terça-feira, 29 de julho de 2014

A perspectiva dos invisíveis



De longe, do fundo da sala ou final da fila, é possível ver sem ser visto. Posição privilegiada.

Durante uma de minhas saídas noturnas em busca de sono, pensei muito sobre perspectivas. Quantas tive ao longo desses anos todos? Quantas evitei? Muitas, em ambos os casos. Mas apenas uma delas esteve sempre em vigor: a que me colocava como terceira pessoa de minha própria vida.

Atrás de mim, só a parede de concreto. A última carteira da sala guardava minhas costas e fazia com que olhos e ouvidos tivessem algum sossego - sem ponto cego ou cochicho alheio. Eu via e ouvia tudo e todos. E o melhor: sem ser percebido. Foi assim que conheci muito sobre pessoas, sem ter que conhecê-las, de fato. Seus movimentos, excitações, decepções, conquistas... Tudo ali, bastava pular de uma fileira para a outra.

Trabalhos em grupo também permitiam que a terceira pessoa se manifestasse livremente. Gostava de ajudar no processo de criação e execução, mas odiava ter que liderar, ordenar ou definir funções e, consequentemente, fiscalizar as pessoas para garantir que o trabalho fosse executado com maestria. Não. Há pessoas que são Arthur. Há aquelas vivem como Merlim. Eu era qualquer um que não queria ser citado no livro, mas que ainda assim garantiu a existência plena destes dois ícones. Gostava de ser a sombra por trás do brilho intenso, o silêncio que precedia o aplauso e a satisfação estava em não ser, sendo. À distância, o sucesso aquecia minha pele filtrado pelo denso manto do anonimato. Felicidade era - e ainda é - isso. Um dia, quem sabe, ser lembrado não pelo que fiz, mas pela dúvida a respeito do que eu poderia ter feito sem que ninguém percebesse. Sentir o calor sem precisar do sol.

O amigo, o conselheiro, aquele que não sofre a ponto de se abrir e ouve, ouve, ouve incansavelmente a lamúria alheia como se o peito fosse imune a sofrimento. Este amigo oculto, terceira pessoa numa mesa de bar, ainda que as cadeiras estejam ocupadas em par. Eu e minha mania de ouvir e, de fato, gostar disso. Depositar na minha alma o que o outro sente, sem entregar um pingo de mim. Doar-se ao contrário. Empresto os ouvidos e a razão de bom grado, enquanto recebo fragmentos de uma vivência fora de mim - sangue do outro incompatível com o meu, mas tão vermelho e intenso quanto. É parecido, não é igual. Dói, mas não faz ferida. O prazer está em não fazer parte, ver a distância, e mesmo assim se emocionar, querer ajudar ou se irritar com a redundância sentimental que cega a maioria das pessoas. O ombro amigo, sempre terceiro.

E na solidão dos dias que se seguem, preenchidos apenas por mim, consigo ser terceira pessoa. Encaro a existência como imposição, converso com a voz da madrugada e escrevo no intuito de me projetar como o outro. Semelhante a falar de mim para um alguém que não se importa, um desconhecido criado pela própria necessidade de dissertar-se a esmo. Sou escrita, imagem, silhueta. Vejo, penso a respeito, comento algo e admiro - ou não - o resultado do que faltou. Frustro-me, como qualquer um e me consolo como nenhum outro. Sou a terceira pessoa que cala o desejo quando "Eu" quero gostar; a terceira pessoa que reclama da vida quando "Eu" quero mudar; a terceira pessoa que sente raiva do mundo quando "Eu" quero viajar; a terceira pessoa que repete a dose quando "Eu" quero chorar. Alguém para finalmente culpar sem precisar se justificar ou reunir evidências. Alguém pra ouvir e sentir, querendo ou não, na pele. À flor, de preferência.

O motivo de fala e piada. Raramente de graça. Condenada a ter o ouvido nas costas e escutar por elas insultos e inverdades. A terceira pessoa que só ganha destaque quando conquista seu lugar fora do todo. Quando aceita o cabresto ou simplesmente se torna indiferente diante dos próprios direitos. Terceira pessoa que busca um corpo para o "ele" ou "ela" dentro de si e perde a vida ao almejar viver. A milhas da própria felicidade, caminha a contragosto do mundo e passa a existir somente ao anoitecer de suas vontades.

No canto do salão ainda existe a terceira pessoa, com seu copo e corpo prontos para terem a perspectiva dos invisíveis.  Lá está ele, a terceira pessoa do singular. Ele, aparentemente imune à vaidade dos holofotes e incapaz de alcançar o palco mais alto, permanece confortável naquela inexistência insistente. Preparado para não deixar que as mãos se toquem ou as batidas dentro do peito se afinem de acordo com a música. Ama em silêncio para que os demais continuem associando quietude à desistência - e deixem em paz seus desejos. Há timbres que somente podem ser ouvidos na terceira pessoa do plural.

Terceira pessoa que não pode se defender porque estar ausente; que não sabe gostar porque está distante; que não sabe ter porque simplesmente abre mão de conquistar. Cruzei as vielas das décadas a passos curtos, tal qual os de quem não quer deixar pegadas. Ao olhar para trás, neste exato instante, percebo que muito do que eu disse não traz novidade alguma.

Afinal, eu sou a terceira pessoa a me dizer isso.

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