sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Fundo dos olhos

Antes de estilhaçar seu crânio, a explosão havia esfarelado outras montanhas. Corria lenta, de longe, enquanto nas beiras da completa destruição sequer deixava um segundo para se tentar fugir, esconder, viver. Como não dizer que estava viva a obliteração completa da vida? Chamá-la de morte, então? De fim? Como, se havia apenas começado a alguns instantes? Fotografava em sua última memória - ou talvez a primeira próxima - algo que, de fato, ninguém veria. 

Não era apenas fogo alaranjado como o de forja. Misturava-se também com terra escura. Comparou com as vezes em que usou os próprios dedos para fazer caminhos no barro, intervindo na paisagem natural. Comparou com vulcões sangrando também. Enquanto se expandia a devora do tudo, percebia que a morte era menos assustadora do que a vida contou. O que mais se sobressaía à sua chegada era uma profunda curiosidade. Magnetizava-o. Puxava-o para o não saber, por querer saber. Morte que chama.

De repente, chuva quente. Um vento de despedida que rodava feito abraço da partida. Sopro no rosto acalma. Inevitavelmente, tudo remetia ao adeus. Talvez por conveniência, mas ele não se importava. Estático, apenas aguardava o momento em que seria engolido pelas fúrias da terra vivida. Nada poderia paralisá-lo mais do que o desprendimento absoluto de uma história a qual foi obrigado a escrever. Mesmo sem saber, preferia acreditar que depois de alguns minutos, passados, lembranças, nomes, antigas dores, os desejos não vividos, tudo isso nada seria além de um eterno presente engasgado na garganta do vácuo existencial. Não haveria mais ele para dar ao pó memórias. Seria apenas pó, sem ida nem volta. Sem móvel, estante ou cômoda.  

O calor deitou sobre sua pele. Olhos viraram duas supernovas e o branco absoluto prevaleceu. Conseguiu seu objetivo. O branco foi o último a ser visto. Do outro lado, observou ele se render ao seu constante desejo de aniquilação. O branco absoluto conseguiu. 

A pequena esfera, há alguns metros de distância, correu mais do que o tempo e foi crescendo conforme se achegava no alvo. Ele percebeu que a rigidez do ferro sumira e em líquida partícula transmutava-se a devastação. Ali, precedia o olho o olhar, parecia o de um bicho dos que era caçado, não dos que caçava. Olhar de presa, de abate, do tipo que é grande, negro, profundo, inocente e em constante pedido de misericórdia. Quem destruiria a quem, no final do estouro? Negro, profundo e destruído. 

Explodiu seu rosto.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Alguém o tempo todo

Escrevi umas três cartas porque sabia que não seriam entregues. Desde a adolescência faço isso. Escrevo para que não seja lido por mais ninguém além de mim. Nada de novo ou extraordinário. São apenas as limitações do ser. 

Nestas escritas, consigo formular a descrição dos sentimentos mais turbulentos que carrego. Tento, ao menos, ler-me para crer que ainda estou ali. Mesmo com toda a angústia que me desmotiva, estou ali, talvez registrando pela última vez o quanto dói. Recentemente, grafei aqui que escrever é algo característico de pessoas doloridas. Se repito é porque acredito.

Há dor de diversas formas. As que ardem de tanto aproveitarmos bons momentos cuja conta chega depois. O corpo cobra - e por corpo eu me refiro a tudo, carne, osso, sangue, pelos, mente, imaginário, ansiedade, melancolia, desejo, suor, feromônio, vontade de fumar. Aqui me dói quase tudo. Parece, ao meu ver e sentir, que se tornou meu eu o da dor tal qual fosse, assim, seu habitat natural. De certo, quando me pego volta e meia ligado por completo à realidade, sinto um incômodo que rasga a garganta e pressiona o peito, ajoelha os joelhos e me obriga a deitar. Em queda lenta, recolho-me rápido como roupa no varal. Também escrevi isso recentemente, repito porque acredito na velocidade com a qual me retiro daqui, daí, dele, dela, do corpo todo. Quando escrevo "aqui me dói quase tudo", cito quase porque, na verdade, falta-me a dor por fumar e provocar meus calos vocálicos. Dói não doer por isso, confesso. 

