terça-feira, 2 de setembro de 2014

Um belo dia

Um belo dia para incendiar a própria casa e ver tudo se desintegrar. Paredes, móveis, roupas, plantas, cadernos do primário, documentos importantes, fotos, fatos e lembranças.

Um belo dia para destruir. Para libertar o desejo pelo fim prematuro. Escutar a madeira estalando e se contorcendo, passiva.

Um belo dia para sentar diante do enorme paquiderme de concreto, indefeso e solitário. Eu, ali, observando tudo ruir, em silêncio absoluto. Captando apenas a essência flamejante do momento único. De longe, um belo dia.

Um belo dia para apreciar o telefone mudo a derreter. E com ele todas as vozes que insistiram durante anos em me tirar o sossego. Suas teclas virando uma massa uniforme de nada. Os números deixando de ter razão, coerência e significado. Sem toques por hoje. Hoje que, diga-se de passagem, não passa de um belo dia.

Um belo dia para espalhar o cheiro de fumaça no bairro. As pessoas saindo de suas respectivas moradias para observar a minha a partir. Choram, berram, tentam me levantar pelos braços, mas eu estou pesando toneladas. O alívio me fez ganhar todo o peso que antes pertencia apenas ao mundo. E meus ombros agora podem doer por conta própria. Encerrei meu papel de Atlas enquanto esse belo dia se recusa a acabar.

Um belo dia para acender o cigarro nas brasas do meu passado. Fumando vagarosamente a despedida forçosa dos anos mais escuros que já tive. E nada pode me abalar, afinal, as estruturas que me mantiveram por aqui agora não são nada mais do que entulho. Sim, um belo dia para aposentar o endereço.

Um belo dia pra perder o refúgio. Abrir mão do lar e do retorno. Mudar-se para o abandono. Rua - que tanto me ensinou e foi, por várias vezes, minha cama, meu sofá e meu quarto. Ela sim estará sempre ali para mim e para o meu par de tênis sujos. Um belo dia para se contentar apenas com a roupa do corpo e a calçada dos outros.

Um belo dia para lançar à fogueira muitas músicas que já não me lembro mais. Versos, refrões, acordes, raiva, ódio, raiva e ódio. As labaredas se tornam azuis. Fogo frio, que arde mais do que gelo seco. Lá estão todas as letras que tanto cantei até irritar os calos das cordas vocálicas. Um belo dia para ficar calado. E só observar.

Um belo dia, serei eu a queimar. Mas por hoje é só.

Basta.

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