domingo, 13 de julho de 2014

XXY



 Não sabe disfarçar suas vontades. Entrega tudo no olhar. Escolhe as piores palavras e quando as ordena de uma maneira menos tosca, não calcula o impacto causado. Por isso se torna inesquecível e inigualável.

Irresistível.

Sol

De manhã quer simplesmente acordar e comer, sem se preocupar com o cabelo desgrenhado, olheiras ou barba por fazer, nem com os seios doloridos ou ereção involuntária. Deseja não se incomodar com o hálito, lembrar de calçar os chinelos ou se vestir. É acordar e sair. Um parto diário sem que lhe recebam com roupas azuis ou rosas - muito menos verdes ou amarelas. Quer chegar nua, tão nu quanto nasceu.

Não pediu para ser X nem Y. Nada disso lhe pertence e do "tudo um pouco" quer muito. Imagina-se com a cabeça raspada e os lábios rubros. Depois muda um pouco o tom da pele - tira a maquiagem e a deixa natural. Calça sapatos, depois - descalça - corre em busca de uma tesoura. Corta as mangas da camiseta, vê as próprias costelas enjaulando as laterais do corpo e sorri. Aprecia o traseiro, arranca os pelos das axilas, apara os das pernas e deixa os do rosto. Gargalha por alguns minutos, olha para os pés, modela as unhas com perfeição e vai assim mesmo. Sem perfume, só com cheiro de gente mesmo - gente homem, gente mulher. Gente, gente!

Não disfarça nada. Está se sentindo uma mulher lindo. O cara mais gata do dia.

Estrelas

À tarde, passeia pelas ruas como se o mundo lhe devesse tudo. A comida tinha que ser agridoce, o cozinheiro precisava ir além de suas próprias convicções e então ser capaz de preparar um prato digno do paladar "hermafrodizíaco" daquela pessoa. Ele lhe devia isso.

E as lojas abriam suas pernas com facilidade e sorriso emprestado. Queriam aquele corpo em todas as peças. Clamavam pelas coxas musculosas, pela cintura desenhada à mão, os ombros de cabide, a espinha sempre ereta, os pés pequenos, as mãos com unhas sem cor e tudo mais que pudessem comprar ao vender. Ele, por sua vez, ria, rodava, desprezava e depois pedia de volta. No final das compras, conta para quem não quisesse ouvir que corpo de verdade só se veste de nu. Pano nenhum derrama sobre a pele o que ela mesma nunca teve: gênero forte ou fraco. Apenas gênero. Gênero é gênero. Pele é pele. Seja na sua ou na minha pele.

Serviu-se do prazer de rejeitar - e entendeu o porquê de tantos e tantas a lhe dizer "não". Livre, livre demais, tão livre que se perdeu no caminho de volta. Chegou em sua casa e deu-se para o primeiro que a esperava. Devia-se isso.

Lua

O véu da escuridão não se atrasa. Vem todas as noites para ocultar as almas que têm vergonha de si mesmas e borra as cicatrizes do colo, alisando-o novamente. Chega silenciosamente por entre as pernas e então provoca o sexo. Desperta o corpo dela na hora do sono sem nem se importar com o cansaço. Busca então suas costas largas e a barba mal feita. Ele quer ser dominado ao passo em que busca um desentendimento pontual entre o psíquico e o físico. Enquanto o mundo do lado de fora respeita a lei do silêncio, quatro paredes de concreto e uma cama escandalosa abafam as palavras proferidas ao pé do ouvido.

Sente-se à vontade, como se o universo renascesse por debaixo do tórax, explodindo constantemente e revelando locais até então nunca visitados. Quando finalmente todos os sentimentos se alinham, as cores se fundem num branco absoluto e espirrado que mancha o breu, o teto, o sol e o lençol abstratamente. Uma via-láctea recém-nascida e já vazia. Oito segundos de morte. Criação. Gênesis. Gemido. Ela e Ele no mesmo. Ambos no mesmo corpo, (con)fundindo-se inocentemente. E o terceiro, aquele que tirou proveito e mordeu todos os frutos - proibidos e permitidos - esgueirou-se para o pico mais alto do pomar invejando a criatura inversa. Infinitamente indefinida, tal qual o universo.

Condenada e condenado a nunca caber no dia comum.

Começo.
Meio.
Sem fim.

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