Admito, nesta toada, que assim, enquanto doer, sinto-me menos distraído. Há um ponto de concentração - ou pontos. Mais jovem, costumava ficar trancado em meu quarto escrevendo por horas enquanto ouvia a tempestade fazer seu espetáculo janela afora. Quando ela retumbava em trovão, eu terminava um parágrafo respirando sutilmente, quase que sem ar para puxar. A pressão caía porque - a ciência explica, mas eu, aqui, faço do meu jeito - o coração parecia achar que era sua hora de descansar. Por que doía tanto? Acabei de me perguntar isso enquanto terminava a frase anterior. Talvez por não ter algo ou por terem tirado de mim o pouco que tive. Quase todo mundo me levou algo. Escrevo "quase" porque houve aqueles que apenas deixaram dor. Um novo hábito para que meu corpo vestisse e se acostumasse. 

Sumo, mudo, quero, porém não consigo conversar. Espero que conversem comigo mesmo eu não respondendo. Que me busquem, que me irritem por insistir em falar com alguém que, evidentemente, não está em bons tempos mercurianos para vigorar comunicação. Dói não responder, também dói não ser perguntado. Escrever é a prova disso. 

Nas épocas em que rio demais, também há dor. Se sentir feliz demais, completo, amado, querido, respeitado, visto, admirado, útil, dói. Dói porque acaba no próximo amanhecer. No exato instante em que se olha para o lado e não se sente mais paralelo às alegrias frívolas da vida que não é a concreta, apenas a ideal. Crescer dói, nascer dói, ficar dói, partir também, parir dói tanto quanto partir, é chegar e saber que se deve sair, é amanhecer porque o anoitecer precisa acontecer. A dor é o tempo. O tempo todo.

Aqui, onde não me encontro, despenco frases e mais frases que só fazem sentido para este meu jeito de ser que se empurra pelos anos, fingindo que aqui segue porque tem de atender às demandas de pessoas que precisam das minhas capacidades. Já estou morto, só falta morrerem antes de mim. Enquanto estão vivas as pessoas da minha vida, doo-me por elas. Por mim. Minto quando digo que é por elas. Menti também ao escrever que o texto anterior, aqui publicado, seria o último do ano. Geralmente, quando preciso mentir, faço enquanto digo, não enquanto escrevo. Aqui não tem outra saída senão a da verdade. A que angustia.  

Doo-me de dor, não de doar. Raramente compartilho-me. Doo-me por tê-las amado, as pessoas todas. Vivo apenas pelo medo, simples medo, de não me doer mais. E nada sentir além do grande vazio que sempre me habitou, em tempos ancestrais ao da dor. 

Cada carta que não entrego, mas escrevo, é uma dor que mantenho minha, para me manter meu. Por que me quero assim, tão próximo de mim? Porque quando me repito, é sinal de que ainda acredito no que sou. 

Alguém com suas limitações. Alguém que sabe ser. Sabe se doer, mas não se doar. 

Alguém o tempo todo. 

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Dolorida

De braços finos e longos, descalça, com um vestido amarelado e os cabelos libertos. Couro da cabeça era escuro feito céu. O retrato da infância. A voz aguda rompia com a gravidade da adultez inevitável que a observava. Cresceu, viveu e meu viu crescer também. 

Na minha pequenez, eu me encantei por seu sorriso largo que fazia linha-fina para os olhos atentos, curiosos, em busca de alguma novidade. Eu me libertava quando imaginava que ela me via dançar. Seu jeito de conduzir os versos enfeitiçava o corpo todo. Não havia julgamentos, apenas liberdade. Dançava sem medo de ser visto, de ser estranho, de ser muito como ela: uma fruta de gogoia. 

Quando o que me restava eram cigarros, procurava por sua voz também. Cantava profunda, misturando o cinzeiro com o amargo do álcool. A dor não tinha que ser anestesiada, nem a rouquidão pospor o trago. Embalava, isso sim, a angústia numa trilha devida, dolorida. É tão paradoxal gostar de sofrer apenas para ouvir sua voz uma vez mais. Eu sofria te ouvindo e fumava o maço pra morrer vivendo.

Nem me conheceu e sabia de mim. Sabia que eu era tímido, mas adorava dançar, que eu era quieto, mas amava cantar, que eu era magrelo, mas tinha a vontade pesada, que eu frágil, mas com a fala infalível, que eu gostava das cores, do verão, das flores, dos bichos todos, do cheiro de fruta na camiseta melada de manga, mas sabia me nublar na tempestade, fechar a cara e o tempo, recolher-me de um jeito que ninguém conseguiria achar para engomar. Era uma mãe calejada e cheia de anéis que me acariciava a cabeça. 

