tag:blogger.com,1999:blog-70731562672384207322024-02-19T02:14:18.990-08:00Batida do CaosDhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.comBlogger478125tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-29301428942130026992024-02-02T10:58:00.000-08:002024-02-02T10:58:00.357-08:00Este quem aquém<p>Corri das situações dramáticas. Talvez tenha errado em não recorrer aos caminhos comuns, aqueles tanto indicados pelos outros. Escrevi uma mensagem curta apenas dizendo que precisava me recolher. Não deixei espaço para que oferecessem o pegar dos cacos no chão. Apavorou-me a possibilidade de querem. Num movimento que só eu conheço, aproximei-me e, na mesma velocidade, desapareci. Os poucos que acharam a mim ter alcançado erraram. Sem problemas, desde que não voltem a me procurar. </p><p>As luzes bonitas banhando as calaçadas. As luzes sempre passam pelo meu olhar, mesmo hoje, tempo estranho em que pareço ter me coberto de uma apatia esverdeada feito os contos de Poe. Ainda assim, presto atenção nas luzes. Parecem elas vir com música. Mitski, creio eu, no atual estado de psico que me encontro. Estado em que deixo um elemento de composição sozinho. Estado de abandono. </p><p>E envelheço meio a isso tudo. Distante de uma forma de vigor irritantemente incapaz de aceitar seu fim. Eu já aceitei muito cedo, inclusive quando não tinha nem chances de vencer as tantas vontades que tendem a impulsionar a vida. Os empurrões todos, um inferno, um calor de gelar que parece ter a pressa dos atrasados juntos, esperando uns aos outros. </p><p>De repente eu só quis querer. Tive muitas vontades de me sentir querendo muito do que eu, conscientemente, sei que jamais terei. Quis muitos eles pelo caminho, fui deixando-os sem, às vezes, jamais tê-los tido concretamente. Sabe-se lá por quais motivos minha mente se organizou assim. Quando te ensinam um único jeito de dobrar as roupas, é com essa mania que você seguirá dobrando, ainda que, vestidas, marquem a silheta errada de seu corpo. É o que é, como é, como sempre foi.</p><p>Querer tem disso, de desdobrar e não deixar traço que recupere as formas de antes. Por via das tantas dúvidas, acabo passando por onde o ferro desdobra. A sola fica quente, queima às vezes, mas ao menos não desamasso. Pelo menos eu quero sem ser querido. Quem quer gente toda amassada? Se alguém quis, afastei-me antes de sentir o querido em mim. <br /><br />Foi-se a poesia que nunca existiu aqui. Foi-se tudo. Foice que cortou até o que nem tinha. Dancei sozinho desde a primeira vez e acho que isso me passou. Daí em diante, toda vez que a tempestade se forma, eu me arrumo pra ficar descalso e amarrotado debaixo do vendaval e só toca meu corpo as ventanias todas. <br /><br />Medo e raiva de trovão não tive e não tenho. Dancei perto das árvores, não debaixo. A segurança vinha daí. Delas. Sempre delas, as com raízes escuras e firmes, pacientes, centenárias, as antigas que sem medo do céu me permitiram herdar um pouco desta coragem. Só que eu me movimento demais. Não finco tanto. Por isso caí nas graças da fúria, balançando de envergar a espinha.<br /><br />Desta vez eu sangrei menos. Não por falta de lasco. A verdade é que nunca tive muito o que escorrer e agora sobrou menos ainda. Nunca teve muito o que vazar de minhas brechas além do imenso tudo que eu ainda mantenho apertado naquele canto de quarto que tomo conta na forma da inocente criança que caiu no buraco de barro e de lá sozinha saiu. Sozinha se limpou, mesmo que terra não seja sujeira. Ela, a criança, com o todo imenso e amassado entre suas mãos, um querido, ele, por quem, hoje grande, teme que o queiram. Este quem áquem. É um quem aquém.<br /><br /><br /></p><p><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /></p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-55746524218310714612023-09-22T10:34:00.006-07:002023-09-22T10:51:35.670-07:00Maduro mole<p></p><p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="background: white; color: #444746; font-size: 10.5pt; letter-spacing: 0.15pt; line-height: 107%;">Calor,
