quarta-feira, 2 de abril de 2014

De tempos em tempos se faz o para sempre

A vontade era de reencontrar o ancestral em mim. Aquele que se instalou no meu corpo e trouxe seus antigos escritos e histórias. Um “eu” de ontem que nasceu anos antes do parto. Mais de suas décadas se passaram e com ele tive alguns instantes de interação, deixando que assumisse por completo o controle do corpo e mente. Ele nunca pediu licença para isso, eu que sempre dei minhas lacunas como espaço para que se criasse. Alcateia de um predador só. Só em mim.  

Neste instante, sinto sua pele envelhecida e acinzentada roçando por debaixo da minha, ainda no auge de sua vitalidade. Aos poucos me retiro, resigno-me sem objeções e passo todas as palavras a quem, em silêncio, sussurrou verdades e mentiras de dentro para fora dos meus ouvidos.
E que assim se faça o chamado do esquecido.

“Exilei-me em terras distantes. Castigado pelo tempo, caminhei vagarosamente pelas bordas da moral, sempre desenhando um contorno torto que no intuito de cercar meus excessos. Já vivi demais. Vi e vivi demais. No entanto, cansei pouco. Dormi menos ainda e cá estou em chão novo e desconhecido. Meus bolsos sempre foram vazios de sementes, então o que me resta é jogar neste vasto campo cinzas e mais cinzas. Dos cigarros nunca me abstive.

Vilão, herói, comum. Nenhum. Só um, eu e mais ninguém. Digo, as memórias ainda me habitam. Tenho muitas delas guardadas nas gavetas da cabeça. Do amor herdei a mágoa, um "não saber" do outro que deixou o malefício da dúvida latente na cavidade do peito. Um rastro de poeira de gente perdida pela rua.

Do ódio, tudo. Rancor, raiva, angustia calada, pele dos dedos a sangrar e peso - do corpo perdido, do cansaço ganho. Muito peso. Se havia movimento dentro de mim, se ainda restava fluxo, hipócrita eu seria caso não atribuísse à promessa de vingança total força motora. E sejamos francos, combustível melhor do que ela não há. Mata a quem dela se farta, mas ao poucos. Mata de imediato os que a recebem como juíza, ceifadora, algoz.

Este menino, cuja história ainda clama por muito a ser escrito, deu-me morada, ofereceu-me casa. Aconchegado por entre seus órgãos eu me transformo no mal. Puro mal que contrapõe tal existência raquítica de reais frustrações. Ele não sabe o que é sucumbir ao próprio dissabor. Mas vai saber.

De tempos em tempos se faz o para sempre.”


Rosnou o coração. O verdadeiro lobo nunca se satisfaz. 

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