Seu jeito de se mexer me ensinou o que era movimento, dentro e fora do corpo. No balanço, a tradução do sexo, do desejo, em suas letras e timbres, era a que dava o tom ao meu dialeto íntimo. Teu escorpião de veneno doce, teu rancor sofisticado e o amor simples. Na balança, pendia o amor simples de gente dolorida. 

Havia uma tristeza entre nós. Mas há muito de nós entre o amor. 

Doloridas as pessoas que escrevem e cantam. 

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Todos vão embora na hora certa

Meia volta da partida. O chegar e se despedir. Começando a terminar. Um sistema imunológico de gramática reativa na qual não se faz nariz de cera nem flor à pele, tudo é pontual, conciso, marcado para já estampar o pano de fundo e proteger o cenário. Se veio é porque vai. Se apareceu é porque desaparecerá. Se acolheu, abandono é. 

Bastou um silêncio. 

Quando diziam "o tempo vai virar", era necessário conjunto de sinais. Cheiro de terra evaporando do chão seco suado de si, vento morno, vento frio, agitação das árvores, os bichos se recolhendo junto das roupas no varal, a gente esperando o que já sabia. Depois de muito barulho, o silêncio que precedia a tormenta. Só que era diferente de tudo o que já se podia ter sentido. O um silêncio que basta é aquele que não se deixa perceber porque de barulho não foi feito. Não teve que calar nada. O silêncio que basta é aquele que dá início ao silêncio que muito dirá. É um calado que fala demais. 

A mente sonha com respostas. Ela sabe que o consciente precisa de um apoio qualquer. Reúne, então, em seu salão de festas e tragédias o  antagonista. Caberá ao inconsciente rabiscar explicações tal qual se costura o discurso de um rei a beira da loucura. Tenta lhe passar racionalidade por meio das palavras, mas sabe que a própria ação de escrever para insanos é, também, atestado de insanidade. A quem se quer enganar? Ao louco que deveria ser são? Ou ao louco que acredita ser possível gozar de qualquer sanidade? E dá para gozar com sanidade? Loucura. Barulho. Sonho. Algumas respostas. 

Veio, mas por que foi? Precisava mesmo? Sempre precisam. Há justificativa. Crianças são preparadas para o mundo. Aprendem desde cedo a lidar com diferentes faltas que irão lhes preencher. Uma delas é o abandono. Existem as que aprendem a manter as companhias sempre por perto. Outras conseguem ser autossuficientes e, por isso, atraem quem deseja se aquecer junto de calorosa confiança. Abandonar antes evita de ser abandonado, concluem aquelas que não se assemelhavam às mais sociáveis. No meio do jardim, um botão não abria nem fechava. Já tinha cor, mas escondia as pétalas. Estava no meio entre crescer e se manter muda. Bastou um silêncio. Há crianças que vivem as companhias, que se conectam, que sorriem, florescem, mesmo sabendo que tudo irá acabar em abandono. Seu pavor não vem do fim, mas de não aceitar que ele virá. 

Quando se aproxima demais, sente o cheiro. E o cheiro sentido também sente quem o sentiu. Perfumam-se. Quando a essência é nova, marca mais. A todo segundo ela reaparece nas narinas e traz memória. Depois se torna banal, some, vira cotidiana. O cheiro sentido não desaparece, mas quem o sentiu sim. 

Se vai, por que não foi logo? É confuso entender os ponteiros do relógio quando se é novo na arte das horas. Falam que passa rápido o tempo bom, demora o da ansiedade. Se ele faz tão bem, se com ele os segundos são, de fato, aqueles depois dele, como aproveitar o presente que, despido do embrulho, dá-se ao regalo do abandono? Foi um silêncio só que anunciou um adeus sabido. O medo é de não aceitá-lo. Por isso sonhamos.

Todos vão embora na hora certa.  


quarta-feira, 11 de maio de 2022

Eu não sou o homem?

Havia um homem apagado naquela casa. Os portões quase caindo não mais serviam no bem-vindo. Sem convites, ninguém entrava. Alguém, às vezes, saía. 

