprendeu com o pai a ter medo de não ter coragem. Filho único, pois era ele, Joshua, só dele mesmo. Seus irmãos mais velhos não o alcançavam. Estava ele sempre no topo das próprias ideias, calado enquanto conversava com qualquer voz dentro da cabeça.

Joshua cresceu, e crescer dói tanto quando nascer. Homem, gay, morador de periferia, filho de mãe branca vítima de machismo e falta de amor; filho de pai negro, machista, humilde e alcoólatra. Fruto da falta de carinho conjugal. Educado pelas brigas e salvo pelo travesseiro que abafava os gritos e ofensas. Joshua tinha pra si o que poderia ter de melhor: si mesmo. O que vinha de fora (nem sempre) era bem-vindo, mas não acalantava as muitas dores que insistiam em feri-lo.

Homem, gay, pobre, graduado, situado de várias formas no mundo. Perdido em todos os sentidos quando visto pelos olhos dos outros. Sentido por ter perdido parte de sua juventude numa sexualidade sem referências que fossem compatíveis com os desejos que tiravam o sono e suavam a pele. Por anos sentiu-se desconfortável com o toque, com o querer, com o cheiro das outras - caçando o cheiro dos outros. Mas confortável na consciência da própria existência. Assim ele se debruçava no emaranhado de curvas que fazia seus lençóis solitários. Com tamanho para dois.  Joshua e só Joshua.

Joshua nasceu assim. Só dele. Só nele.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Em cantos

Esparramou-se pelo breu como farelos no infinito. Preguiçosamente, abriu caminhos nunca antes caminhados - sem rumo, esquinas, curvas ou saídas. Em cantos, deixou acumular-se a poeira luminosa que até hoje brilha atrasada. Um tempo totalmente relativo que vai e volta, roda e dança no vórtex de si mesmo. Foi assim que nasci, parindo-me na escuridão. Com o encanto de quem se criou antes mesmo de se criar e crer na vida.

Arrastou-se no sopro que veio dos confins daquela goela seca, silenciosa, muda devido à anemia de palavras, de confissões, choros, gritos e relatos. Muda por ter acabado de se fazer semente no universo a ser arado. Desta cilindro vocálico nasceu o silêncio. Absoluto, em eterno luto, lutando para não ser notado e sim ouvido. No vácuo dos orifícios que, feito cavernas só ecoam, o silêncio achou refúgio. Anulou-se para então se fazer onipresente - agora, em todos e todas que ainda estão por vir. Por existir.

Do nada surgiu o nada que seria uma partícula daquilo que chamamos de "todo". Dessa enorme colcha de retalhos, os retratos do espaço nunca ficaram pregados nas paredes do infinito. Espelharam-se. Refletiram-se os encantos nos cantos uns dos outros e assim propagaram a si próprios, unicamente idênticos, fazendo dos muitos o nada reconhecível. Eu estava ali, mas não me vi.

Vi-nos nos outros.

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Reflexão:

E eu penso: não consigo medir o quanto de espaço há dentro de mim, da minha mente, do meu querer, da minha consciência.

Eu tento imaginar paredes, muros, algum tipo de estrutura que me diga "começa aqui e vai até ali", mas nada vejo. É um breu e eu - "brEU".

Percebo então que o universo se faz em mim sempre que me olho e me sinto pequeno diante do que sei que sou, mesmo sem saber até onde sou. Sinto como se existisse o tudo e o nada num mesmo momento no qual ambos anulam-se e criam-se de acordo com as vontades e desejos.

E essas vontades e desejos são como estrelas... Elas nascem de uma explosão, brilham intensamente e, em seguida, morrem. Ainda assim, muitas vezes continuamos a vê-las por anos, achando que ainda estão vivas. Muitos desejos são assim... A gente perde a essência, mas continua acreditando que ainda quer como sempre quis.

Nós, eu você, eles, todxs, percebemos tarde demais que o brilho se extinguiu há tempos... Que desejo nasce pra morrer, pra ser queimado e não pra permanecer intacto.

Vivemos, internamente, a cosmogonia de nós mesmos.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Grão preto

Aperto bem os olhos e as mãos. Aguardo o impacto no peito, bem onde guardo a mim. Nada acontece. Nenhum som ou pressão. Respiro pela boca num ritmo só meu e tento imaginar, na escuridão da minha mente de janelas fechadas, a ruína dos castelos de areia erguidos para além da visão. Pulo os muros da sobriedade e então enterro os pés nas sobras do mar. Assim finco.

Esse meio tempo, meio corrido, meio escorrido, parte em vários o homem que sou. Um grão de mim que grita pela liberdade plena e o desejo ácido, outro que se esconde na orla de gente, vagando feito poeira pelos olhos dispersos e aquele que passa por último na goela da ampulheta - sentindo a vida mudar de lado sem nem se quer avisar. O homem construído por outros homens, desconstruído pelo homem que é e reconhecido por outros homens despedaçados. Unidos pela falta de liga, pela vontade de se fazer parte do punhado sem que alguém os separe. Grão de feijão escolhido a dedo para morrer com os seus diferentes no paladar daqueles que os têm. 

Continuam apertados os olhos. As quinas do mundo perdem suas linhas, os limites do espaço viram pó também. Tudo se esparrama na mesma mancha amorfa. Acomodo-me no nas prateleiras do todo completamente descolocado - e sem nenhuma palavra, nenhum som. Fico ali, sozinho, numa paz particular, como se fosse um ponto final nas linhas tortas escritas por deus ou quem quer que escreva. 

Intangível. Ninguém consegue me tirar desse coma. Sinto vontade de gargalhar todas as vezes em que aquelas mesmas mãos anêmicas tentam me puxar para a existência e comer minha essência. Resisto. Querem mais de mim do que eu mesmo poderia me dar. Ficam esmolando atenção, acenos e toques. Não me alcançam e isso é incrível. 

Não há luz no fim do túnel. Há mais túnel e mais profundidade. Há âmago, ego, fundo do poço onde posso descansar e saber que abaixo de mim não existe nada. Absolutamente nada. Conforto em deitar na única cama em que o sono pode ser pesado. Coberto de pesadelos. 

Fim do túnel é sempre o recomeço em mim, uma jornada inconsciente pelo caminho o qual a razão não consegue iluminar e nem o amor alcançar. A estrada dos lobos solitários, sempre famintos, enxergando nas trevas a própria fome a desfilar. Segue adiante, porque voltar não adianta mais. 

Não adianta um grão. 

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Nuvem de sono

- O que foi? De repente você ficou sério.
- Nada, eu tenho dessas coisas...
- Não foi bom? Você estava sorrindo tanto, achei que era de prazer.
- Mas era prazer, sim. É só que... Às vezes custo a acreditar que posso me sentir tão bem assim.
- Pois acredite. É real, eu sou real, nós somos. Os beijos, teus olhos perseguindo os meus... Tudo real.
- Bom ouvir isso.
- Mas agora você está distante. Diferente. Tem uma nuvem sobre seu rosto.
- Acho que vai chover.
- O quê? Por que essa lágrima agora? Fale a verdade, o que está acontecendo?
- Nada, é só chuva... Precisa escorrer por mim... Precisa me molhar... É vida, só isso.
- Espero que não esteja chateado mesmo. Sério, encoste a cabeça aqui...
- Posso ficar só em silêncio?
- Sim... Mas por quê?
- Porque eu amo dormir com o barulho da chuva.

Corpo meu

Calor da palma da mão sobrevoando a pele, sem tocar o solo coberto pelos pelos do couro. Negaram-me o endereço do meu corpo, mas eu o descobri vagando por outros corpos. Encontrei o caminho até mim e decidi não voltar.

O toque. Trêmulo e inseguro. Suavemente, espalhava por minhas pernas o desejo puro, hidratando cada poro sedento. Garoava no pico dos meus joelhos e o barulho do chuvisco era de enfeitiçar.

Foram anos e mais anos ouvindo péssimas histórias sobre meu corpo. Criaram fábulas covardes e monstruosas para afastar a vontade de me comer - pelo menos uma vez na vida - sem sentir culpa fajuta e passageira. Ela vai. O desejo finca.

Hoje eu me possuo. Invado minhas partes com a intensidade que quiser. Tem dias que sou só saudades e corro para o abraço solitários dos meus próprios braços. Em outros, apenas acaricio a barriga como se algo ali dentro existisse algo além de mim. Esqueço do gênero, esqueço do peso e apenas me deito. Eu me sinto. Deixo que floresçam o mangue de barba, raspo o teto das ideias, desenho sobre os ossos e me perco quando encontro a nascente da pubis, local onde minha consciência morre a cada mergulho. Eu não sei de nadar.

Assim vou, assim eu fui, assim eu me consumo. E sempre que (im)possível, sumo.

sábado, 11 de outubro de 2014

O álcool nunca foi meu inimigo

Pelo contrário, sem ele eu não seria - de fato - eu. Com a ajuda dele, reaprendi a chorar. Encontrei, forçosamente, o valor em chorar. Tive crises que jamais seriam aceitas pela razão a bom grado. Caí de uma forma vergonhosa e - pasme - levantei. O álcool nunca foi meu inimigo.

Após uma reunião amistosa entre amigos e desconhecidos, pude desfrutar de um mundo atípico. Vi gente triste enchendo a cara para se tornar mais alegre (eu, por exemplo); gente bem resolvida que não reflete sobre a vida, apenas vive; gente que eu desejei nos momentos de loucura; gente que eu quis por querer - e por inteiro; gente.

E nada, absolutamente nada, conectava-se comigo. A luta constante por manter em mim o mínimo de racionalidade (a moeda de troca do respeito), custava - e custa - muito. Muito mesmo. Viver num mundo que não te aceita e que te odeia é como ter um pesadelo. Você vive a ilusão da sua realidade. Sofre, acorda soluçando e continua sem solução. Não há sentido. Há dor. E a dor nunca fará sentido.

O que eu queria hoje?

