quinta-feira, 14 de outubro de 2021

No fundo

Os passos até o centro da cidade não eram largos. Caminhava conforme a música em seus ouvidos. Trilha sonora por entre os tantos carros à margem da sua imaginação. Os rostos, aqueles sem som nos ouvidos, pareciam ranger as rugas de preocupação. Conflitavam com as fotos que iam sendo batidas dentro da cabeça daquele que, sozinho, tentava fugir de tudo e todos. Sozinho, mesmo assim fugitivo. As mensagens chegavam aos montes, mas a regra era ignorá-las. Uma espécie de jogo mental que ele fazia consigo mesmo. Tanto tempo se sentindo solitário fez com que se tornasse parte do à parte todo. Quando procurava pelas pessoas, achava-as. Quando era procurado, desaparecia. Ingratidão, insensibilidade, pouco caso, indiferença. Vão entender sobre tudo, menos sobre depressão. Menos sobre se tornar inacessível por não ser insensível. Trocar o sentir pelo “sinto muito, mas não estou”. Vão entender sobre tudo, menos sobre isso do “consigo mesmo”, sem mais ninguém.

O que comer? Em qual bar parar? Quem eu não quero ver e corro o risco de? Para onde não ir? O mapa se faz pelos caminhos conhecidos ou pelos desconhecidos? Por onde ir ou por onde não ir? Escolher a comida e o que beber ajudava a ter alguma sensação de autonomia. Isso, em partes, também lhe devolvia certa quantidade de serotonina, adrenalina, ou falsa sensação de ter algum controle sobre aquele vazio imenso. Desenhar o horizonte com a ponta do dedo para, em seguida, tentar segurá-lo com as mãos. Sentou-se ao fundo, na última mesa, local íntimo, perto do banheiro e da cozinha, onde se come, é comido, livra-se do que sobrou e reaproveita os restos. Onde tudo cheira forte, igual gente. O atendente de sempre, com aquele olhar cotidiano. Conforta encarar um desconhecido que sente te conhecer pela frequência e não pela intimidade. Tão perto, mas tão longe. Conseguem sentir o cheiro um do outro. Sobra demais, exala demais. No dialeto dos cansados, apenas as frases feitas têm valor, pois facilitam o caminho até o final previsível. É na metade da conversa que eles se encontram, atendido e atendente, perto da cozinha e do banheiro.

O primeiro gole faz a mandíbula repuxar e arder um pouco. Sua mente sempre lhe dá o mesmo diagnóstico: é o estresse ciente de que o álcool irá lhe tomar. A respirada profunda, a garganta mais ainda, desce e vai soprando as feridas. Uma cura que dói, talvez. Escreveu assim numa das páginas, numa das vezes que esteve ali, ele. A cena era aquela, sem nenhuma excepcionalidade. Um cara sentado, sozinho, envolto nas suas questões, envoltas na sua mente, envolta na angústia sem fim que a tudo tempera. Não tinha ele como dar aos outros as razões para seu sofrimento. Só sabia que doía de um jeito não compartilhado com os demais. Era uma dor dele, algo antigo. Um pertence íntimo.

Quando a mordida perdia força e os lábios passavam a pesar mais, olhava ele para o nada. Diante de si, outras mesas, outras bocas, copos, cardápios, cheiros, mas ainda assim distantes. No fundo, o íntimo, a cozinha e o banheiro permaneceram com ele e, de tempos em tempos, com o atendente. Bastidores daquele momento, estão e só. Nada de mais, nada de incrível. Tudo sem novidade. A vida é assim também. Muito mais assim do que pensa a maioria das pessoas. Momentos especiais não fazem sempre história tampouco se tornam. Já os comuns, que são feitos para serem esquecidos enquanto vividos, prematuros, vêm ao mundo para dar adeus e dizer que um simples segundo pode pesar demais. No fundo, pesa mesmo.

Todas as vezes em que foi até o bar carregava na mente algumas tantas questões. Problemas no trabalho, em casa, nas relações diversas, problema com o mundo e com ele mesmo. Esta era a razão para ir sozinho e não responder às mensagens. No fundo, é íntimo.