pouca roupa, uma regata, um shortinho, pés descalços. Tudo em tons amarelos,
azuis e verdes. Aqui é assim, a vida no calor perfuma feito azeite na
brasa, escorre lenta como gota de suor e se acaba num mar de lágrimas, de onde vem o sal da terra. <br /><br />Sobe a
maré, desce o luar sob as ondas, quente, tudo, sola, areia, coqueiro queimado,
cerveja —sol líquido, um copo suado, um corpo ao lado, querendo-se,
sentindo seu peso, pena ou pesado, vai bater asas de qualquer jeito quando
sobrevoar as ideais do outro, os desejos dos outros, igual carcara
faminto. <br />
<br />
<span style="-webkit-text-stroke-width: 0px; font-variant-caps: normal; font-variant-ligatures: normal; orphans: 2; text-decoration-color: initial; text-decoration-style: initial; text-decoration-thickness: initial; widows: 2; word-spacing: 0px;">Quem se quer no verão nunca mata a sede. Continua bebendo de todas as
fontes, ri e dança, a música ganha outro tom, uma época diferente, mais livre,
pelando à flor da pele e no cabelo fazendo arranjo. <br /><br />É assim quando se olha pra
ela, com os olhos de oliva, com os fios relampejando no mangue dos pelos cujo
douro vem do fogo no topo do céu, a amolecer moleiras. Um cheiro de fruta no
rosto, a boca ainda melada, os dedos brilhando e quando toca, gruda. Aí a gente
não se larga mais. <br />
<br />
</span><span style="-webkit-text-stroke-width: 0px; font-variant-caps: normal; font-variant-ligatures: normal; orphans: 2; text-decoration-color: initial; text-decoration-style: initial; text-decoration-thickness: initial; widows: 2; word-spacing: 0px;">Precisa rodar, ficar tonto, amortecer os lábios e se sentir dono do mundo.
Por alguns segundos, o delírio saboroso da caminhada pelo deserto sem oásis. A
corrida pelo sertão seco, montado nas carcaças amanhecidas. <br /><br />Café quente na
mesa, língua mergulhada no amargor perfeito do bom dia sem resposta. Não existe
previsão do tempo. É sempre hora. É sempre calor. É sempre muito. É todo muito, sempre hora. <br />
<br />
</span><span style="-webkit-text-stroke-width: 0px; font-variant-caps: normal; font-variant-ligatures: normal; orphans: 2; text-decoration-color: initial; text-decoration-style: initial; text-decoration-thickness: initial; widows: 2; word-spacing: 0px;">Se a pele está boa, o coração e tudo de dentro também está. Se o cheiro é de gente, sinal de saúde. Se arrepia, não é de frio, é
de vontade daquelas que torra. Abana, sopra, só aumenta a brasa.<br />
<br />
</span><span style="-webkit-text-stroke-width: 0px; font-variant-caps: normal; font-variant-ligatures: normal; orphans: 2; text-decoration-color: initial; text-decoration-style: initial; text-decoration-thickness: initial; widows: 2; word-spacing: 0px;">Não tem idade sob o sol. É todo mundo mole de tão maduro.</span></span></p><p></p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-19835222594830600872023-04-05T09:29:00.007-07:002023-04-06T05:16:27.971-07:00Será que ainda?<p>Foram as poucas verdades que trocamos capazes de colocar sua presença como o teto das minhas ideias, para onde olho antes de dormir e tento imaginar a quantos anos luz estão os meus quereres dos seus. De longe, sinto sua falta, mas nego. Antes, queria saber se você sente a minha.