Não ser. Só ter.

domingo, 28 de setembro de 2014

Busca

Escrevo em busca de silêncio. Silêncio dentro do peito, no canto traseiro dos pensamentos. Silêncio absoluto. Transcrevo a voz muda que fala por mim quando eu canso de brincar de "eu" e não quero ser mais. Tento , então, anular-me a qualquer custo.

Bebo, fumo, escondo-me atrás da cortina da fumaça, mas meus pés sempre ficam visíveis. Escrevo. Frase após frase, palavra não dita seguida de palavra não dita, é difícil perceber que tudo se trata de silêncio? Só me deixe aqui, quieto com minha tristeza que sempre tem a palavra na ponta da língua.

Busco a música quando não ouço "eu te amo". É assim que me preencho com as melhores declarações e as piores conversas francas - daquelas que rasgam o peito com um simples abraço de "obrigado por sua amizade". Escuto o que os outros não aguentaram e cantaram. Absorvo demais (e talvez isso seja ruim) cada verso e cada acorde como se estivesse faminto. Falta na barriga da minha essência um bocado de coisas que não descem pela boca e sequer enfeitam o prato. É uma mordida de desejo que umedece os lábios, mas não traz colherada alguma. É querer por querer e pronto.

São buscas equivalentes a fugas. "Oi, como você está?", "Indo, e você?". Indo em busca de qualquer coisa que me distraia ou que me traga, numa puxada só, algo que queime e gaste. Uma passagem que me force a correr pelas veias do outro livremente. Um mal necessário. Talvez eu também busque ser o mal do outro, aquele drama maravilhoso que faz sofrer, mas tira do cotidiano/trabalho/contas/responsabilidades a relevância roubada. Aquele bom e velho drama que desmarca reuniões, não responde e-mail, sai correndo pra comprar a janta e tira o vinho da merda da geladeira - mania péssima de guardarem vinho na geladeira.

Busca. O anzol que a gente sonha em fisgar.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Valsa perdida



O par faltou. Ausentou-se da dança e do meu corpo. Fugiu da minha mão e a deixou girando sozinha no salão durante toda a valsa. Vagando, percebi só a mim, largado num facho de luz misericordiosa que ria satisfeita da minha solidão desengonçada.

O par de pés não se entendia. Entediavam-se ambos os cascos naquele chão liso de madeira morta. Manchado com o suor dos que haviam se encontrado na melodia. Dois para cá, dois para lá. Eu, ali. Mas me recusava a sair e deixar de ser o dançarino perdido. Eu fiquei sem esperança. Fiquei por teimosia, balançando apenas as poucas moedas que ainda sobravam no bolso e algumas lembranças que guizavam dentro do peito.

Pouco a pouco foi tomando meu ser aquela paz fúnebre dos que morrem em vida. Seco por fora, encharcado por dentro, ainda em movimento - tal qual os astros na escuridão do universo. Assim fui, embalado pelo doce cheiro de cigarros e perfumes girando em torno da minha órbita melancólica. Ninguém me via, mas de longe sabiam que o brilho ali presente entre meus olhos entreabertos anunciava o funeral distante de algo que um dia cintilou excessivamente. Como estrela, gastou-se em silêncio, estático, o iluminar de um querer sem fim. E que extinguiu-se em si - como tudo.

Era incapaz de lembrar dos nomes de tantos nomes que passaram por minha memória. Entretanto e tantos, ficava o toque como marca na pele. A pressão dos dedos e dos braços entre abraços, o peso do pulso no ombro e um leve desenhar de rosto com as costas da palma.

Durante a valsa perdida dos meus dias, senti - por insistência da vida contrariada - os outros a fundirem-se à minha silhueta.

E naquele salão imenso, era eu, o par de um, a se bastar. Vivendo a música das minhas verdades.

domingo, 7 de setembro de 2014

O primeiro dos últimos



Hoje foi o primeiro dia vivendo juntos. Agora ele dorme ao meu lado, exausto. Foram muitas horas dando cara de "lar" aos cômodos. Há poucas semanas eu não seria capaz de dizer que a mudança fosse acontecer. Nosso primeiro dia morando juntos...


Logo cedo

Dormi demais e cheguei atrasado na estação de trem. Ele não me olhava. Mantinha sua visão presa aos ponteiros do relógio. Sim, eu já havia entendo o recado: "não diga nada, apenas ande e prossiga como se tudo estivesse acontecendo de acordo com o planejado". Mas eu queria falar. Estava morrendo de vontade de conversar com ele. Então não me aguentei e soltei o verbo... Ele sorriu de leve, amanhecendo aos poucos diante de mim e quando reparamos o dia já era meio. Metade para cada um.

Enquanto o mundo passava feito filme pela janela do trem, minhas mãos cochilavam nas dele. Estávamos partindo para um novo lugar afastado de todo o passado. Não se tratava de fuga. Pelo contrário, queríamos encontrar algo verdadeiro. Algo que não tirasse de nós o mais básico dos direitos: o de ser. Depois de algumas boas horas, para o trem e correm as batidas dentro do peito. Chegamos.

Ela era tímida, coberta por folhas secas e pintada de branco. Um branco cansado de ser tão pálido e que tentava a todo custo parecer cinza. Foi paixão instantânea. Eu vi naquela casa um véu de silêncio que cobria de suavemente tudo o que buscamos juntos durante anos. Silêncio para que nossas juras fossem sussurradas.

A tarde chegava com seu laranja inconfundível. Encostei minha cabeça no ombro dele e baixei a guarde. Fiquei totalmente vulnerável. Nada mais me incomodava. Ele desenhava meu rosto com a ponta dos dedos e assoviava "Sea of Love". Olhávamos para o nada -  a utopia de nossas próprias existências - sem esperança alguma. Era tão bom... Era liberdade.

Do alto das sobrancelhas eu via o céu escuro dos seus cabelos a anoitecer minha ansiedade. Ali ficamos, deitados... Sem uma simples palavra... Eu o amo mais do que ele poderia imaginar.

O início do desconhecido. A cama sendo arrumada pelo desejo - cuidadosamente preparada para acordar bagunçada. O carinho tomando conta da sala, deixando as almofadas entre o sofá, já imaginando a chegada do par de corpos friorentos. E o amor. O amor não saiu de nós para ajudar na arrumação. Ele ficou no seu canto e aos poucos tomaria conta dos cheiros, cores, texturas, sons e o que mais estivesse ao seu alcance.

A vida não era nem de longe perfeita. Ela apenas se apresentava bem naquele momento. Como de costume, recebeu-nos de braços abertos dando as boas-vindas aos novos moradores. A vida, nosso lar. A casa que escolhemos e nos acolheu.

O primeiro dia para nós, os dois últimos.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Pés descalços na terra

A barra de seu vestido não chegava ao solo. Mas suas solas sim.

Olhava para baixo apreciando o par de pés descalços na terra, enraizando-se naquela superfície gelada e rígida. Tal qual olhar de mãe. Ambas se observavam, garota e mãe terra. Semente e semeadora. 

Ela não precisava mais correr. Havia alcançado a si mesma na crosta que acalentava as erupções em seu peito. O amor em magma escorria lentamente e não mais se petrificava como as palavras de adeus que nunca jorraram da boca do outro. Ela e a terra se entendiam silenciosamente. Tremiam juntas.  

Nenhum passo. Fincada, ficou. Bateu o pé esquerdo e disse para ninguém: sortuda são as árvores que caminham só em pensamento mesmo.  

Um belo dia

Um belo dia para incendiar a própria casa e ver tudo se desintegrar. Paredes, móveis, roupas, plantas, cadernos do primário, documentos importantes, fotos, fatos e lembranças.

Um belo dia para destruir. Para libertar o desejo pelo fim prematuro. Escutar a madeira estalando e se contorcendo, passiva.

Um belo dia para sentar diante do enorme paquiderme de concreto, indefeso e solitário. Eu, ali, observando tudo ruir, em silêncio absoluto. Captando apenas a essência flamejante do momento único. De longe, um belo dia.

Um belo dia para apreciar o telefone mudo a derreter. E com ele todas as vozes que insistiram durante anos em me tirar o sossego. Suas teclas virando uma massa uniforme de nada. Os números deixando de ter razão, coerência e significado. Sem toques por hoje. Hoje que, diga-se de passagem, não passa de um belo dia.

Um belo dia para espalhar o cheiro de fumaça no bairro. As pessoas saindo de suas respectivas moradias para observar a minha a partir. Choram, berram, tentam me levantar pelos braços, mas eu estou pesando toneladas. O alívio me fez ganhar todo o peso que antes pertencia apenas ao mundo. E meus ombros agora podem doer por conta própria. Encerrei meu papel de Atlas enquanto esse belo dia se recusa a acabar.

Um belo dia para acender o cigarro nas brasas do meu passado. Fumando vagarosamente a despedida forçosa dos anos mais escuros que já tive. E nada pode me abalar, afinal, as estruturas que me mantiveram por aqui agora não são nada mais do que entulho. Sim, um belo dia para aposentar o endereço.

Um belo dia pra perder o refúgio. Abrir mão do lar e do retorno. Mudar-se para o abandono. Rua - que tanto me ensinou e foi, por várias vezes, minha cama, meu sofá e meu quarto. Ela sim estará sempre ali para mim e para o meu par de tênis sujos. Um belo dia para se contentar apenas com a roupa do corpo e a calçada dos outros.

Um belo dia para lançar à fogueira muitas músicas que já não me lembro mais. Versos, refrões, acordes, raiva, ódio, raiva e ódio. As labaredas se tornam azuis. Fogo frio, que arde mais do que gelo seco. Lá estão todas as letras que tanto cantei até irritar os calos das cordas vocálicas. Um belo dia para ficar calado. E só observar.

Um belo dia, serei eu a queimar. Mas por hoje é só.

Basta.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Conversas mudas

Estava fumando e olhando para o nada, aqui da janela do quarto. Aproximei, sem querer, o cigarro dos ouvidos e então escutei aquele som de algo queimando. Mas era baixo, discreto, lento... Confortável e incessante.

