quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Poeira e sangue

Quando a lua sangrou e nós dois tocamos a palma da mão um do outro, sabíamos que o pacto era maior do que o corpo poderia suportar. Veia com veia, trançados em vermelho - o traje perfeito para virar a esquina que nunca se quebra -, ouvimos um zunido a chamar, bem baixo e agudo, pelos nossos nomes. Era o chão que esquentava feito brasa e a poeira antes seca e sólida, sozinha nas nossas solas, tornou-se sal.

O que ambos os corações queriam era, na verdade, o suspiro da carne que, aliviada, tremia. Juntos, abrimos as pernas forçando os joelhos a se curvarem diante dos três caminhos que convergiam num só lugar: nossas nucas, as quinas do coco. Era por trás que Ele chegava com seu hálito macio de boca que sabe abocanhar e, ao invés de fazer gritar, obriga a gente a morder os lábios.

Da noite pro dia, dia de novo.

Tingia-se o céu de rubro-negro, amanhecia-se a madrugada com o calor matinal, aquele primeiro a pular as janelas pro mormaço abraçar. Sabíamos dos riscos.

Passamos quatro noites trancados no quarto, relendo cada palavra e sentindo o vibrar pelas cordas vocálicas como acordes sufocados de uma viola desafinada. A garganta seca, os olhos ardem, o corpo pela. Assim foi o tempo contido: um pedaço de vida dividindo o útero em quatro paredes cujo parto era anunciado toda vez que abríamos a porta e ela rangia de dor. Como nascer os dois? Como nascer em dois? A dúvida corroía e azedava a comida no prato. Como se lavar se nem nascemos pro mundo ainda? Era o suor que besuntava os pelos todos, fazia coçar, pedia pra arrancarmos na unha aquele tempero forte. Mas chorar ninguém chorava.

Enquanto lambíamos as feridas um do outro, repassávamos cada verso num ritmo diferente daquele que foi imposto pela escrita nas telhas do teto. Lá no alto, tudo corria. Aqui embaixo, tudo escorria. Quente.

Fora daquele cubículo, já sob o olhar da Lua ruge, nós fomos o vermelho no breu. Ritmados, era chegada a hora de mostrar como se faz. Como nós fizemos.

O estalar das mãos faz arder a pá do toque
Deixa vermelha a carne escondida debaixo da unha
Oferecemos o que temos: poeira e sangue
Oferecemos o que temos: poeira e sangue

Ninguém canta a canção do cavalo de brasa
Ninguém cavalga no lombo da noite
Ninguém dança sob a luz do sol azedo
Ninguém dança quando a lua faz sombra no céu vermelho

Só nós.

Trança os panos, amarra o buxo, corta aqui e ali
até ouvir o rachar da cuca
Não adianta correr, não adiantar apressar o passo
Atrás de nós, perde o fôlego o calcanhar
São três caminhos pro mesmo encalço
Ir. Voltar. Ficar. 


A meia volta corrige o relógio que andava com o pé dos outros
Zero horas no par de Ós que juntos não são nada
Eu e você, no marco, na hora marcada, atrasamos o futuro e o passado
Nem mais um segundo presentes, damos ao mundo o que ele merece
Um par de nós.

Amarrados.