</p><p>O silêncio que nos define, hoje, marca também uma insegurança compartilhada. Tento eu tratá-la como orgulho, como vingança, qualquer outro sentimento que não me coloque de joelhos, novamente, diante da vontade de te ver, conversar contigo, sentir seu cheiro quase indetectável, ouvir a voz suave e cansada de quem, no fundo, gostaria de ter vivido o pleno pico da sua energia vital.</p><p>Eu queria conversar e não consigo porque me limito à pequenez do que me resta de brio. Assim os meses se vão. No lugar, um branco absoluto que nada marca para a memória do amanhã. Nós dois estamos escrevendo o tempo perdido e dele só recordaremos, talvez, da vontade oculta de se encontrar mais uma vez.</p><p>Falo por mim e por você porque ainda te sinto. Não vir atrás de mim, ficar aí no seu canto, com sua vida, interagindo com outras pessoas como se tudo o que passamos não fosse nada além de uma época fadada a crescer e se tornar chata, entristece-me. É uma tristeza diferente, porque identifico nela a mim mesmo. </p><p>Marca-me a pele do espírito como se desse a ele corpo. A tristeza diferente que dói, mas não indigna. Diferente porque é conhecida e atende pelo meu nome, mas estranha quando conto sobre o que machuca. Parece que nunca me viu e desaparece quando eu a vejo. Diferente porque é paradoxal, trata o mais do mesmo como nunca visto antes. Quando escrevo sobre ela, sou descrito.</p><p>Tentar definir o amor é fuga para não lidar com a falta de certeza que ele essencialmente carrega. Se ama, treme. Perde base, vive em risco. E eu não sei se amo como tratam por amor as letras das músicas que gosto de ouvir quando estou triste. Defino que é amor porque assim fica mais fácil sofrer. Fica mais comum, diferente da tristeza – aquela estranha.</p><p>Diga se ainda pensa em mim, mas não para mim. Diga a você mesmo. Façamos diferente desta última vez.</p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-41919304400445914182023-03-17T11:57:00.002-07:002023-03-17T11:57:32.061-07:00Fruta<p>O descalço da terra sob os pés amacia a passada. Gira, gira,
cai no calor do entardecer, suado rodopiante, sozinho. Escorrega bastante,
entregue ao tombo, ainda quente, como se tivesse acabado de nascer. Cai de
maduro com mel na casca escorrendo devagar, suando os olhos dos outros, colando
de leve na pele de quem por ele passar. O perfume de fruta, o olhar de fruta, o
peso de fruta, sabor de ninguém. Só dele, só ele se sabe.<br /><br />Não é festa, é agonia. Queima por dentro e por fora num azeite-desejo sem fim
–cheirando a cara toda. O vizinho olha pela fresta da janela e se arrepia. Sua
boca abre até a goela fazer bico. Nada sai, nada entra, fica lá olhando o outro
semeando.<br /><br />Queria um dia pegar um vagalume com as mãos e manter sua luz
acesa dentro da mais profunda penumbra. Desejo de criança e de adulto, de velho
também, esse de manter alguma luz. Nada do calor passar, nem a noite esfria. Pra
dormir é mais de um banho. Tem que toda hora se molhar. A pele tá boa, forte,
aprendeu a lidar com o olho do sol. Não descasa, só muda de pele quando precisa
sumir.<br /><br />A casa é pequena, de longe não dá pra ver. Está rodeada de
bananeiras, uma cerca de madeira capengando no arame banguela, uma mexeriqueira
seca, o que mais couber na vista de desocupado. Ascende a luz alaranjada pra
não esbarrar nas coisas que nem tem. Toma cuidado porque não há mais do que
cuidar. O que cuidar. O dia passa junto da noite, começam e encerram juntos.