Batizei para mim mesmo de "barulho da morte". Pode soar piegas, "barulho da morte", mas assim como as conchas guardam um bocejo do mar, esse som me lembrou o assoviar da finitude. Acabou o barulho quando acabou o cigarro.

Samael amaldiçoou a terra - e toda a vida nela - com o barulho. Ele, que no paraíso era maestro, disse que nunca o humano ia conseguir ficar totalmente em silêncio. Sempre haveria um ruído. Só a morte calaria a vida.

Enfim... O cigarro se cala e nos cala.

Ria & Lia



Minha família estava contente em me ver. O movimento que faziam com os talheres indicava certa empolgação e, ao mesmo tempo, desconforto. Pai girava o garfo vagarosamente como o ponteiro de um relógio prestes a parar. Dois giros para frente, três para trás, uma pausa. Nada. Nada fluía.

Mãe sorria com o canto da boca desocupado de comida. Reservado para a família. Aquele que sempre ri. Ela ria. As mãos cheiravam à comida que comíamos. Prova de amor é deixar seu cheiro na comida dos outros. Já minha irmã fiscalizava-me com seu silêncio. Mastigava o alimento tenro com curiosidade, esperando de mim a primeira frase. Sou convidado dos meus próprios pais. Foi um ano difícil para eles. Para mim, não foi um ano. Uma vida, talvez. Uma vida difícil da qual eu não posso me desligar. Porque sou assim. "Doente", eles dizem para os demais parentes. Sou doente por ser distante.

Ela, a mãe, perguntou como tinha sido a viagem. Expliquei que a maior parte do tempo estive dormindo (mentira) e perdi muito da paisagem linda que contorna os trilhos do trem. Elizabete não se conformou com a resposta. Achou um absurdo alguém dormir tanto como eu e ainda assim ter um trabalho, uma casa e - pasme - um namorado (mentira). Houve um namorado que não amei. Nem quis amar. Apenas fiz o que precisava ser feito. Tudo pelo fim das cobranças - da carne, principalmente.

Meu pai observava o bife morto diante de mim. Eu não o comia. Apenas bebi taças e taças de vinho e eles permitiam com gosto. Havia a ilusão de que a embriaguez invocaria alguma reação da minha parte naquela reunião e então um diálogo mais dinâmico nos validaria como familiares amorosos. O álcool libera o que a razão tenta esconder enquanto a lucidez está acesa. O álcool é quem apaga as luzes. Ele é sempre o primeiro a se despir e deitar. A razão - a se entregar.

Os ponteiros continuavam estagnados. Foi então que ele quis saber sobre meus planos de trabalho e expectativas para os próximos meses. Eu lhe expliquei que escrever era um processo aleatório demais e por isso me encantara tanto. Usei essa palavra, "encantara", no intuito de ser positivo, apenas. Disse que não dependia do tempo dos outros, afinal, se assim fosse, seria a escrita dos outros e não a minha. Elizabebte perguntou como meus chefes suportavam essa pobreza de argumento. Ignorei-a e então prossegui dizendo que cada linha escrita somente com a preocupação em evitar suicídio valia mais do que páginas e mais páginas de um plano falsamente elaborado para direcionar a narrativa rumo ao clímax e condenar o suicídio. Que o "nada", ao meu ver, o oco, o vácuo, era justamente o que as pessoas precisavam conhecer mais. Ele me olhou como quando ergueu meu corpo gelado do chão do banheiro e então abandonou o talher rodopiante. Cruzou os dedos e questionou sobre o que eu estava escrevendo. Mais um gole. Justamente sobre o "nada". Estou escrevendo sobre o nada, pai. Minha mãe ria freneticamente. Elizabete mudara de cor, era rubra agora. De repente senti a mão de meu pai aquecendo a pele do meu rosto tal qual o filete de sangue que pela mesma mão se espalhou pela mesma face. Pelo mesmo pai. O mesmo que salva e condena.

EufoRia

Eles me viam como um farsante patológico. Alguém que jamais dera real valor para tudo o que haviam conquistado. Alguém que matava o sol por não dar bom dia. Aquele que ignorava a beleza da lua, mas gostava da noite porque ela tirava a tudo e a todos ao seu redor. Era finalmente só "seu redor" - e de mais ninguém. Repudiavam a maneira como tratava seus convidados. A indiferença era pior do que sal na ferida - ou na sobremesa. Secava todas as amizades frutíferas de anos. E eu tive que fingir. Eu fingia demais. Porém, bastava uma pausa para ir até o banheiro e tudo voltava à concordância. A sensação de desapego, o zunido no fundo da cabeça, a falta de vontade se espreguiçando... o Sono. Hipnos. Morfeu é para os fracos. Sempre o sono. Nunca sonho.

Depois do tapa no rosto, minha mãe finalmente se libertou. Sua gargalhada era ouvida por todos os cantos da casa. Sem entender, meu pai - que esperava ser recriminado - voltou ao seu devido lugar e passou a saborear um vistoso pedaço de bolo com cobertura de goiabada. Elizabete agora se sentia tranquila, vingada e a mais amada. Bem alimentada. Eu não sentia muito além do calor que ainda repousava na bochecha. Não queria estar ali. Eu queria estar perto, mas dormindo. Só assim, longe de verdade.

Mãe perguntou se eu estava bem mesmo. O que estava acontecendo e o que era esse assunto sobre o "nada". Ela temia muito a morte e quando eu disse essa palavra, meu pai se viu obrigado a defender a paz e honra da família. Paladino. Ele fez pelo meu bem, explicou minha mãe. Disse que os anos na terapia e os remédios que tomei deveriam ter feito alguma melhoria no "tratamento", mas que as recaídas faziam parte do processo. Pai pediu desculpas no dia seguinte e mostrou-se interessado em ler sobre o vazio que eu traduzia há meses. Elizabebte não queria mais nada. Retirou-se da mesa fadigada de prazer.

Um dia comum. O vento tímido, as cortinas oferecidas... Sala sombreada e o vasto jardim exibindo sua vigorosidade. Quartos e mais quartos, corredores perdidos e minha janela. Passei horas emoldurado por ela, observando a morte natural de tudo. A finitude das nuvens, o brilho intenso de duvidoso de Spica, os pássaros imortais que estão livres do saber sobre a morte e minha família. Pai tímido e mãe imortal tomando conta da grama e minha irmã tomando sol. A luz branca - e não amarelada - que anuncia a indiferença do astro rei. Secava a pele da irmã oferecida, feliz e extrovertida. Todos morriam da janela pra fora. E só os mortos podem falar sobre o decesso. Resolvi me juntar a eles.

Todos ficaram surpresos. No mesmo instante, o casal correu em minha direção com algumas ferramentas em mãos e Elizabete apenas abaixava as lentes escuras dos óculos para crer no que estava vendo. Ela me lia como ninguém. Ela sabia o que havia dentro de mim e se deliciava com isso.

Cortei algumas rosas (morte), joguei adubo com cascas de frutas no solo (morte) e então enfiei alguns brotos de árvores frutíferas (haverá morte). Pai apoiava as mãos no meu ombro e pitava seu cigarro (morte). Mãe assoviava a 7ª de Beethoven (morto). Tudo parecia conspirar para que aquele momento valesse um retrato (morto) ou confissões entusiasmadas para os amigos tão acostumados com a decadência dos lares de classe média (morta). Tão acostumados com a moral sempre feita de vítima (morta).

Depois de todo o constrangimento, tive a chance de me afastar da casa e passar um tempo sozinho. Solidão. Era o fim da euforia. E o começo da minha...

MelancoLia

Sentei à mesa e olhei para aqueles rostos. Todos marcados por uma falsa expressão de companheirismo. Olhei para meu pai e vi sua ruína, seu fraqueza reluzente que escondia a sombra de melancolia. Mas a deixava escapar enquanto seus dedos dançavam com um talher patético. Era um jogo óbvio de postura na qual a pessoa se firma no movimento repetitivo, encenando ter algum ponto de concentração e propósito. Tentando passar não a imagem dos ponteiros retardados, mas a de um cronômetro a calcular o tempo de explosão da bomba. Ele, sem falar, estourava meus ouvidos com aquele silêncio forçado. Emudecido, cada músculo de seu corpo rangia feito móvel velho. Isso estava me matando. Não suporto que alguém tente fazer uso do silêncio sem nem ao menos saber o que ele de fato é. Silêncio é morte. Luto. Finitude da vontade. E meu pai estava morrendo - não de verdade - mas de vontade de falar. Calou-se apenas para ensaiar a melhor hora de atingir o ápice de sua paternidade: a violência educadora. Ele cedeu à fúria quando me ouviu falar sobre o "nada". A razão é bem clara. Quando alguém não sabe tratar de algum assunto ou situação, perde a capacidade de imaginar, volta ao seu estado bestial e então faz uso da brutalidade - como se esta fosse capaz de expressar sua ideia. E, de fato, transmitiu: euforia.

Minha mãe era uma mulher já morta. Sua vida não existia sem a do meu pai. Logo, sua vida não era só sua -e assim posso dizer sem menor pêsame que viva ela não estava mais. Há anos, inclusive. Seu corpo sim, este era só problema seu. Meu pai fazia questão de enfatizar isso. A vaidade, maldição que escraviza os frágeis, era o preço que ela deveria pagar por ter se casado. Por ter nascido mulher. A mulher, sempre o outro, nunca ela. Nos meus primeiros anos de vida eu me senti como mulher. Até os 7 eu me sentia mulher - o outro dentro do mundo. Confinado junto de minhas vontades, sempre me achando fraco e incapaz. Foi me sentindo assim que eu finalmente encontrei a única arma contra todas as investidas grotescas do mundo: eu me encontrei. E lá fiquei sozinho comigo. Inalcançável. Mas minha mãe, não. Ela não se cansava de ser perseguida pelos anseios estúpidos do meu pai. Vendeu sua alma à soberba e então assim seguiu. Teve Elizabete para comprovar a fertilidade do corpo e negligenciou a criação da garota.

