quarta-feira, 25 de março de 2020

Índigo




Deixo o azul escorrer pra sentir a espinha gelar. Daqui do alto, eu vejo as luzes da cidade e elas, da outra ponta, também conseguem me enxergar. Brilhamos distantes, como toda beleza deveria ser. Brilhante e distante.

Olho e sinto, como se o tom tivesse mesmo o dom de me tocar. É frio, mas é bom, não corta, mas também não faz carinho. Ao mesmo tempo que me dá vontade de fazer absoluto silêncio, ele, o tom, passa da cor pro som, e me faz ouvir o movimento do sono no ar... É como se fosse uma lenta respiração de todo o planeta adormecido, cujo barulho de “inspira e espira” praticamente soasse tal qual uma canção de ninar.

Ali, em meio àquele azul todo do céu que cobria a cidade, eu lembrei que quando era criança, acreditava que o sonho nada mais era do que ser levado para o topo do universo pela própria cama e se cobrir com as estrelas todas. Sonhar, pra mim, era estar no céu, coberto de azul, brilhando distante. Pensando aqui, agora, como é que a gente se perde tanto ao crescer e não mais crer nestas explicações para os fenômenos mais simples da existência? Sei lá, viu... Sei lá.

Cometi o erro de tentar pensar na vida hoje e hoje mesmo eu desisti. Não da vida, mas de pensar em como ela seria. Tudo frustra, justamente porque exige de mim o que eu mesmo jamais exigiria. Vem de fora, de pessoas que nem conheço, vem de uma voz que não me soa familiar. Por isso que eu vim para cá, bem no pico de sempre, ficar ausente lá embaixo.

Aqui o azul predomina e resfria meu rosto como sopro bom pra tirar o ardor de machucado, o roxo do olho, o vermelho do sangue pisado, e fazer casca no ralado... É bem assim que eu quero ficar, pelo menos no que sobrou do dia. Só que você me mandou mensagem dizendo que estava chegando.

- Trouxe algo pra você relaxar.
- Eu disse que estava nervoso?
- Se não disse antes, acabou de dizer agora.
- O que é?
- Música. “Bad Dream/No Looking Back”.
- Só ela me faria subir até aqui pra ver sentido em todo esse horizonte sem propósito aí na frente.
- A vista aqui é diferente mesmo, né? A gente não consegue ver o tanto de cobrança que há ali por entre as ruas.
- Sim. Aqui, eu consigo ver cores nos sons, ouvir sons quando lembro de rostos, consigo entrar numa relação diferente com o tempo.
- Ele para?
- Não, ele circula. Vai e volta, dá um abraço de “oi” e logo em seguida um de “tchau”. Tô viajando nas ideias, eu sei...
- Até aí, normal, né? Eu sei do que você precisa.
- Sabe, é?
- Não só sei como te darei.
- Você tá ligado que se errar, as chances de eu nunca mais botar uma fé na sua capacidade de saber do que eu preciso são grandes, certo?
- Certíssimo.
- Então vai, diz aí do que eu preciso?
- Esmalte nessas unhas.
- Caralho... Pior que não tem como eu discordar de você.
- Pois muito que bem. Tô com a cor aqui.
- E qual vai ser?


quarta-feira, 4 de março de 2020

Como

Quando me sai o passo, eu não acompanho o que fica ao lado. Parece que vou, indo apenas, já ciente de que o final estarei sozinho. Odeio esperar os outros, mas não tenho pressa. O ódio vem da aversão à sensação de abandono. Coisas que só uma pessoa como eu poderia saber. 

“Uma pessoa como eu...”. Como? 

Quando entrei na casa de Bernardo e Sofia, senti que nada ali bem me recebia. As duas crianças, com uniformes limpos de marinheiro e marinheira, olharam-me com desgosto. Pensaram, acredito eu, que aquela criança que chegaria para brincar com elas não se pareceria com o próprio brinquedo quebrado. Minhas canelas finas e acinzentadas, a cor que destoava do ambiente ebúrneo, a fome tão constante quanto a vergonha, os olhares baixos e a boca seca. Sim, eu era realmente a imagem de algo quebrado. Tão pequeno, tão quebrado. 

Fui ensinado a não aceitar comida na casa dos outros. Mãe tinha aflição de parecer que estava levando os filhos apenas pra comer e também temia dar trabalho para os donos da casa. Ela, empregada desde sempre, sabia que pra fazer um lanche pro menino mirrado alguém teria que deixar de fazer o lanche de Bernardo e Sofia em primeiro lugar. A barriga roncava e eu não conseguia me desenvolver nas brincadeiras que o casal de irmãos propunha. Tudo para mim era sem graça e cansativo, batia aquele sono que vem do bocejo disfarçado de cansaço. Aguentei, calado, até o almoço. Um prato de macarrão com molho que, naquele momento, era a comida mais deliciosa do mundo. Eu comia, eles riam e cochichavam.

Com a barriga cheia, senti a indigestão me causava aqueles dois. Eu comecei a prestar atenção em seus movimentos. Duas crianças patéticas e limitadas, que pareciam acomodadas à limitação de suas capacidades cognitivas por conta da faixa etária. Em outras palavras, foram educados à base da servidão. Não precisavam se esforçar muito para conseguir as coisas. A pele branca, os cabelos lisos e os nomes sem propósito lhes garantiam a vida de quem teve a luta pela sobrevivência amputada desde o nascimento - de quem não precisa chorar pra mamar. Bernardo e Sofia eram filhos da patroa de minha Tia avó – empregada da família que trabalhou por anos esfregando a imundice dos patrões incapazes de realizar auto-higienização. 

Os dois, então, vieram até mim e começaram a perguntar “Por que seu cabelo é assim? Por que sua roupa é assim? Por que você é tão magro? Por que você é mais escuro?”. Lembro bem que cada pergunta era seguida de um risinho débil. Eu, que desde cedo conheci a malícia e crueldade de outra criança – branca -, já sabia lidar com elas de uma maneira efetiva. O ódio.

Sim.

Crianças negras são forçadas a lidar com este sentimento desde cedo. Muito cedo. E como esse ódio de manifestava? 

“Como esse ódio se manifestava?”. Como? 

Eu os fazia olhar para si mesmos da maneira como os via. Começava, então, a dissertar sobre tudo o que aparentavam pra mim. Os uniformes patéticos de marinheiro, as risadas de rato, as caras rosadas iguais as de porcos, a incapacidade de subir numa árvore, de correr mais do que eu, de dar uma estrelinha, de fazer estilingue com elástico. Eu começava a questionar o que eles, de fato, sabiam fazer de interessante. Praticamente nada. Apenas riam como ratos. 

A fúria vinha e logo a única arma que tinham: o choro e o pedido para que me tirassem da casa. Os adultos, donos do antigo imóvel numa rua de classe média do Rio, olharam-me com nojo. Tia e mãe vieram me questionar e eu só disse que eles estavam me provocando e resolvi responder. Não disse o que, mas nem precisei. As duas sabiam que eu estava me defendendo. Lembro perfeitamente que saí da casa sem me despedir dos dois irmãos, Bernardo e Sofia. Deixei eles com o que, talvez, anos adiante, entenderiam bem do que se tratava. A miséria de si mesmos.

Tão pequeno, uma criança, será que já é possível dizer que a vingança é um prato que se come frio? 

“A vingança é um prato que se come frio”... Você come? 

Como.