sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Capítulos sobre nós

Enquanto eu acariciava as páginas dos livros, ela cantava ao fundo. Sua voz suave não deixava de me perturbar, tal qual fragrância forte que não sabe ser contida - em certa medida, por conta da tristeza sutil que eriçava a angústia em mim. Ainda assim, eu precisava daquele arranhar de discos com as cordas da garganta, feito nós, a atar o grito de desgosto. Debaixo da cama, encontrei a garrafa de gin, mas não consegui achar cigarro algum nos bolsos. Pensei por segundos onde estariam e lembrei que me obriguei a parar de fumar. Mais angústia, só que sem gelo, por favor. 

Ele se segurava pra não conversar comigo. Sabia que era meu momento - e só meu - no qual mergulhava já sem fôlego por entre as águas desconhecidas do meu ainda "não-saber". Cada capítulo era um convite para entrar e ficar mais um pouco, sentar, à vontade, e dizer o que eu gostaria de beber. Depois, quando as páginas me viravam as costas, eu, abandonado, podia olhar para o cabeçalho e relaxar. No caso, os músculos do corpo, não os da mente. Porque era impossível acalmar aquelas pequenas explosões elétricas a descarrilharem feito trens debaixo do meu crânio. A leitura me deixava inquieto, só que o saber... ah, o saber contido nela... Ele não me deixava ficar quieto, capitava-me. Eu queria falar, queria compartilhar tudo aquilo apresentado a mim, mas o barulho era ele, ali, com sua música, com a voz dela abrindo levemente a cortina e soprando seus versos de véu. Agora, eu que me segurava e ele... Ele era a trilha da noite. Eu, só capítulo. Eu só captava.

Nas costas de minha nuca eu sabia que alguém me observava. Fosse com um olho ou os dois, ele me observava ler, e ler, e ler sem se contentar com pontos finais. A provocação vinha do fato de seu corpo não se retirar, muito menos retirar o copo. Eu era gin, você, vinho.  Ficava, fumava ao fundo sem me oferecer trago qualquer e, mesmo assim, preenchia as paredes já que as páginas não lhe cabiam ou os goles lhe saciavam. Aquelas páginas, vale ressaltar, é que não lhe cabiam, porque as outras - as tantas que escrevi - estavam perfumadas com sua inoportuna e indispensável presença. Aquelas páginas eram outra história. Já aquele, logo atrás de mim, repousado no sofá, era quem, paradoxalmente, atrapalhava meus estudos enquanto me fazia a massagem perfeita no ego ao me instigar a continuar.

Não era sobre habitar o mesmo cômodo, muito menos sobre incomodar. Quando eu terminava mais uma parte do livro, a vírgula para o fôlego estava justamente na procura pela digressão que me levava até lá longe, onde ele estava, divagando vagarosamente sobre qualquer assunto que não o diante dos meus olhos, diagramado e editado.

Mal sabia ele que eu nada lia. Apenas escrevia mais um capítulo sobre nós.

Bastava olhar para trás pra ver que eu...

Capitulo você.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Maldição

Do meu ser entendo eu. Quem me diz sou eu. Dos cansaços acumulados, nenhum nunca me fez dormir melhor, como se toda a energia tivesse sido gasta no que preste. Dormir cansado de ter que se deitar pra acordar. Não deitar pra descansar, deitar pra manter o cansaço sob controle. Meu mal não é cansaço.

De mim sei eu que nunca me abandonei, ainda que tivesse tentado algumas dezenas de vezes, sem sucesso. Descalço era como eu me sentia quando a inocência era obrigada a andar sozinha. Meu mal não é o descaso. É outro. 

Abri o peito quando pulei a janela e desenho um alvo mentalmente. Descalço, esperando o prego penetrar, o vidro o pinicar e eu ter uma desculpa para não ir. Lá fora, o mundo fazia de mim o que bem entendia. Eu me sentia como um rato na roda. Só que ao invés de avançar, eu ruía.