Minha irmã é apenas mais uma. Não sei o que dizer sobre ela. Elizabete sempre fez isso muito bem. Falou de si mesma até para os insetos que comiam seus vestidos. Ela sempre me odiou pelo fato de eu não prestar atenção em sua existência. Ela não compreendia até que meus pais disseram se tratar da tal doença que "deixa ele sempre triste". Isso só a enfureceu e ao invés de transmitir um pouco de empatia, acendeu uma maldade devoradora. Perseguiu-me, humilhou-me, agrediu-me sem saber que nenhuma de suas ações chegou com tais nomes até minha percepção. Eu apenas a sentia distante. E isso era o melhor que ela poderia fazer. Deveria ter agradecido quando tive chance.

O jardim, a casa inteira... Nada daquilo se conectava comigo. Eu olhava para as filhas de Virgo cintilando no céu e sabia que estavam mortas há séculos. Todo aquele brilho não passava de atraso. Vivas, elas já estavam mortas, bem lá no céu - o recanto dos merecedores. A lua é um pedaço de rocha morto. O sol é uma bola de fogo que se auto-consome. Suicida-se. O vácuo, o silêncio sideral, o espaço atemporal... Morte. Uma vibração constante que se anula no mesmo instante. Aqui, neste planeta onde a vida diz existir, não há fim para a finitude. Onde reside os restos cósmicos de Spíca há um ponto brilhante que também está morto há anos luz. Esse ponto é a Terra. Somos nós.

Para a constelação de Virgem, já estamos mortos. Eu me pergunto: para quem estamos vivos? Meus pais responderiam sem titubear - para nós, menino imbecil!

Eu não responderia nada.

Viver é antinatural.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Valor

Qual é o valor de x?

Pretx, brancx, pardx, gordx, magrx, altx, baixx, desempregadx, suburbanx, abandonadx, excluídx, presidiárix, bandidx, graduadx, drogadx, xsexual.

"X" é igual a mim e você.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Palavra e significado

"Parto" é uma palavra tão rica em significados que poderia ser o melhor termo para definir a vida.

Do parto nasço e me faço assim, do nada que fui ao tudo que não sei se serei.

Parto em direção aos anos futuros, compromissos, relacionamentos, quebras, voltas etc.

Parto o laço com a vida, cansado e desgastado, e simplesmente vou. Morro.

Parto que me dá o primeiro choro. Parto para evitar mais choro. Parto e só deixo choro.

Parto e descubro o ar, o gosto, o frio e o calor. Parto e deixo as chaves, cartas e o perfume no seu lençol. Parto e não olho para trás, finalizo o que comecei sem nem saber.

Parto.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Quanto custa sentir?

Todas as pessoas sentem algo. E "sentir" pode ter vários significados - desde os mais óbvios, semanticamente estabelecidos, até os mais complexos - subjetivamente escritos. Seja com for, há fluidez e alteração no corpo e no comportamento. Muda, como o olhar faz todos os dias. Inunda-se, como o mar faz todos as tardes.

E quanto custa permitir-se sentir o que há para ser sentido? O preço a pagar é sempre injusto. E assim pagamos. Pagamos o quanto for cobrado. Pagamos as passagens para visitar aquele amor de um dia; pagamos a cerveja bebida pela metade que rendeu a mesa a dois cheia de carinhos e mentiras; pagamos a entrada para a festa desinteressante com promessa de gente interessante; e no final da noite apagamos, como se não tivéssemos acontecido.

O preço do "sentir" está além da nossa capacidade de calcular. Ele oscila de acordo com a infla(ma)ção do querer e se faz nos detalhes de um perfume na nuca ou no descaramento em perguntar - "você está com alguém?". Geralmente, arriscamos linhas tortas - sem régua punidora - de um discurso sincero e patético que quer apenas ser amado, acolhido e - quem sabe - lido pela língua a frente. Depois, quando o efeito se desfaz pela correnteza sanguínea, a maré em nós deixa apenas uma sensação de derrota que custa a afundar na areia das expectativas. Cada palavra dita no momento de maior vulnerabilidade sentimental não pode ser apagada com os pés nem com a próxima onda. Marca profundamente e talvez um próximo verão possa então acobertar a memória do que a ponta dos dedos não entrelaçados entre mãos dadas pôde omitir. Paga-se se o preço, mas não apaga-se o peso - da rejeição, por exemplo.

Ainda assim, sentiremos. Espalharemos sobre o lençol exausto da cama as contas do peito e dividiremos a tristeza em suaves parcelas de consequências. Cada uma delas decididamente pronta a cobrar-nos diariamente um fragmento do carinho perdido.

sábado, 2 de agosto de 2014

A janela de Judas

Minha vida é o que escolhi para mim, e não o que escolhi ser. Não tive o privilégio de legislar sobre a constituição dos meus dias. Desde cedo precisei lidar com algo obscuro impregnado em minha essência. Os anos seguiram, e a guerra interior que destoava as atitudes do garoto calado cessou diante do acordo de paz entre bem e mal. Nenhum dos extremos abriu mão da própria natureza. Apenas admitiram a importância que um tem para o outro.

Há o mal em mim. Não sou o único hospedeiro de tal enfermidade moral. Porém, acredito ser um dos poucos que conseguiu aceitar a própria maldição sem crises. Na verdade, o que sempre me sufocou foi a impossibilidade de contar aos meus sentimentos sobre sua outra esfera. A escura.

Quantas vezes desejei o mal extremo dos inimigos e sorri com sua derrota. Ou simplesmente joguei com a vida de pessoas desinteressantes que queriam mais de mim do que eu mesmo poderia oferecer. Jogo de palavras, jogo de interesses, sentimentos simulados, cumplicidade por conveniência e puro egoísmo no lugar de amo verdadeiro. São estes estilhaços de mau caratismo (será mau caratismo mesmo?) que cortaram a alegria estúpida dos dias insuportavelmente inevitáveis pelos quais passei sem deixar rastro. Atuei com a maestria invejável. Às vezes é preciso fingir que se sente algo para, então, ser convincente. Para, então, perambular livremente pelos anos sem ser incomodado.

Olho ao meu redor e vejo tudo se decompondo. Depois que descobri, ainda bem pequeno, que tudo o vive está fadado a morrer, encantei-me pela finitude. Eu sabia que teria fim para tudo o e todos. Talvez, o único momento em que a igualdade se faz por completa. E então não me senti mais culpado por desejar a antecipação do fim alheio. Certas vezes desejei o minha própria morte e nunca senti nada tão confortante quanto isso. Saber que nem mesmo aquela maldita angústia de gelar as vísceras estava livre de se finar valia mais do que 30 moedas de prata.

Claro que conhecer parte da minha potencialidade desgraçada me obrigou a desenvolver um alto grau de controle. Há limites para tal força destrutiva. Não posso dizer que atingi o equilíbrio ideal, contudo desenvolvi certas "técnicas" eficazes quando se trata de não perder totalmente a sanidade e virar prisioneiro de si mesmo. O primeiro passo foi conversar com o demônio que habita em mim.

"Olhos de níquel

Ele me observava do canto da sala escura, apenas reluzindo o par de olhos prateados. Pele seca, pálida, unhas comidas, nu. Conhecíamos- nos desde sempre, ainda que nenhuma palavra tivesse sido trocada até então. Seu cheiro era muito familiar. O mesmo odor que untava minha pele nos momentos de ódio extremo - ou de desejo por vingança. Eu sabia o que ele queria: total controle sobre minhas ações. Ele também sabia o que eu desejava naquele momento - tudo o que nunca poderia ter sendo apenas uma pessoa comprometida com o "bem maior".

- Você me odeia?
- Sim.
- Eu não posso simplesmente deixá-lo livre dentro de mim. Você me destruiria.
- Não.
- O que tem feito todos esses anos?
- Sussurrado na sua nuca.
- Sim. Eu pude te ouvir. Na verdade, eu sempre te ouvi.
- E isso te angustiava, não? Ouvir aquilo que se quer ouvir e nada fazer.
- Foi difícil. Mas seguir os seus conselhos me custaria muito caro. Não posso pagar o preço.
- Eu entendo. É justamente por isso que eu estou aqui e você aí. Eu aqui e você humano.
- E o que você é?
- Seu álibi. Aquele que sempre levará a culpa por suas ações erradas.
- Eu deveria me sentir melhor por isso? Saber que você é responsável pelos danos que causei e causarei?
- Não sei. O que sei é que precisamos um do outro. Mesmo trancado, eu sinto o mundo através de você.
- E o que você sente a respeito do mundo?
- Desprezo. Essa existência embrionária na qual me encontro permite-me refletir muito sobre o que foi criado - e tudo o que faltou neste processo.
- Eu não queria sua passagem por esta realidade fosse tão limitada.
- Então me deixe sair um pouco. Ou melhor, abra as janelas desse quarto. Eu quero ver... Só me deixe ver.
- Não sei o porquê, mas sinto que quero fazer isso. Seria como tirar a corda do pescoço. Vá, veja com seus próprios olhos...

"

Depois, chegou a hora de colocar em prática o que nunca antes havia sido feito por mim. Não há navalha, marreta, chicote ou agulho que machuque mais do que as palavras. Elas abrem feridas que jamais serão fechadas, a menos que a memória se quime e leve consigo as páginas do passado. Caso contrário, irão devorar eternamente o fígado de Prometeu que existe em todos nós.

Após eu ter descoberto a traição, não tive muito escolha. Calei. Tornei-me incapaz de dizer qualquer coisa. Algo estava acontecendo dentro de mim. Eu queria sumir, no entanto sabia que era preciso construir outra lembrança daquela época. De preferência, uma que fosse esculpida em vingança.

Resolvemos conversar sobre o ocorrido.

