sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Fiz-te

No barro da realidade enterrei minhas mãos. Tirei uma lasca do todo e comecei a modelar você. Meus dias se arrastavam vazios, esparramados por um longo campo deitado diante do horizonte labiríntico onde o olhar se perdia a cada piscada. Eu precisava de mais - que não fosse mais de mim mesmo. Por alguns minutos enchi os pulmões de ar, soprei o monte de ideais que se acumulavam na cabeça e embaralhei meus desejos. Pouco a pouco, fui organizando o que viria a ser meu. No caso, você. Fiz-te.

O menino de terra

Tomei cuidado para não deixar que seus braços fossem longos demais. Seu abraço deveria ser curto, firme, envolvente e seguro. Em seguida, trancei as pernas para que no cainhar houvesse ginga, agilidade e graça. Cada passo, um desvio pra mais perto de mim. Ombros largos, pista para meus entrelaços, peito vazio, pro meu querer residir e a pele lisa, banhada pela cor do sol e do solo fértil. Ainda evitava trabalhar seu rosto.

As mãos eram pequenas feito castiçais, próprias para sustentar, à luz de velas, o clarear do meu sorriso ao te ver surgir diariamente. Penumbra nenhuma seria capaz de nos apagar. Assim ficou seu toque: um alicerce indispensável, um "dar de mãos" morno e delicado que em dias de ventania me soltava um beijo no ar. A inspiração estava em seu ápice e me fazia perder horas ganhando anos de dedicação à sua concepção. Seria o parto a me dividir, tão esperado e tão doloroso. Cheio de prazer e medo, de "não saber".

Seu rosto era redondo, com pequenos olhos rasgados. Uma boca sutil, desenhada à ponta fina e que revelava o céu estrelado da boca a cada risada larga. O nariz se curvava em queda livre, despreocupado com a simetria alheia e comprometido apenas com a composição daquele que viria a ser meu novo horizonte - minha nova razão de se perder. As orelhas eram arredondadas como feijões e serviriam de entrada para meu sussurrar chegar até seus pensamentos mais altos.

Nos cabelos, uma tempestade. Redemoinhos, furacões, caracóis, emaranhado de cachos, maré cheia de volume, conchas perdidas entre o mangue de fios... Leveza, maciez, delicadeza, sem começo nem fim. De repente, caos, anarquia, nuvens carregadas... O topo de suas ideias era assim, um olimpo decadente, cada vez mais humano. O chuvaréu que precede bonança s(em) mim.

Pronto. Feito. Fiz-te. E quando abriu os olhos, não me reconheceu nem ao menos esboçou reação. Apenas encarou-me. E mesmo com todo meu esforço em demonstrar o quanto de amor já depositava em sua existência, nada o motivava a me retribuir tal sentimento.

Fiz-te por fora, ao meu modo. Mas por dentro você sempre será mistério. Coração não se modela.



terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Toque de areia


Das mãos secas, o toque de areia corria pela pele feito rio de um passado esquecido, deixando nas dunas curvilíneas do corpo deitado um rastro de ontem interminável. Afundavam-se os dedos confortáveis naquele desejo  movediço e lento, morno e suave que me fazia erosão nos lábios. Deixava o sol queimar a cama amarelada, invejar nossos dias mais longos e ser rei somente quando, cansados, cochilávamos sob seus coléricos raios ultra violentos.

Quantas vezes você me deixou escorrer pela garganta da sua ampulheta? Quantas vezes eu fui muito no começo e quase nada no final? Quantas vezes repetimos o tempo em grãos, contanto cada primeiro dos nossos segundos beijos? Recontando as sensações numa tentativa humana - demasiada humana - de viver o que foi bom como se fosse, de fato, pra sempre? Sempre assim. Todas as vezes. Muitas, inclusive.

Esfarelados no sofá da sala alheia, correndo pra não pegar chuva demais ou se cobrindo de maré cheia, amávamos-nos assim, por todos os cantos onde poeira fosse aceita. Deixávamos para o mundo um (pó)uco de ambos. E quando os dias difíceis vinham fiscalizar nossa bonança, você me sacudia da sua pele, tentando se libertar daquele rastro gasto de vontade incessantemente latente. Mas numa próxima brisa, lá estava eu novamente, dissolvendo-me em você. Cobrindo meu homem de outro homem.

Toque-me, sinta minha tempestade de areia dançar com seu corpo, feche os olhos, evite-me aos poucos, mas envolva-se como nunca antes. (A)Funda-se a mim.

Pois da areia viemos, e na areia nos amaremos enquanto houver deserto à flor da pele.