Fui batizado pela desgraça. Na boca, a maldição que eu não proferi virou as escritas que eu rabiscava. O olhar sempre foi meu cúmplice, pois escondera todas as vezes em que eu disse através deles o que realmente desejava o coração. A culpa eu não carrego. Os poucos choros, quando eram os meus, foram consolados pelo soluço – eu que me assoprei o machucado, eu que me limpei o rosto sujo, eu que me balancei, eu que me consolei, eu que me ensinei que não sabia o que era perdão. No colo, cabia a mim ser refúgio da alma mirrada, filha do sangue e do osso.

Nas minhas danças aleatórias pelo quintal de sempre, o universo parecia se bagunçar. Agitava meus braços de um lado para o outro, girava o corpo devagar, subia uma das pernas, jogava a cabeça para trás, tudo estava fora de órbita, um espirro na escuridão cósmica e pronto: na moleira queimava o sol marcando a minha hora. O momento exato em que passei a existir fosse na luz ou na sombra.
O que chamavam de mal, eu chamava de essencial. O que chamavam de mal eu chamava de atração. O que chamavam de mal eu via razão. O que chamavam de mal eu prestava atenção. Quando me chamavam de mal, eu respondia com voz baixa “já vou” – e não ia. O que chamavam de mal era justamente a versão da história em que eu vencia, sozinho, e ganhava a liberdade para ser meu.

Batia com uma das palmas no chão, acariciava o pescoço com a outra, erguia o corpo, projetava os ombros para trás, passava as mãos pelas costelas como se dedilhasse cordas de violão, trançava os pés, sacudia a cabeça, soltava o ar até o corpo todo formigar inquieto. A saliva banhava os lábios, os olhos piscavam lentamente, o céu fechava, a terra cheirava, seu nome, seu rosto, seu gosto vinham à mente, o estômago reagia, o coração batia depressa pra depois se afundar sob a carne do peito... quase sufocado. Era a boca calada que selava o momento sublime dos quereres, aqueles a dançar comigo, em passos ocultos no tempo, debaixo da poeira do ontem, no caminhar cansado dos meus antepassados, no sorriso de navalha dos meus ancestrais que fazia escorrer o fio da vingança no rosto.

Era no sangue que eu rescrevia o destino de muitas pessoas. Enquanto redigia os versos que iriam atar o nó em volta dos pescoços esticados dos famintos a tentar me abocanhar, lembrava, como se fosse ontem – e, de fato, era – do momento em que me entendi.

Fui direto comigo mesmo, por isso consegui me alcançar. Silenciosamente, ao dar à linha seu último ponto, pude fazer profecia pra mim e maldição para o resto.

"Nós, eu e eu mesmo, fomos feitos um mal para o outro."

Ainda bem. 

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Coral

Finalmente você me aceitou. Eu nunca quis lhe causar desespero, mas entenda... Era o único jeito de abrir seus olhos para dentro e perceber que meu lugar é em ti.

Finalmente, entro sem pedir licença, mas aceito um copo com água.

(...)

Lembro do dia em que doeu o corpo caído no buraco e a indiferença da mão amiga que oferece ajuda pra subida. Eu te chamei sem saber. Sibilei seu nome, mas o fogo se extinguiu antes de tudo virar cinzas.

Também me lembro de quando o corpo foi tocado e a dor escorreu pela carne ainda fresca, o medo, o não saber, os vultos que nada tinham de intangíveis, a sensação do corte rompendo os pontos mais sensíveis do meu ser. Senti medo mais do que dor e te chamei. Você veio, fez tremer as paredes da casa, envenenou o sono dos imundos e apagou os detalhes que formavam a lembrança. Ficou a cicatriz na alma.

Do tapa na cara por ter deixado o bule de café cair, dos gritos por ter deixado a navalha me cortar o dedo, do empurrão por não ter entendido o desejo corpo, do palavrão que me humilhou diante de tanta gente, do prato sem comida, do sono pra alimentar, do amigo sendo incendiado na lata do lixo, do amigo sendo encontrado em pedaços no capô de um carro, do amigo sendo espancado no recreio, do furo de bala no portão, dos sacos de lixo voando em minha direção, do cuspe na nuca, do desrespeito, do desprezo, do sexo pra me usar como experimento, do abandono com ingressos na mão, da porta sendo arrombada no soco, do quarto sendo invadido pela ponta do fuzil, da mordida no braço pra salvar o irmão, da primeira vez traído, da última vez ferido eu me lembro bem.