- Você vai ficar me olhando assim? Com esses olhos opacos e metálicos?
- Eu preciso lhe falar algumas coisas. As últimas, prometo.
- Tudo bem, mas olha, não adianta ficarmos aqui remoendo o que já passou. Ou me desculpa de uma vez ou simplesmente seguimos nossos caminhos separadamente.
- Você está certo. Não vou remoer nada. Só queria pedir desculpas.
- Desculpas? Meu, não faz sentido e sinceramente? Não me faça ter pena de você. Não foi por alguém assim que me apaixonei.
- Não é nada disso. Peço desculpas por ter te enganado desde o começo.
- Como assim?
- Eu nunca te amei. Nunca gostei de você pra valer.
- Ah, sei... Olha, eu entendo que você esteja dizendo isso pra tentar recuperar a autoestima. Só que é besteira, não precisa agir assim.
- Estou falando sério.
- Se não gostou de mim então por que ficou comigo? Por que foi sempre doce e atencioso? Por que ficou triste e calado quando soube da traição? Porque beijou minha mão?
- Porque perdi algo importante para mim. E acredite, não se tratava de você.
- Ah, não? Então o que era?
- O alimento para meu ego.
- Por favor, que argumento patético. Mas se você prefere assim, não vou discutir.
- Não vai mesmo, agora você vai ouvir.
- Bom, como sei que essa definitivamente será nossa última conversa, então vá em frente... Desabafe, acho que assim pago minha ultima parcela de dívida e caminharei sem culpa. Crucifique-me, vá em frente.
- Eu nunca gostei de você. Primeiro porque é praticamente impossível se interessar por alguém tão simplório. Com toneladas de frases, pensamentos e justificadas retiradas de filmes e livros tão básicos quanto seu léxico. Fiquei com você porque meu corpo precisava de alguém, mas alguém que voltasse mais vezes e permanecesse ao meu lado por mais tempo. Necessitava de uma válvula de escape e como sei que seu grau de esclarecimento sentimental é primário tive que alimentá-lo com todas as porcarias doces que o livro de receitas do "amor" ensina a fazer. A traição nunca foi o problema, afinal, eu te traia a cada vagão de trem ou mesa de bar. Você nunca me teve. O problema foi não ter encontrado alguém melhor antes que você se tornasse inútil. Não pensava em você quando escrevia mensagens ou telefonava, pensava nas minhas vontades sendo atendidas. Não pensava em você quando estava bebendo ou me divertindo, apenas me lembrava de manter algum laço para que você você voltasse na hora certa. Não pensava em você quando escrevia - nem de longe - ou ouvia música. Pensava em você quando minhas prioridades físicas e egocêntricas clamavam por satisfação. Todo sofrimento após a descoberta da traição não passou de uma última tentativa de evitar o fim das minhas regalias. Você é uma pessoa qualquer, básica e rasa demais. E não estou te atacando, de maneira alguma. Apenas estou apresentando você para si mesmo. Entretanto, sei que sua estupidez escudeira irá protegê-lo de qualquer auto-reflexão.
- Hunf, terminou?
- Faz tempo.

Se as pessoas soubessem como realmente parecem dentro da minha cabeça, debaixo do meu peito, entenderiam o porquê do esforço que faço para fingir que sinto alguma coisa por elas.
   


terça-feira, 29 de julho de 2014

A perspectiva dos invisíveis



De longe, do fundo da sala ou final da fila, é possível ver sem ser visto. Posição privilegiada.

Durante uma de minhas saídas noturnas em busca de sono, pensei muito sobre perspectivas. Quantas tive ao longo desses anos todos? Quantas evitei? Muitas, em ambos os casos. Mas apenas uma delas esteve sempre em vigor: a que me colocava como terceira pessoa de minha própria vida.

Atrás de mim, só a parede de concreto. A última carteira da sala guardava minhas costas e fazia com que olhos e ouvidos tivessem algum sossego - sem ponto cego ou cochicho alheio. Eu via e ouvia tudo e todos. E o melhor: sem ser percebido. Foi assim que conheci muito sobre pessoas, sem ter que conhecê-las, de fato. Seus movimentos, excitações, decepções, conquistas... Tudo ali, bastava pular de uma fileira para a outra.

Trabalhos em grupo também permitiam que a terceira pessoa se manifestasse livremente. Gostava de ajudar no processo de criação e execução, mas odiava ter que liderar, ordenar ou definir funções e, consequentemente, fiscalizar as pessoas para garantir que o trabalho fosse executado com maestria. Não. Há pessoas que são Arthur. Há aquelas vivem como Merlim. Eu era qualquer um que não queria ser citado no livro, mas que ainda assim garantiu a existência plena destes dois ícones. Gostava de ser a sombra por trás do brilho intenso, o silêncio que precedia o aplauso e a satisfação estava em não ser, sendo. À distância, o sucesso aquecia minha pele filtrado pelo denso manto do anonimato. Felicidade era - e ainda é - isso. Um dia, quem sabe, ser lembrado não pelo que fiz, mas pela dúvida a respeito do que eu poderia ter feito sem que ninguém percebesse. Sentir o calor sem precisar do sol.

O amigo, o conselheiro, aquele que não sofre a ponto de se abrir e ouve, ouve, ouve incansavelmente a lamúria alheia como se o peito fosse imune a sofrimento. Este amigo oculto, terceira pessoa numa mesa de bar, ainda que as cadeiras estejam ocupadas em par. Eu e minha mania de ouvir e, de fato, gostar disso. Depositar na minha alma o que o outro sente, sem entregar um pingo de mim. Doar-se ao contrário. Empresto os ouvidos e a razão de bom grado, enquanto recebo fragmentos de uma vivência fora de mim - sangue do outro incompatível com o meu, mas tão vermelho e intenso quanto. É parecido, não é igual. Dói, mas não faz ferida. O prazer está em não fazer parte, ver a distância, e mesmo assim se emocionar, querer ajudar ou se irritar com a redundância sentimental que cega a maioria das pessoas. O ombro amigo, sempre terceiro.

E na solidão dos dias que se seguem, preenchidos apenas por mim, consigo ser terceira pessoa. Encaro a existência como imposição, converso com a voz da madrugada e escrevo no intuito de me projetar como o outro. Semelhante a falar de mim para um alguém que não se importa, um desconhecido criado pela própria necessidade de dissertar-se a esmo. Sou escrita, imagem, silhueta. Vejo, penso a respeito, comento algo e admiro - ou não - o resultado do que faltou. Frustro-me, como qualquer um e me consolo como nenhum outro. Sou a terceira pessoa que cala o desejo quando "Eu" quero gostar; a terceira pessoa que reclama da vida quando "Eu" quero mudar; a terceira pessoa que sente raiva do mundo quando "Eu" quero viajar; a terceira pessoa que repete a dose quando "Eu" quero chorar. Alguém para finalmente culpar sem precisar se justificar ou reunir evidências. Alguém pra ouvir e sentir, querendo ou não, na pele. À flor, de preferência.

O motivo de fala e piada. Raramente de graça. Condenada a ter o ouvido nas costas e escutar por elas insultos e inverdades. A terceira pessoa que só ganha destaque quando conquista seu lugar fora do todo. Quando aceita o cabresto ou simplesmente se torna indiferente diante dos próprios direitos. Terceira pessoa que busca um corpo para o "ele" ou "ela" dentro de si e perde a vida ao almejar viver. A milhas da própria felicidade, caminha a contragosto do mundo e passa a existir somente ao anoitecer de suas vontades.

No canto do salão ainda existe a terceira pessoa, com seu copo e corpo prontos para terem a perspectiva dos invisíveis.  Lá está ele, a terceira pessoa do singular. Ele, aparentemente imune à vaidade dos holofotes e incapaz de alcançar o palco mais alto, permanece confortável naquela inexistência insistente. Preparado para não deixar que as mãos se toquem ou as batidas dentro do peito se afinem de acordo com a música. Ama em silêncio para que os demais continuem associando quietude à desistência - e deixem em paz seus desejos. Há timbres que somente podem ser ouvidos na terceira pessoa do plural.

Terceira pessoa que não pode se defender porque estar ausente; que não sabe gostar porque está distante; que não sabe ter porque simplesmente abre mão de conquistar. Cruzei as vielas das décadas a passos curtos, tal qual os de quem não quer deixar pegadas. Ao olhar para trás, neste exato instante, percebo que muito do que eu disse não traz novidade alguma.

Afinal, eu sou a terceira pessoa a me dizer isso.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Um dia é o que preciso

Um dia. Só preciso de um dia.

A noite anterior foi uma bagunça. Suas falas não encontravam as minhas. Perdíamos os sentidos até que ambos não sentiram mais nada. Era sua cobrança libertária demais e meu apego egoísta. Totalmente contrários. Deixei tudo o que era importante para ser dito da maneira mais desesperada. Você apenas retribuiu com sarcasmo. Acabou assim: sem olho no olho, sem abraço demorado ou beijo de despedida. Acabou. E eu afundei em mim mesmo.

Goles e mais goles para amortecer aquela velha dor no peito que pressiona o coração como se alguém o estivesse segurando. Ao mesmo tempo em que o corpo relaxa, a mente começa a despertar e em disparada pelos corredores da minha pele, arrepiando tudo e transformando meu sangue em água fervente.

Falo com um, falo com outro, procuro só você, acho, sinto raiva, tento desprezar, bebo mais um pouco e resolvo ouvir música. Como se estivesse sentado numa mesa de bar, sozinho, apenas acompanhado por uma voz envolvente, vejo a vocalista cantar só para mim. Ela não estava lá, de fato. Ela cantava para não cheirar mais cocaína ou beber. Ela cantava para estancar alguma ferida. E eu ouvia para poder sentir a minha arder.

Sofri bastante enquanto imaginava aquilo que não mais teria. Era bom, apesar das divergências. Eu tinha dois corpos, dois sexos, muito sexo, um carinho, alguns sorrisos, risadas exageradas... Eu tinha tudo de mim em dobro. Fiquei mal acostumado e isso fez tanto bem. Até eu perceber que não tinha nada. Que tudo poderia passar em alguns dias. Ficar a deriva é algo muito íntimo e solitário. Não se deve entrar neste estado por conta do outro. Tem que ser por conta própria. Então eu tive que continuar sozinho. A distância, o silêncio, suas cobranças, sim, tudo isso era verdadeiro e munido de razão. Eu que quis levar assim, sabendo como acabaria. Sinceramente, saber que teria um fim breve me deu segurança o bastante para não tirar sua mão de cima da minha.

