terça-feira, 15 de abril de 2014

Com vocês, meu coração

Há tempos que no peito dele eu me sinto negligenciado. No fundo de mim, eu sei que sou bastante importante e por isso que ser ignorado me fere demais. Tento entender os motivos dele, juro que tento, mas é muito complicado. Eu não sei racionalizar. Só sei experimentar. Então ele vem e me surpreende. Decide nos levar para sair. Cinema, é isso que ele disse. Parece interessante. Experimentarei.

Acomodados. Agora só silêncio. Começou e eu estou agitado. O tempo passa, mas não passa simplesmente. Toda a beleza das cenas me acelerou demais. Transpiro feito um louco. Estou bem. Fadigado e bem. Oras, é claro que eu suei amor.

O amor resiste, sabe? Ele acha formas de ser e se fazer. Não desiste nem aceita ser esquecido. Quando é invocado, faz questão de marcar a ferro os meus tantos outros irmãos corações. Impossível de ser mensurado, esse amor oscila entre o inundar-se e o recolher-se, seja em ondas ou cacos, amor é invencível. Se ele acaba? Não. Ele se modifica, camufla-se, adormece, torna-se recluso ou até mesmo conformado, mas jamais deixa de '(r)existir'.

Ah, o amor e suas tantas faces. Os dois garotos, o meu e o outro, cultivando-o em seu estado mais puro e bruto. O toque, o olhar cego cheio de vontades e o olhar vivo vazio de medos, o cheiro na blusa que, na madrugada de insônia, tira do corpo qualquer vestígio de cansaço, o ciúme e o beijo. Ele, o beijo, que faz o tempo perder seu sentido e vagar a esmo pelo mundo. Este mesmo beijo tão esperado e ao mesmo tempo inesperado que recai sobre mim como uma chuva morna de verão. Eu, coração de um menino também marcado pelo amor e despertado em meio aos cheiros do querer, fui beijado também. Algumas boas vezes, algumas boas bocas. E confesso: sempre que os lábios se encontravam eu tentava pular do peito para espiar o leve sorriso que se esquivava por entre as línguas.

Batia forte, porque ser ignorado me fere demais.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

De tempos em tempos se faz o para sempre

A vontade era de reencontrar o ancestral em mim. Aquele que se instalou no meu corpo e trouxe seus antigos escritos e histórias. Um “eu” de ontem que nasceu anos antes do parto. Mais de suas décadas se passaram e com ele tive alguns instantes de interação, deixando que assumisse por completo o controle do corpo e mente. Ele nunca pediu licença para isso, eu que sempre dei minhas lacunas como espaço para que se criasse. Alcateia de um predador só. Só em mim.  

Neste instante, sinto sua pele envelhecida e acinzentada roçando por debaixo da minha, ainda no auge de sua vitalidade. Aos poucos me retiro, resigno-me sem objeções e passo todas as palavras a quem, em silêncio, sussurrou verdades e mentiras de dentro para fora dos meus ouvidos.
E que assim se faça o chamado do esquecido.

“Exilei-me em terras distantes. Castigado pelo tempo, caminhei vagarosamente pelas bordas da moral, sempre desenhando um contorno torto que no intuito de cercar meus excessos. Já vivi demais. Vi e vivi demais. No entanto, cansei pouco. Dormi menos ainda e cá estou em chão novo e desconhecido. Meus bolsos sempre foram vazios de sementes, então o que me resta é jogar neste vasto campo cinzas e mais cinzas. Dos cigarros nunca me abstive.

Vilão, herói, comum. Nenhum. Só um, eu e mais ninguém. Digo, as memórias ainda me habitam. Tenho muitas delas guardadas nas gavetas da cabeça. Do amor herdei a mágoa, um "não saber" do outro que deixou o malefício da dúvida latente na cavidade do peito. Um rastro de poeira de gente perdida pela rua.

Do ódio, tudo. Rancor, raiva, angustia calada, pele dos dedos a sangrar e peso - do corpo perdido, do cansaço ganho. Muito peso. Se havia movimento dentro de mim, se ainda restava fluxo, hipócrita eu seria caso não atribuísse à promessa de vingança total força motora. E sejamos francos, combustível melhor do que ela não há. Mata a quem dela se farta, mas ao poucos. Mata de imediato os que a recebem como juíza, ceifadora, algoz.

Este menino, cuja história ainda clama por muito a ser escrito, deu-me morada, ofereceu-me casa. Aconchegado por entre seus órgãos eu me transformo no mal. Puro mal que contrapõe tal existência raquítica de reais frustrações. Ele não sabe o que é sucumbir ao próprio dissabor. Mas vai saber.

De tempos em tempos se faz o para sempre.”


Rosnou o coração. O verdadeiro lobo nunca se satisfaz.