Pelas caminhadas solitárias da rua que abrigava seu passado, ia indo. Restava-lhe apenas o cotidiano. Horas iguais, dias iguais em quadrados diferentes de calendários atualizados a cada 1 de janeiro pelo dono da mercearia. Não dava bom dia. Seu silêncio era sua principal defesa. Ninguém sabia dele. O desconhecido causa medo. Tentaram lhe atacar, mas como atingir um ser que presente nunca se faz? Tal qual fantasma, vulto, aparição, não tocava os pés no chão ao flutuar, dia após dia, rumo aos mesmos endereços. 

Não queriam acabar como ele. Sem família, sem continuidade, aguardando a chegada da morte. Outros se sentiam desprezados e atribuíam ao homem uma arrogância descabida. Como, tão pobre, poderia desprezar os demais à sua volta? No fundo céu de sua boca cerrada estavam as tantas histórias que ele poderia lhes contar, mas não quis. Nunca quis dividir com ninguém tudo o que lhe partiu por décadas. O quanto dele tiraram, o quanto dele levaram, nada disso saía do poço que se tornou o homem sem fundo. Um ponto-final que a todos incomodava.

Sem cheiro, sem rastro, dentro de sua casa imperava a penumbra que só conforta aos paridos sem choro. Como seria o fim do universo? Tão misterioso quanto os cômodos daquela velha construção esfarelada pelo cansaço cimentado. Seu lixo, o que sobrava do prato, nada, não havia como traçá-lo. Desistiram, então, os vizinhos. Que fosse ali, com aquele homem, o fim do saber, a morada do caso perdido, do sem assunto. Não valia a pena tentar ajudar quem não quer ser ajudado. O povo perdeu. Sentiu que perdeu. Não cumpriu seu papel de comunidade, não salvou uma alma doída, não fez sorrir o rosto recolhido. Aquele homem era a prova de que o povo, tal qual a voz de deus, era inútil para desalmados. Aceitaram, as pessoas, que aquele ali já não estava mais entre elas. O que se via era o que não existia. Um retrato fiel da ausência. Sem cheiro, sem rastro. 

Sua vida, despedida de adjetivos, ganhava valor apenas na fala alheia. Miserável, desgraçada, abandonada, desenganada, injustiçada, penosa, patética. Sentenças dadas em julgamentos inocentes. Cada um que analisava, à luz de suas convicções e moralidades, a decadência do sujeito que vive condenado à sua exclusiva - e inevitável - companhia, sentia-se um tanto mais vivo, um tanto mais vigoroso e sortudo, um tanto mais roliço e bem pago, bonito e amado, querido, desejado, alinhado à graça divina que é acordar pela manhã e saber que não é, o um dentre os cada, o homem. 

Eu não sou o homem. 

Nos séculos que se passaram, empilhados nas prateleiras de sua estante de livros, morava ele. Ali, viveu e vive. Vai e volta. Recobra, recupera, cicatriza e sangra. Leu e lê. Foi e ficou. Somente ali era possível encontrá-lo, acessá-lo. Escreveu e escreve. Sobre a mesa, o último de seus lembretes. Sobre o mundo, as notas que revelavam cantos nunca antes relevados nas linhas dos grandes historiadores. Sem falar com ninguém, conversou, com sua exclusiva - e inconsolável - companhia. O que lhe restou era o que lhe recolhia. 

"Eu não sou o homem? 

Não é que não escuto quando falam. Eu escuto. Muito menos que não digo, do diafragma à goela, alguma resposta que satisfaça o outro. Não me escondo quando olham, e olho quando não se escondem ao olhar. Eu estou ali, não estou? Lá também. Consigo sentir meus passos, os ossos estalando e o que me resta de articulações animando este corpo de antigamente. Eu estou ali, juro! Lá também já estive, sei que estive. 

Quando disse que me machucavam as palavras sobre quem sou, eu não estava ali? Quando defendi meu espírito das maldições lançadas por falsos iluminados, eu não estava ali? No dia em que deixei de aguentar calado os toques, os puxões, a lâmina fria abrindo minha carne e a mão mais fria ainda buscando nas minhas entranhas a resposta que comprovasse incapacidade natural, eu não estava ali? Meus dentes, meus olhos, meus lábios, meu peso, tamanho, o que era meu, dado pelos meus, de antes, de ontem, de séculos, quilômetros, páginas e mais páginas, de histórias, quando a tudo removeram, eu não estava ali? 

E quando amei, fui amado, e depois jogado à marginália de minha própria intimidade, eu não estava ali? Quando escrevi com a nigrosina de meu tom posto e imposto como manto a cobrir o mais incendiário dos corações, eu não estava ali? Quando calei de ódio, quando sorri de raiva e indignação, quando perdi a tudo e todos, eu não estava ali? 