Sofrer durante um dia é essencial. Fingir que sol não esquenta, que céu azul não seduz - e sim, azul é uma cor muito atraente - ou que olhar para outros caras é inútil não surte efeito por mais do que 24h. Logo as coisas se acertam, o peito para de soluçar e provavelmente um cigarro vai provar que seu gosto é mais amargo do que o de bebida amanhecida ou do "não recebido" beijo de despedida.

Olhei no espelho e vi aquela imagem magra, manchada de sombras pelos cantos dos ossos, e percebi que  não foi você que acabou comigo. Fui eu que nem me comecei.

domingo, 13 de julho de 2014

XXY



 Não sabe disfarçar suas vontades. Entrega tudo no olhar. Escolhe as piores palavras e quando as ordena de uma maneira menos tosca, não calcula o impacto causado. Por isso se torna inesquecível e inigualável.

Irresistível.

Sol

De manhã quer simplesmente acordar e comer, sem se preocupar com o cabelo desgrenhado, olheiras ou barba por fazer, nem com os seios doloridos ou ereção involuntária. Deseja não se incomodar com o hálito, lembrar de calçar os chinelos ou se vestir. É acordar e sair. Um parto diário sem que lhe recebam com roupas azuis ou rosas - muito menos verdes ou amarelas. Quer chegar nua, tão nu quanto nasceu.

Não pediu para ser X nem Y. Nada disso lhe pertence e do "tudo um pouco" quer muito. Imagina-se com a cabeça raspada e os lábios rubros. Depois muda um pouco o tom da pele - tira a maquiagem e a deixa natural. Calça sapatos, depois - descalça - corre em busca de uma tesoura. Corta as mangas da camiseta, vê as próprias costelas enjaulando as laterais do corpo e sorri. Aprecia o traseiro, arranca os pelos das axilas, apara os das pernas e deixa os do rosto. Gargalha por alguns minutos, olha para os pés, modela as unhas com perfeição e vai assim mesmo. Sem perfume, só com cheiro de gente mesmo - gente homem, gente mulher. Gente, gente!

Não disfarça nada. Está se sentindo uma mulher lindo. O cara mais gata do dia.

Estrelas

À tarde, passeia pelas ruas como se o mundo lhe devesse tudo. A comida tinha que ser agridoce, o cozinheiro precisava ir além de suas próprias convicções e então ser capaz de preparar um prato digno do paladar "hermafrodizíaco" daquela pessoa. Ele lhe devia isso.

E as lojas abriam suas pernas com facilidade e sorriso emprestado. Queriam aquele corpo em todas as peças. Clamavam pelas coxas musculosas, pela cintura desenhada à mão, os ombros de cabide, a espinha sempre ereta, os pés pequenos, as mãos com unhas sem cor e tudo mais que pudessem comprar ao vender. Ele, por sua vez, ria, rodava, desprezava e depois pedia de volta. No final das compras, conta para quem não quisesse ouvir que corpo de verdade só se veste de nu. Pano nenhum derrama sobre a pele o que ela mesma nunca teve: gênero forte ou fraco. Apenas gênero. Gênero é gênero. Pele é pele. Seja na sua ou na minha pele.

Serviu-se do prazer de rejeitar - e entendeu o porquê de tantos e tantas a lhe dizer "não". Livre, livre demais, tão livre que se perdeu no caminho de volta. Chegou em sua casa e deu-se para o primeiro que a esperava. Devia-se isso.

Lua

O véu da escuridão não se atrasa. Vem todas as noites para ocultar as almas que têm vergonha de si mesmas e borra as cicatrizes do colo, alisando-o novamente. Chega silenciosamente por entre as pernas e então provoca o sexo. Desperta o corpo dela na hora do sono sem nem se importar com o cansaço. Busca então suas costas largas e a barba mal feita. Ele quer ser dominado ao passo em que busca um desentendimento pontual entre o psíquico e o físico. Enquanto o mundo do lado de fora respeita a lei do silêncio, quatro paredes de concreto e uma cama escandalosa abafam as palavras proferidas ao pé do ouvido.

Sente-se à vontade, como se o universo renascesse por debaixo do tórax, explodindo constantemente e revelando locais até então nunca visitados. Quando finalmente todos os sentimentos se alinham, as cores se fundem num branco absoluto e espirrado que mancha o breu, o teto, o sol e o lençol abstratamente. Uma via-láctea recém-nascida e já vazia. Oito segundos de morte. Criação. Gênesis. Gemido. Ela e Ele no mesmo. Ambos no mesmo corpo, (con)fundindo-se inocentemente. E o terceiro, aquele que tirou proveito e mordeu todos os frutos - proibidos e permitidos - esgueirou-se para o pico mais alto do pomar invejando a criatura inversa. Infinitamente indefinida, tal qual o universo.

Condenada e condenado a nunca caber no dia comum.

Começo.
Meio.
Sem fim.

Céu grisalho e barba de mangue

Se você visse essa foto me chamaria de doente e viraria o corpo para o lado oposto ao meu. Uma praia petrificada pelo frio polar, uma areia metálica, um mar ausente de si mesmo, riscado no horizonte como fina linha escura. A paisagem não poderia ser melhor e essa visita ao litoral foi realmente incrível.

Dias assim me fazem querer pensar não só por mim, mas por todos que amei. Cada um deles inserido na peculiaridade de seus sorrisos e olhares. Todos sempre cheios de falsa segurança ou dependência que tentam me prender de um jeito ou de outro. A dialética do romance, do apaixonar-se, ensinando aos novos amantes os passos básicos da dança bipolar que é o tal amor - às vezes juntos, de tórax colado, às vezes só tocando a pele com o calor do corpo. Cada um deles sempre em mim, seja dentro do meu corpo ou fora dele, alisando minha nuca ou dizendo "adeus" com lábios mudos.

O suspiro oceânico acariciou meus  pelos com arrepio e então encolhi os ombros. Era a praia que todos odiavam, aquela que só serve de morada para bestas marinhas. Perfeita. Fomos eu e meus demônios.

Afundei os pés naquele enorme cinzeiro e lá fiquei, apagado. Olhos vagos buscando nada. Aos poucos consegui esvaziar a cabeça e somente o barulho das ondas se manteve igual. Um cigarro, barras da calça dobradas, barba de mangue, ossos confortavelmente enterrados por debaixo das roupas velhas. Eu e mais ninguém. Uma foto para registrar aquele momento. Pronto.

Não sei quantas horas se passaram naquele instante, nem mesmo se eu seria capaz de me recompor depois de tudo que experienciei. Não saber me ajudou a viver tudo o que tinha para ser vivido - não como imposição, mas como forma curiosa de morrer subitamente. O tudo era fim.

Eu te disse uma vez que minha intenção era fingir - por alguns bons instantes - do meu ceticismo. E acreditar que sim, havia espaço para querer e conseguir. Não se trata de esperança, mas de utopia, morfina, benflogin  ou algo próximo disso. Sentimento sob controle não passa de razão, entende? Precisávamos viver a fluidez da insensatez, simples assim. Você riu, rasgando um traço de pedantismo no rosto. Foi aí que meu querer se calou.

Nunca acreditei na beleza de uma praia afundada no clima gélido. De qualquer forma, não me importava muito com ela. Mas lá, sentado, caído como Samael, eu me entreguei à incoerência. Louvei a solidão com um entusiasmo doentio e falei sozinho sem poupar entonação. Fiz o deus de mim mesmo. Era a única criatura ali capaz de chorar.

Definitivamente, um deus de mim mesmo.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

O que há no fim da estrada



Às vezes eu penso que a gente só ama quando abre mão do amor. E chama gostar de "querer pra sempre". Rodamos os ponteiros do relógio ansiando acelerar os segundos e fazer deles anos, décadas, bodas de prata...

Penso constantemente que "coração", "paixão", "chocolate", "cartão", "mãos dadas" e "mensagem de madrugada" são as melhores coisas do mundo.

E as melhores coisas do mundo foram feitas para serem lembradas e não vividas eternamente. Quando você abre o álbum de fotos, o sorriso é mais sincero do que aquele que foi congelado na imagem. E por quê? Porque tudo passou. Porque virou lembrança, virou algo que não se toca e se não toca não dói e se não dói não se sente e se não se sente não se sofre.

E não estamos preparados pra sofrer. Por isso inventaram o choro. Ele é físico, no primeiro soluço, mas depois vira etéreo - no segundo suspiro.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Decay

Se no vazio do meu interior eu sentisse que alguma essência residisse, não teria dúvidas de que seu anseio maior seria o de desaparecer. Sair de mim, libertar-se. Essa vida, esse compromisso forçoso com a existência que se faz logo após o parto pesa, pesa muito. E o mistério da morte está à mercê da minha imaginação. Tem dias que eu espero o pior - e me rasgo em pedaços na tentativa de descobrir o que falta -, e há outros nos quais eu abro a janela para ver o nada. Olhar, apenas. Quanto mais distante, melhor. Mais próximo do que sinto. E eu sinto longe demais.

Chego a buscar lugares que nunca estive. Construo o que falta nos meus dias - espaços abertos sem casas, estradas só de ida, praia em dia nublado e frio -, e calo as vontades. Falta, essa é a motivação. O que falta, o que não se ergue por dentro, o que deixou de existir ou nunca existiu, aquilo que eu busco só pela busca, não pela conquista. Uma falta que preenche o abismo. Querer também satisfaz, porque você - no caso, eu - sente o pulsar da frustração ainda em estágio de expectativa. Ultimamente eu estou sentindo falta de solidão.

Preciso me frustrar em breve.




terça-feira, 15 de abril de 2014

Com vocês, meu coração

Há tempos que no peito dele eu me sinto negligenciado. No fundo de mim, eu sei que sou bastante importante e por isso que ser ignorado me fere demais. Tento entender os motivos dele, juro que tento, mas é muito complicado. Eu não sei racionalizar. Só sei experimentar. Então ele vem e me surpreende. Decide nos levar para sair. Cinema, é isso que ele disse. Parece interessante. Experimentarei.