Em todos esses momentos, recorria ao lugar dentro de minha cabeça onde só eu consigo entrar. Lá, fechava as janelas, apagava as velas, sentava sob a cama, nu, passava as mãos no rosto, nos cabelos, umedecia os lábios, arranhava de leve a pele de todo o corpo, abria os olhos, deixava as trevas inundarem eles e estralava os ossos do pescoço. Por debaixo da porta, conseguia ver sua sombra passando. Você não batia.

Nunca tive medo do vermelho do sangue. Nunca tive medo do preto da escuridão. Nunca tive medo do preto e do vermelho dentro e fora de mim, sob e sobre minha pele. Nunca tive medo do escuro. O medo que eu tive não estava em mim. Ele estava no outro. O outro tinha medo e isso que me assustava. Ser medo.

Quando o coração gritou de dor, quando eu caí de joelhos no quintal onde corri tantas vezes, naquele momento, quando a lua brilhava cheia de si no céu morto, eu te chamei. Você chegou, tirou o lixo de minhas costas, secou a saliva em minha nuca, arrancou as marcas de mãos da minha carne, partiu em direção ao prateado que cobria tudo como véu e eu, finalmente, senti-te em mim. Sem medo.

Finalmente, sós.

Nós. Duas vozes em um mesmo corpo.

Coral.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Solstício

Declínio, quando metade do meu rosto não consegue se enxergar devido à intensa luz. O auge, quando uma das metades se descola da imagem e imerge na escuridão. Metade do todo, parte para ninguém, eu sem saber se agradecia pelo lado quente ou lamentava pelo frio. Eu odeio a sensação morna. Talvez também odeie a ideia romântica de equilíbrio, balanço e afins. O meio é o fio que divide, não o que une.

Prefiro falar de metades.

Metade de mim acorda e quer se deitar; levanta pra despencar alguns segundos depois por conta do pesado desânimo que é ter que viver mais um dia comum. A outra metade respira fundo, sacode os músculos e ossos, procura os óculos, olha o relógio e berra sem abrir a boca "faça o que tem que ser feito". Declínio e Auge.

Metade de mim precisa andar para pensar nos problemas, soluções, vontades, perdas e ganhos. A outra metade para no meio do caminho para escrever a quem quer ver ao longo da semana, estipula data, horário e local. Frio ou quente. Nunca frio e quente.

Metade de mim pensa no que vai beber para sentir aquela sensação amaciadora do álcool descendo pelas veias e inundando a cabeça, afrouxando os nervos enquanto acidula o estômago. A outra metade pensa sobre o que irá escrever enquanto está sob efeito do álcool, ou o que irá escutar, ou o que irá dançar, ou o que irá me fazer movimentar. Pôr-se e nascer-se, corpo a copo.

Metade de mim odeia repetição. A outra às vezes repete pra provocar.

Enquanto sento para terminar o almoço no quintal de casa, o sol bate em metade do meu rosto. Sinto a pele sendo levemente acariciada por ele. Aos poucos, ela começa a arder, pelar e, consequentemente, a endurecer. Ela resiste à intensidade. A outra metade também esquenta, mas não demonstra. Ela desiste da claridade.

Longe, do outro lado, onde os raios não chegam. Perto, aqui ao lado, onde o auge do declínio acende metade.

- Estava pensando aqui, nesta distância toda, quanta coisa entre o chão que eu piso e o que você anda...
- Verdade, né? Louco isso, a gente não percebe tanta distância mesmo quando olha pra um horizonte desconhecido.
- Parece que eu tô logo ali e você logo aqui.
-Sim, parece.
- Eu te sinto quando sento no quintal para almoçar e tomar sol.
- Eu sei que sim. Também te sinto quando olho pro céu e vejo o tempo fechado, escondendo o sol pra quando estivermos juntos novamente.

Solstício.