Quando cantaram minhas músicas e eu tapei meus ouvidos para não destruir a memória límpida que tinha delas, eu não estava ali? Quando me deram tudo o que eu precisava para continuar existindo e sobrevivendo num mundo que não me era manso, eu não estava ali? Quando me deram a chance de continuar vivo pelo bem de seu sadismo, sem viver junto deles e delas, sempre distante, inalcançável, intocável, eu não estava ali? Deram-me tudo o que eu precisava para existir: as lembranças físicas e intangíveis de quando eu estive ali. Na carne, no âmago.  

Eu não sou o homem? Eu estava ali! Não sou? Não sei. Pouco me importa saber, agora, se sou o homem. Todas as vezes que fui, preferia não ter sido. 

Eu estava ali quando me bateram por diversão. Estava ali quando me violentaram a alma, a carne, o cálcio dos ossos, o marfim envolvendo meus olhos, em cada canto, eu estava ali quando me levaram para ser o homem e pagar por isso. Estava ali quando procuravam o homem que roubou de bolsos vazios, que matou sem arma, que trapaceou sem jogo. Eu sempre estive ali quando procuraram pelo homem. 

Quando não morria fácil, também procuravam pelo homem que contaria boas histórias sobre o terror que o secou o sangue. Eu estava ali. Estive quando ele me olhou e disse que amava o homem que eu era. Nos anos em que me fez sentir que sabia, eu, o que era ser homem para outro homem, afirmo, estava ali. Quando partiu e me deixou sem adeus também. 

Eu estava ali, em todos, em tudo, só não como homem, apenas. O artigo que me precedia e perseguia especificava também a necessidade que os outros tinham de me alcançar para estraçalhar o que viam, ouviam, sentiam do odor forte de quem exalava fogosidade. Eu nunca ardi. Nunca. Eram os fitares dos outros que me queimavam. Eu nunca pelei mais do que pelou o peito quando precisava tirar dele o calor para lutar. Por fora, eu nunca ardi. O fogo é neles, não em mim.

Eu não sou o homem? Para eles, quando convinha, sim. Comigo, sozinho, não. Fui eu muitos, demais, em excesso, abundância, uma estante farta de livros e seus instantes mirrados. Definido no 'o', não caibo. Diluído no um, sumo sem ser visto e deixo rastro ou cheiro algum.

Eu não sou o homem. 

Sempre estive entre eles. Nunca com eles.

Só, sempre só, homem. Assim estive quando estive."

Homem, ele, por mais um dia, não se esqueceu de quem nunca foi, mas esteve.

Quando esteve. 

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Flume

Não contei as lágrimas. Sei que foram poucas. Antes eu tivesse as deixado chover por fora. Escorri por dentro. Veio a cheia. Inundei. 

Flume. 

São os rios solitários? Profundos eu sei que são. Até os rasos fazem afundar. Queremos mergulhar neles, buscamos seu profundo, seu íntimo, queremos caber dentro do rio para com ele correr. Ao lado, a dois, estreitos entre as terras que morarão debaixo das unhas quando, finalmente, tocarmos seu fundo. Afundar, profundo, fundo. Busquei sempre alguém para correr comigo, em minha intimidade. O tempo que passou, eu permaneci como solo fluvial. Tive-me, enchi-me, fiz divisas para proteger o que era meu, sem proibir que fosse do outro. O tempo que passou, não eu. 

Escrever mais para contar menos. Não são tantos os textos. Quem dera eu tivesse escrito para fora, na fala, na conversa, na terapia, o que seja. Recorri ao de dentro. Plúvio. 

Senti falta por ter sentido vontade. Quero porque sempre quis. Há tempos que quero porque há tempos nunca tive. Ele passou, eu fiquei querendo. Passou e me olhou de leve, com ternura, de uma maneira que nem eu mesmo conseguia me olhar. Espelhado em seus castanho-escuros, vi-me, enchi-me, saí das divisas e transbordei como nunca antes. Nem o tempo conseguiu fazer com que ele passasse. Por isso estou aqui. 

O desejo de ser amado para poder amar. Na base da confiança, na certeza do curso a ser seguido, a incerteza do sentimento que nunca chega é certa. Quem corre por mim além de mim? Quem escorrerá, um dia, ao meu lado, dentro e fora? E sentir que eu posso ser para o outro o fio que rompe com a seca, umedece os lábios, dá de beber e toma para si - a goladas - as correntezas todas que livram o amor de suas próprias amarras? Posso eu sentir? De repente, sinto porque não posso, mas quero porque sempre quis, mesmo sem poder. 