Acomodados. Agora só silêncio. Começou e eu estou agitado. O tempo passa, mas não passa simplesmente. Toda a beleza das cenas me acelerou demais. Transpiro feito um louco. Estou bem. Fadigado e bem. Oras, é claro que eu suei amor.

O amor resiste, sabe? Ele acha formas de ser e se fazer. Não desiste nem aceita ser esquecido. Quando é invocado, faz questão de marcar a ferro os meus tantos outros irmãos corações. Impossível de ser mensurado, esse amor oscila entre o inundar-se e o recolher-se, seja em ondas ou cacos, amor é invencível. Se ele acaba? Não. Ele se modifica, camufla-se, adormece, torna-se recluso ou até mesmo conformado, mas jamais deixa de '(r)existir'.

Ah, o amor e suas tantas faces. Os dois garotos, o meu e o outro, cultivando-o em seu estado mais puro e bruto. O toque, o olhar cego cheio de vontades e o olhar vivo vazio de medos, o cheiro na blusa que, na madrugada de insônia, tira do corpo qualquer vestígio de cansaço, o ciúme e o beijo. Ele, o beijo, que faz o tempo perder seu sentido e vagar a esmo pelo mundo. Este mesmo beijo tão esperado e ao mesmo tempo inesperado que recai sobre mim como uma chuva morna de verão. Eu, coração de um menino também marcado pelo amor e despertado em meio aos cheiros do querer, fui beijado também. Algumas boas vezes, algumas boas bocas. E confesso: sempre que os lábios se encontravam eu tentava pular do peito para espiar o leve sorriso que se esquivava por entre as línguas.

Batia forte, porque ser ignorado me fere demais.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

De tempos em tempos se faz o para sempre

A vontade era de reencontrar o ancestral em mim. Aquele que se instalou no meu corpo e trouxe seus antigos escritos e histórias. Um “eu” de ontem que nasceu anos antes do parto. Mais de suas décadas se passaram e com ele tive alguns instantes de interação, deixando que assumisse por completo o controle do corpo e mente. Ele nunca pediu licença para isso, eu que sempre dei minhas lacunas como espaço para que se criasse. Alcateia de um predador só. Só em mim.  

Neste instante, sinto sua pele envelhecida e acinzentada roçando por debaixo da minha, ainda no auge de sua vitalidade. Aos poucos me retiro, resigno-me sem objeções e passo todas as palavras a quem, em silêncio, sussurrou verdades e mentiras de dentro para fora dos meus ouvidos.
E que assim se faça o chamado do esquecido.

“Exilei-me em terras distantes. Castigado pelo tempo, caminhei vagarosamente pelas bordas da moral, sempre desenhando um contorno torto que no intuito de cercar meus excessos. Já vivi demais. Vi e vivi demais. No entanto, cansei pouco. Dormi menos ainda e cá estou em chão novo e desconhecido. Meus bolsos sempre foram vazios de sementes, então o que me resta é jogar neste vasto campo cinzas e mais cinzas. Dos cigarros nunca me abstive.

Vilão, herói, comum. Nenhum. Só um, eu e mais ninguém. Digo, as memórias ainda me habitam. Tenho muitas delas guardadas nas gavetas da cabeça. Do amor herdei a mágoa, um "não saber" do outro que deixou o malefício da dúvida latente na cavidade do peito. Um rastro de poeira de gente perdida pela rua.

Do ódio, tudo. Rancor, raiva, angustia calada, pele dos dedos a sangrar e peso - do corpo perdido, do cansaço ganho. Muito peso. Se havia movimento dentro de mim, se ainda restava fluxo, hipócrita eu seria caso não atribuísse à promessa de vingança total força motora. E sejamos francos, combustível melhor do que ela não há. Mata a quem dela se farta, mas ao poucos. Mata de imediato os que a recebem como juíza, ceifadora, algoz.

Este menino, cuja história ainda clama por muito a ser escrito, deu-me morada, ofereceu-me casa. Aconchegado por entre seus órgãos eu me transformo no mal. Puro mal que contrapõe tal existência raquítica de reais frustrações. Ele não sabe o que é sucumbir ao próprio dissabor. Mas vai saber.

De tempos em tempos se faz o para sempre.”


Rosnou o coração. O verdadeiro lobo nunca se satisfaz. 

sexta-feira, 28 de março de 2014

Lucro

Comece por perder. Esfarele o próprio orgulho sobre a mesa, organize a carreira e inspire. Encha-se dos cacos que ontem compunham o belo espelho a refletir sua soberba e confiança. Aquele mesmo espelho que tanto falou sobre sua beleza. Fragmente-se como nunca antes e então dê o passo seguinte: suporte sua própria falação compulsiva.

Grite se for necessário, desespere os vizinhos ao se libertar às 3h da manhã sem compromisso com o relógio. Atenda apenas à angustia que te corrói e ata suas mãos e pés diariamente. Que te impede de “seguir em frente”, de “superar obstáculos” de “ser alguém forte”. Hoje eu quero que você se derrote. Caia, rasteje, sofra como nunca antes e queime de uma vez por todas as esperanças que sempre lhe enganaram. E não se esqueça das pessoas.

Sim, cada nome que amaldiçoou seu coração e fez do peito um limbo profundo deve ser invocado, lembrado, desejado e merecedor da sua ira. Sei que deve estar sendo difícil e que seu corpo provavelmente está oscilando entre rigidez e desfalecimento. Sei e não me importo.

Sofra. Sofra muito. Sofra tudo. O que sobrar, sem sombra de dúvidas, será lucro. E será só seu, de mais ninguém.

Banho de madrugada

Acordei com o soluço das minhas vontades. Acordei, caminhei até a janela e olhei para o céu. Não esperava nada, absolutamente nada. A memória ainda adormecida me impedia de invocar a razão – detentora do meu nome, idade, cor dos olhos, número de celular e tamanho de sapato. Como num nascimento, levantei da cama despido, nu, perdido, sem palavras, só suspiros. Só língua não falada. E como num último anseio antes do pulo rumo ao precipício, deixei que a liberdade me dominasse por completo. De olhos fechados eu vi tudo. Presenciei algo que jamais havia vivido, de fato, nesta existência. Eu finalmente pude descansar. 

“A liberdade

Meus olhos percorrem toda a estrada. Sua pele grossa feita de cascavéis conduzia ambos os corpos para o bote inevitável, o fim do caminho jamais anunciado. Estávamos envenenados pela toxina da liberdade e queríamos apenas o que nos foi prometido antes da mordida: a dormência.

Se o corpo pesa, deixe que caia. Se a mente pesa, deixe que se apague. E se o coração torna-se insustentável, deixe que parta. Foi assim que saímos, dispostos a encontrar um motivo que justificasse a ausência de nós mesmos. Algo para compensar os anos de angústia, de vida planejada, de frustrações garantidas e parceladas. Os anos de enganos, de passos e não de caminhadas, de fúria silenciosa. Um convite à anulação de si mesmo. Morrer em vida.

Preso às costas de quem agora me guia, sinto o corpo gelar a cada assovio da noite. E as estrelas que agora forram o céu guiam-nos para qualquer lugar. Madrugada sem lua, só rua, estrada longa que traga cada fumaça fugida do escapamento. Duas rodas, duas pessoas e tantas outras em nossas lembranças.

Hoje eu sou poeira, resto de vivência, rastro de insistência, de gente que passou, voltou, foi, mas nunca ficou. Sou calor que despenca pela avenida como estrela cadente, anjo caído que sinaliza com seu brilho o caminho da queda. Sou pecado original, puro, escuro, profundo, com asas que não servem para voar, apenas pesam nas costas. E me deixo guiar, deixo que você me conduza pelas montanhas, vales e desertos que tingem os dias de cores quentes. Dei-me como presente e maldição a liberdade. Fiz questão de ser livre para pertencer a quem me interessasse. Ser livre para pertencer. É isso. Mas não só isso.

O tempo, quando estamos felizes e plenos, escorre como néctar pelos cantos dos lábios e, quando a garganta seca novamente, deixa um sabor inesquecível. Algo como o gosto da saudade.”

A luz morna do sol recém-nascido despertou-me do sonho. Minha pele foi banhada por um dourado inconfundível: a coroa do astro rei reluzia nos olhos terrosos de quem a encarava. Olhei para o meu corpo, olhei para mim – de verdade – e gostei do que vi. Senti o sangue, o ar, as marcas na pele, o cheiro de gente. Era real. Deixei que os pelos se arrepiassem com o frio, é preciso sentir frio. Não fugi das sensações. Fiquei. Eu, ali parado, morri em vida.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Agulha

Se todos os laços dentro de nós fossem desatados 
o coração - até então atado seria malha esparramada entre peito, mãos e joelhos. 

Trapo, fiapo, fio. 

Portanto, costuro sempre um novo nome com a agulha na ponta das muitas línguas que costumo coser a esmo.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Visto

Minha pele só servia para cobrir ossos. Meus cabelos, para proteger a cabeça do sol. O espelho, por sua vez, desenhava-me ao contrário, refletia-me ao inverso. Ao contrário eu me sentia contrariado. Eles haviam me vestido de um “eu” desconhecido. A vida havia. E eu não cabia. Prazer em não conhecê-lo.

Minhas pernas frouxas caem durante o caminhar e cinto nenhum – preso ao que sinto - consegue segurar a frustração de cada passo arrastado. Pesa o caminhar, pesa o contínuo fato de continuar vestido de outro alguém. Dizem-me: teu corpo, teu templo. Mas lugar algum é templo para quem nasceu em berço nômade. Nasci no vento. Sou feito de ar e não posso ser pó nem poeira. Só posso soprar. Não tenho para onde voltar. E sou. Insisto em ser o eterno órfão de vizinho. Nem a mim eu tenho. Meu templo é a Torre de Babel. Falo com a língua do corpo e ainda assim desconheço os gestos, as rugas, os excessos do que banho, enxugo, visto e deito.