Ele fica ali, na sua vida medíocre, achando que o mundo já é grande demais para
ele alargar com suas ideias. </p><p class="MsoNormal"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-26916770355948849812023-03-03T10:36:00.001-08:002023-03-03T10:39:16.681-08:00Mas sóNo meu azul afundo em busca do que ainda não descobri sobre mim. Acompanhado pelo passado que reflete cada rosto a me abandonar no passado, finjo passear pelo por vir como quem desfila numa calçada qualquer, brincando de ser importante. O que move é a promessa do depois, aquele em que nem acredito, mas mantenho porque não acreditar em nada me obrigaria a ter fé no que resta: eu mesmo. Não me vejo, sou cego para mim, nem espelho dá conta. <div><br /></div><div>Tento, então, ler-me através dos outros. Poucos, mas outros, com quem tive magnetismo uma noite e na outra despertei com repulsão. Amanhecer é agonizante. Sempre fui de anoitecer, mas não se escapa da matina sedenta. </div><div><br /></div><div>A carta dos olhos castanhos e cabelos longos <br /><br />Você é incisivo. Perfura com o olhar afiado e fatia minha alma sem deixar que sangre. Quando falo contigo, percebo o quanto me observa com interesse - e isso me interessa. Às vezes é duro nas palavras, mas compensa quando decide ser doce, carinhoso. Eu me sinto livre contigo, porque sei que podemos dançar de qualquer jeito, sem se importar com os demais. Você não liga para meu jeito desleixado, nem reclama do fato de eu não usar desodorante. Sei que te incomoda, mas você não reclama. Prefere me observar e colher nos detalhes das minhas tantas falas uma brecha para demonstrar seu amor. Acabei percebendo tarde demais. Quando eu te quis, você já não me olhava. </div><div><br /></div><div>A carta da pele macia e do toque molhado </div><div><br />Eu insisti em nós. A gente nunca chegou a se beijar ou algo do tipo, mas estávamos sempre juntos e para mim era como se fosse um relacionamento a dois. Amizade, no caso, mas eu sentia que de você fluía outro tipo de sentimento. Você nunca tentou nada, mas foi justamente seu recuo, seu silêncio, que sempre me disse tanto. Eu sentia seu calor enquanto o meu tocava a sua pele poucos centímetros de distância entre meu pegar e seu pescoço. Lembro dos cheiros, do tempo abafado, de tudo. Do céu frio à noite, de você me esperando e fingindo que não. Minha mão transpirava quando fazia algo que você pudesse recriminar. Perdi as contas de quantas vezes senti a dureza de suas palavras. Mágoa, sim, só que não era maior do que o prazer de te ter por perto. Perto não, em mim, ainda que sem contato direto. Você, na verdade, sempre me tocou onde ninguém mais chegou a tocar. </div><div><br /></div><div>A carta da voz funda e do sorriso quebrado </div><div><br /></div><div>Se eu pudesse, tomaria seu cérebro para mim. Tomaria sua vida, seu jeito, tudo. Porque sempre amei, desde o primeiro encontro. Eu querendo me mostrar superior, indiferente, e você - naturalmente indiferente - me deu uma lição logo de cara. Na suavidade do seu despropósito, olhou-me diretamente e sorriu como se estivesse revendo alguém que há tempos procurou. Eu te procurei, em vários e várias. Acabei achando só em ti mesmo. Quando levei um filme para nós, quando estava ao seu lado, quando quis e você não entendeu, quando você entendeu e quis, quando quisemos e fizemos, eu te procurei. Depois sumi, porque somos assim. De partida. Mesmo sol sobre a cabeça, mesma sombra no sorriso, mesma voz de despedida.