Há sempre alguém, mesmo sem existir o nome, o endereço, o tamanho dos pés e a cor dos pelos. Há sempre alguém dentro de mim. 

Custa muito amar, daí nasce o desejo. Amo porque quero queimar o sentimento. Desejo consome, esfarela e acinzenta todas as cores. Tudo vira cinza depois do beijo carminado. Tudo some. Fica o rastro, só. Amo desde muito novo, e de muitas formas amei. Sozinho, em todas elas. Amo porque não me obrigo a sentir. Sou pego de surpresa, todos os dias, pela minha capacidade de renegar uma força tão genuína e, ainda assim, pulsá-la nas sutilezas e detalhes do cotidiano. Na superfície, reflito o céu. No fundo, aflito, quem passa é o tempo. Eu fluo.

O que eu quero. Ser rio. Pra alguém além de mim. 

 




quarta-feira, 13 de abril de 2022

Amar depende

Passei as férias tentando escrever mais algumas páginas de um livro que não sai da minha cabeça há anos. Nem um ponto sequer. Manteve-se dentro de minhas ideias. Recentemente, inclusive, só consigo pensar em cigarro. Digo “recentemente”, mas na verdade é cotidiano. Persegue-me esta vontade inegociável. Engano a mim mesmo dizendo que “amanhã eu compro um maço ou vou atrás de tabaco orgânico”. Amanhã nunca chega. 

Também me acompanha as tantas angústias. Na verdade, não sei por qual motivo ainda me lembro do que não esqueço. Cigarro, angústia, a necessidade de vir escrever para registrar o que não lerei nos dias futuros. Não leio o que escrevo e isso nada tem a ver com arrogância de escritor. Não leio porque não me desperta curiosidade. Eu já sei o bastante de mim. Quando, às vezes, subitamente, descubro algo novo sobre mim, guardo. Nunca se sabe por quanto tempo durará – se é para sempre ou momentâneo. Nos últimos dias, comecei a pensar mais no futuro. Ansiedade provavelmente é a razão. Não sei pelo que espero, mas sei que é sempre pelo pior. 

Enterrar alguém sem ter que ir ao enterro, não conseguir pagar as contas, ver a casa desmoronar, não sei, mas sei – é o pior, sempre. Pode parecer cruel, mas desejo fumar e me ver sozinho, por completo, sem ninguém dependendo de mim. Talvez porque eu saiba como lidar com meus problemas, porém odeio ter que lidar com o dos outros. Cobro-me demais quando sou requisitado por outro. Se não consigo ajudar, carrego, então, a desgraça alheia junto da minha. Dobro o peso no lombo e não peço ajuda. Meus amigos sempre vão dizer que preciso de tratamento, terapia. Estão certos, mas eu já sei o bastante de mim para entender que não desejo conhecer nada novo ou revirar o velho. Estar como estou não é bom, só é pior quando há pessoas evolvidas. Gente ligada a mim. Eu não quero. Queria gente por perto, mas que não estivesse ligada a mim, dependendo de mim, esperando por mim. Ensaiei uma resposta para meus amigos quando perguntassem “o que você gostaria de ganhar”. Pensei em dizer: amor de quem, por ventura, eu amasse. Nunca perguntaram. Nunca responderia isso também. Amor não é dependência, mas amar é. 

Morre o jovem que nunca nasceu. Ele, também, uma promessa vaga. Vai-se o tempo, a vontade, a gana, fica o que sobrar. A gente come sem sentir sabor, parece até que fumou demais e perdeu o paladar. Não se fuma para sentir gosto, pelo contrário. Ter-me-ias querido ser insípido no beijo, na fala, na cala, no céu cavado da boca. Não fui. Traguei demais, camuflei-me na névoa que perfuma o fim com cara de fim, sem riso, sem abraço, sem gosto de fumante com língua de cinzeiro na do amante. Estourei meu peito.

Que os dias durem menos - como um maço - quando se há o que entregar de si para o mundo. Durem mais - como o último cigarro - nas vezes em que não somos encontrados. Nos poucos dias em que nos tornamos inalcançáveis, incansáveis. Mão nenhuma nos toca, a polícia não nos pega a troco de nada, ninguém mais nos vê pelo contraste de nossa cor. Somos só nós, eu, você, longe e sem contato, sabendo um do outro mais do que o suficiente. Eu te imagino fumando.