Despindo-me, descubro que subcutaneamente que existo. Só não fui eu a me vestir. 

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Mais vale

Sabia que naquela noite nenhuma migalha de romantismo forraria seu estômago. Por este motivo foi. O convite para o jantar parecia interessante. Mas a fome, na verdade, era de outra coisa. Torcia para que os temperos em ebulição disfarçassem a essência de feromônios que se misturava ao perfume recém-passado. Como convidado, aguardou sentado, reparando nos desenhos da toalha de mesa. Concentrando-se no mosaico sem sentido, seu único ponto de fuga - já que levantar dali estava fora de cogitação.

Eram duas vozes: a de sua boca satisfeita com o pouco e a de seu querer, sempre faminto.

- Venha aqui, experimente um pouco e diga se está bom.
- Está. (De lamber os lábios. Você até merecia um beijo por isso. Um beijo com seu tempero)
- Só isso? Não vai dizer mais nada a respeito?
- Não. (Já sentiu o gosto da fome? O gosto da vontade?)

A simples aproximação de corpos o fazia pulsar. Pele fervia, respiração se cobria de vapor e a língua - que passeava pelos lábios na busca dos respingos de molho - exibia-se timidamente, provocando sem revelar o desejo em sua ponta.

- O quê? Diz algo, faz um esforço!
- Eu... Achei bom, de verdade. Está ótimo. (Essa sua respiração me cala, por isso falo pouco)
- Melhorou. Sabia que tinha alguma frase aí na ponta da sua língua.
- É... sempre tem algo. Posso tomar alguma uma bebida? (Antes que eu engula teu fôlego de uma só vez)
- Fique à vontade. Faz um drink para você e eu tomo um pouco.

E mais uma vez o álcool fez seu papel. Banho frio na boca flamejante. Rapidamente, escondeu-se entre as veias e fez com que o corpo suspirasse de alívio. Agora ele abandonava os detalhes e se voltava para aquela silhueta de estatura mediana, nuca tensa e mãos ágeis. Furtivamente, seus olhos percorriam as costas, a parte traseira das orelhas e fotografavam as pequenas gotículas de suor. Respiração: o golpe mais baixo.

- Vamos comer. Quer que eu te sirva?
- Não precisa. Belo prato... (Quero que você me sirva. Que você tema minha reprovação)
- Obrigado. Coma e me diga o que achou.
- Tem gosto forte. (Gosto de quem queria impressionar. Gosto de quem queria ser notado)
- Errei no sal?
- Não, acertou no sabor. Por isso está forte. Eu gosto assim. (Ninguém cozinha assim para um qualquer. Eu sei que você se esforçou)
- Coma mais então.

A falta de sincronia - e coragem - que atrapalhava o diálogo entre sua mente e seu coração ecoava como trovão a cada pergunta respondida. Queria falar o que lhe vinha à cabeça. Sem perceber que o que faltava mesmo eram os versos do coração. Romantismo para uma noite daquelas seria a pior adição.

Satisfeito, recorreu ao silêncio com a desculpa de que uma forte preguiça havia tomado seu corpo. Álibi mais barato do que esse só aquele que pede mais uma dose de bebida pra ajudar na digestão. Alguns cigarros, alguns bocejos e as luzes se apagam.

O inferno é um quarto em que o primeiro corpo deseja o segundo. E o segundo só deseja dormir.

No silêncio absoluto é possível se escutar o ruído de um calar proposital. Ele controlava as batidas do coração, mas estas insistiam em causar tremores que se espalhavam pelas pernas e paravam no ventre. Tudo pedia sexo. As paredes gritavam furiosas, queriam ser marcadas pelas costas besuntadas de prazer; a cama se sentia inútil; os lençóis - retos como o chão - ansiavam pelo entrelaço de quadris. Nada. Só o ruído do batimento cardíaco.

- Não consegue dormir?
- Não. (Consigo, mas não quero. Não acho justo)
- O que foi?
- Empreste-me sua mão. (Antes que eu peça seu ouvido)
- Para quê?
- Apenas confie e empreste. (Eu não anunciaria assim, com tanta delicadeza, uma ação selvagem)
- Nossa! Você vai ter um ataque cardíaco.
- Eu preciso falar... Eu não consigo... Mas preciso. (Melhor falar do que tentar te agarrar)
- Diga de uma vez.
- Eu quero um beijo. (E depois seu corpo inteiro. Quero sua saliva, seu tempero, seu gosto)
- Não. Boa noite.
- Boa noite. (Dizem que o sono tira a fome. Boa sorte, espero que nem você e nem seu estômago ronquem)

Há alguns anos, sentira uma ira incontrolável. Uma tristeza profunda e insistente. Mas desta vez o que sentiu foi frio. Um gelar instantâneo. O romantismo tinha ficado na cozinha. Ali, no santuário de Morfeu, o sono disputava espaço com o desejo. Porém, um desejo solitário, que não se fez dois. Dormiu. Ele não.

Pela primeira vez naquela noite, seu coração falou livremente, enquanto o outro passou a interiorizar seu conflito mudo.

- Mais vale um coração na mão do que dois pares de lábios beijando.
- O que você disse? Eu estava dormindo já! (Mentira, mas prefiro evitar qualquer chance desse beijo acontecer. Não, não posso, não tem nada a ver)
- Disse "durma bem".

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Partes

Dezembro de 2013, Paraty - RJ.

Partir

Sair. Permitir-se partir. Ir. E voltar para quê? Para quem? Nunca se sabe. Ainda assim, deseja-se ser.
Ser para crer. A experiência que preenche parte do que chamo de "ter". Só tenho memória, só o que vivi e experienciei. No mais, sempre falta.
Ser vivo pra sair de si e andar por aí. Parte ficar. Parte ir.

Língua

Seu idioma, suas escolhas e a cor azul insistindo em destacar seus olhos transcendem o "não saber o que dizer". Emudecem pela quantidade absurda de palavras que a serem ditas mesmo malditas. Algo como falar a língua da vontade à vontade.
Melhor que cale um canto da boca pra ver se o canto do peito sufoca e se cala.
E se cala?
Sente. Não canta.

Pedaço

A carne pulsa. Sente fome. Busca. Demonstra-se, esparrama-se e, ao anoitecer, dispõe seus pedaços na bandeja de oferenda. Rende-se.
Carne não é fraca, carne não é trêmula. Carne é pedaço duro, rígido e tenro do mais impuro desejo.
Vem com sangue porque não se faz mundana e humana sem antes benzer-se de maculação.
O pecado da carne foi sempre sangrar e nunca morrer.

Tombo

Ele perde o compasso, cai nas ladainhas da razão, mas não desgruda o rosto do sorriso. Diante do penhasco, não sentiu desejo algum. Queda, ascensão? Não.
Lá, prestes a não mais se prestar à coisa alguma, preferiu sorrir e camuflar o nervosismo adolescente de um corpo mal transado.
Só foi até o tal pico para provar que seria capaz de besuntar os lábios gélidos e altos da morte com sua vivacidade leonina. Mas não voltou. Leão das montanhas. Não refez o caminho. Admitiu ter perdido sua principal guia: a vontade de sumir.

Digo

Insisto em acreditar que me faço entender por meio do silêncio.
Entre os possíveis muitos motivos existe um que merece atenção: quando não digo o que tenho para dizer, abro espaço para o "nada" acontecer. E então tudo se torna interessante.
Sou eu que respondo perguntas, invento passados e me divirto ao ditar futuros. Sou eu, tipo Deus.
Mudo para o mundo. Mas mudo acompanhado do meu silêncio.

Despertador

Foi-se o tempo em que para dormir bastava fechar os olhos. Agora, você, eu, nós todos passamos horas tentando reconquistar o desprendimento perdido. O dia acaba, os minutos se esgotam e seguimos atados à rotina incansável. Sempre alertas e vigilantes. Cambaleando exaustos entre garrafas e bitucas.
Nunca de olhos fechados.
Como desligar? Basta nem ligar. Boa n.


sábado, 18 de janeiro de 2014

Fim sem fim

As letras subiam lentamente, revelando nomes sobre nomes. Fiquei. O envolvimento com o enredo e seus personagens me prendeu. Na verdade, comoveu. E eu não me movi. Eles contaram sobre nós. Interpretaram uma vida que nunca vivemos ou partilhamos. Aquela história com fim sem fim.

Jurava que não sentiria mais nada. Que o sentimento havia amadurecido e dele não escorreria suco algum pra adocicar lábios e ideias. Muito menos pra lambuzar de desejo o sossego. O que antes era uma eterna manhã de chuva torrencial havia se tornado tarde de brisa suave, risadas que faziam o peito vibrar e um companheirismo fraternal. Meu coração, por sua vez, repetia que tudo não passava de encenação. E então decidiu se calar. Foi procurar algo para assistir e achou a cena que o levaria ao clímax da tristeza: num único frame, um beijo. O seu, não no meu. O seu, não o nosso.

A luz se encolheu no canto da parede para destacar os dois corpos mesclados. Vermelho e branco. Jogo de sombras pra me confundir. Mas de trevas eu entendo. Com toda a nitidez de um sentimento aguçado, observei o ato. De um lado, a razão rasgava um sorriso de alívio. Do outro, o amor - que só conjuga verbos no imperativo - soltou um bocejo de fome e desânimo que dizia "cale". Achei que não me surpreenderia com um roteiro tão previsível. Achei que fosse a chance de passar por meu batismo de fogo sem dar bênção às emoções de engano. Só que doeu como ontem e como sempre. Como se nunca tivesse deixado de doer. E a trilha sonora - antes tropical e animada - bateu nos meus ouvidos como carnaval decadente cujo primeiro dia de desfile já trazia as cinzas.

Corte.

O mesmo filme. Os mesmos papeis. Um roteiro conhecido por dois desconhecidos. Começou no meio pra nunca chegar ao fim.

Sem final feliz. Eu quis.