terça-feira, 14 de março de 2017

O dialeto dos amantes




Não há casa para nós. As portas existem, estão ali, intactas, mas as fechaduras não reconhecem nosso jeito de girar as maçanetas. Tornamo-nos estranhos diante da entrada e comuns na hora da saída. 

O abandono cotidiano tocando a campainha debaixo do peito fazia pensar “quando ele volta”; fazia dizer “preciso dar uma volta”, mas sem retorno. Estranhos no mesmo recinto. Perdidos na rotina, companheiros de quarto, mas não de corpo. A gente se deitava e esfriava. Dávamos a volta na cama para não cruzarmos os olhares. Acaba mais um dia com olhos fechados, mas com as costas se olhando. Sem toque.

A tolerância que fez do amor primeiro persistência, depois insistência, envenenou a comida. Por que ainda estávamos ali? Por que ainda vivíamos juntos? O que nos prendia? Ou o que faltava para nos libertarmos um do outro? Na volta para casa, você segurou minha mão de leve. Eu ergui a cabeça que antes mirava a calçada e esperei. Esperei até que você dissesse algo.

- Eu estou aqui.
- Eu sei.
- Estou de verdade.
- Que bom.
- E você?
- Eu estou.
- E está bem?
- Sim. Apenas o silêncio, você sabe...
- Sei, sim.
- Eu te amo.
- Eu também.

Foi na simplicidade que untamos nossos corações. Encerramos os diálogos, as provações, as demonstrações, as cartas, os jantares, os amigos, os familiares, as festas, as datas. Trancamos as bocas, demos a volta no cadeado e então enterramos a chave no quintal. Aquele silêncio que parecia mais o murmurinho durante o velório de uma história a dois era, na verdade, nosso pacto. Tanto foi dito e tanto machucou.

Quantas vezes tentamos explicar os sentimentos e só o que saiu foram palavras tortas, mal interpretadas? Inúmeras. Eu não aguentava mais sentar diante de você à mesa e dizer que não sabia mais o que dizer. Dizer que não tinha mais o que dizer. Dizer sem dizer absolutamente nada. Porque o que eu queria falar não cabia em palavras, escorria, sim, pela ponta dos dedos e desenhava no seu rosto a imagem - muda - que queria ver a cada dia. O som ficava por conta dos cômodos, da madeira rangendo a cada anoitecer, do mundo lá fora exigindo explicações. Aqui dentro de nós, eu queria silêncio. E você também. Mas tive que lhe dizer algo...

- Você me sente?
- Sim. Por quê?
- Porque às vezes eu mesmo me perco.
- Por isso sempre pego na sua mão.
- Você sente falta de discutir?
- Um pouco. Só quando sei que você está irritado.
- Ultimamente ando inquieto.
- Sim. Por isso mesmo que gosto de discutir. Assim você fala o que te incomoda.
- E o que estamos fazendo agora?
- Eu estou segurando sua mão enquanto você tenta se perder.

Há com olhar para um relacionamento e admirar a paisagem morta? Há como ver beleza no vácuo? Nos cantos silenciosos de um universo em constante expansão – e extinção? Há como viver não convivendo? Era isso que me perguntava toda vez que a cabeça repousava sobre o travesseiro. Buscava explicações terrenas para questões que nasciam e se firmavam no teto das ideias. Mais silêncio.

Nós nos gostávamos com tudo o que tínhamos. Principalmente com o que não tínhamos. A voz, a vontade de falar, a vontade de trocar uma caminhada sem dizer nada por longas horas sentados, dissertando sobre o incerto.

Eu amava nosso silêncio. Porque através dele eu conseguia alcançar o melhor de você. Através dele, eu sabia que você me alcançava e entendia. Era nossa conversa secreta.

O dialeto dos amantes.

Até que um dia você me disse algo.

- Adeus.