A mim, mais um dia. Depende de como ele for, eu fico mais anestesiado. Olho sempre para meus dedos e vejo o quão tortos são. Lembro de minha vó, de ter sentido, a vida toda, que já nasci com mãos envelhecidas. Mãos de bruxa que, com um cigarro por entre os dedos, ganhavam vida no desgaste. Amarelavam as unhas, pareciam lentes antigas de óculos ou durex de décadas colado em alguma foto, caixa ou controle remoto. Amarelam com o tempo. Fica o medo estampado. Quem fuma tem medo de quê? Se o maior deles é a morte, pode ser que seja dela. É possível ter medo sem se amedrontar. Também é possível amar sem depender. Já vi nas histórias dos outros, só na minha que ainda não.

Este livro será escrito, eu sei. Amanhã eu fumarei, sei disso. 

Amar, depende.   

terça-feira, 22 de março de 2022

Toca pra chamar

O toque calejado não sente muito do topo da gente. Escorrega pela casca esfregando as montanhas secas sem cachoeira, secas e ressacadas, sobre a pele ressentida. Não se sente muito, mas passa a mão mesmo assim. Toca pra chamar, num frio momento em que se tenta soprar a brasa do tempo, uma fagulha de chance, um carinho qualquer pro cansaço próprio. Toque de recolher.

As horas passadas e ultrapassadas do dia sem fim nunca chegam. Nunca bastam. Seguem firmes e fixas no infinito buraco das obrigações. Contas choram mais do que filhos que nem se tem, dívidas cobram mais que rancores muitos tidos, sustento pesa tanto quanto o corpo suspenso no ar, caindo sobre a cama arrumada para a manhã de amanhã. Leva-se, lava-se, alguns segundos a mais, só, como as gotas a cair e acariciar a moleira sempre fervente a benzer os fios crespos do profundo cabelo em quente momento que corta o frio. A geada do esquecimento puxa as datas perdidas e as enrola com a toalha. Demora para sair, merece o atraso, é sua vez de não estar. 

Quando se cuidou por último? Quando teve medo de se perder? De morrer sem um grande final? De embranquecer o olhar e encontrar, no fim do túnel, um retorno indesejado? Precisa voltar, precisa trabalhar e responder às tantas bocarras cheias de notificações. Caninas, molares, sempre impacientes como dor de dente, amolando e pedindo tudo para ontem –que começou desde hoje, já na hora de ser a manhã de amanhã. De um cômodo ao outro, não cabe mais. Esbarra o cotovelo na quina que range a madeira e prensa a mandíbula. Sua língua não desenrola faz tempo. Não encontra outras, não dança, mas cabe inteira no céu acima. Algo tem que caber na boca.

E os dedos, e as pegadas invisíveis sobre a madeira, elas ficam. Quando sair, quem fincará? Seu cheiro vai e se pega contigo e com o outro que chegar. Você não o sente, mas ele sim. Autorreconhece-se como aquele que cobre a mudança para evitar poeira. Um novo lugar para recomeçar o cotidiano. Sobre as caixas, aquele velho manto que esfarela a cada fim de dia. Pó de si e o véu da fragrância original numa dialética imóvel dos móveis que, amanhã, já serão parte da manhã.

O cansaço não muda. As horas também não. Mesmos, conhecidos, manjados. Na nova solidão, cheira a própria carcaça. “Com o que me farejo?”. O que vai nas paredes? Algumas fotos, um quadro. De novo? Nada. São os mesmos também. Há de se ter o gasto como parte da existência custosa. Só de conseguir desempacotar tudo e colocar o melhor de si nas prateleiras já deixa fechado com que chave a porta será aberta para os de fora. Colocou no bolso do outro, mas não trocou pela nova. Espera sua visita tocar a campainha, espera sua visita tocar sua mão e entrar, espera sua visita sorrir e lhe abraçar. Enfia a mão no bolso dele, tira a velha, coloca a nova, senta e assiste, de dentro para a fora, a porta, mais uma vez, ser aberta. Não se despede. Apenas admira quem lhe faz sentir em casa na sua casa.

Os calos seus na pele do outro são como um peso a mais. Um toque a mais. Firme, rígido, de quem chama para ficar. Toca pra chamar.