</div><div><br /></div><div>A carta da bondade alta e dos braços longos </div><div><br /></div><div>Talvez te abraçar me fizesse sentir proteção das grandes. Você, menor, aconchegava as ideias sempre em ebulição e o calor delas me envolvia por inteiro. Era como se a segurança se materializasse em alguém que eu finalmente conseguia alcançar. Assim a gente se amou, longos abraços, curtos momentos. O fim se prolongou junto da distância inevitável. Quando me perdi, você foi me buscar. Quando encontrei em nós o primeiro traço de amor, errei, traí sua confiança, mas amadureci sem ela e hoje sei o quanto vale. A gente, de tempos em tempos se reencontra. Eu com meus braços querendo seu calor e você com seu silêncio vulcânico me lembrando de que não mais posso te ter. </div><div><br /></div><div>A carta das lágrimas doces e do coração salgado </div><div><br /></div><div>Não sei bem por que estou aqui. Sempre ficou evidente de minha parte que não lhe amaria para além da amizade. E não amei mesmo. Sem amar, entretanto, vivemos juntos por anos. Juntos numa proximidade íntima e só nossa. Só a gente entende - e nem sempre, às vezes. Entre desentendimentos, brigas, mágoas, voltamos, nem sempre melhores, nem sempre inteiros, mas querendo o outro ainda na história da vida. Eu, sinceramente, não consigo imaginar o quando me amou, mas tenho a mágoa sua e as entrelinhas de cada palavra que não me disse - nem me escreveu - como sinais de que doeu. De que eu te inundei muitas vezes, apenas por ser franco demais. Por nunca ter imaginado para nós uma vida a dois que envolvesse mais do que a admiração e carinho, cuidado, o amor mesmo que sentimos um pelo outro. Escrevendo assim até parece romântico. E é, só não me entenda mal. Daqui não vai brotar nada. </div><div><br /></div><div>A carta dos lábios acinzentados e corpo nu</div><div><br /></div><div>Se tivesse que ser com alguém, seria com você. Por isso aconteceu. Mas só. Eu não tenho nada além disso para dizer. Há como chamar de carta apenas três ou quatro linhas? Não vou dizer que foi ruim nem nada, vou dizer que lembro, que foi bom. Na verdade, assim como o outro ali, não sei por que estou aqui. Acho que isso estragou a gente, sei lá. Talvez você espere algo ainda. Espero que não. Você é importante. Eu te amo, mas só. Cinco linhas já dá uma carta, será?<br /><br />Só. </div><div><br /></div>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-12069297872342562992023-02-27T10:26:00.005-08:002023-03-03T10:12:38.232-08:00Uma vela para a indiferença <p>As mais sinceras desculpas. Uso-as porque poupa da discussão inútil. Recentemente, senti falta de romper com alguém que amo até doer. Toda aquela faze de angústia que destrói a saúde me faz perder os quilos que não tenho e me sentir morto. Um amargo que não tem gosto. A boca até procura, a língua tenta se lamber, mas nada. Tem a raiva na saliva que espuma, sim, a vontade de ver o outro sofrer ao ter que lidar com sua própria falta de caráter - ou simplesmente falta que faz em mim. </p><p>O que sei é que assim vão. Dias, meses, espelho sem meu reflexo, porque não consigo me olhar quando estou desse jeito, em trabalho de parto daqui para nunca mais voltar. Retiro os rastros, passo um pano molhado nos passos dados sobre minha memória vingativa e não quero lembrar o caminho. No fundo, se passa este ciclo de tempestades, eu sei que vou admitir tranquilamente que tudo aconteceu porque eu, ainda hoje, amanhã sempre, tenho dificuldade em acreditar que as pessoas são capazes de permanecer. Não são.</p><p>Começa como um fio. Estala a espinha e arrepia a pele. O olhar congela porque não quer perder mais de vista. E tudo o que ele faz parece interessante, principalmente o que não é. Entra nas suas ideias e não se incomoda com a desordem delas. Vai ficando, quando viu já fez um mês, um ano, seis, passaram-se dez e ainda estamos aqui, eu escrevendo e ele nem sabendo. Enrola há tanto tempo que já tenho uma malha de lembranças de molho. </p><p>Se existe alguém para quem eu tenha rezado mais nessa vida foi para a indiferença. Não há salvadora maior. Todos os dias eu peço para que se instale em mim. Todos os dias eu peço para sentir menos, para fazer jus ao meu jeito fechado que não compartilha quase nada daquilo que se cria pelos meus cantos. Se é por fora indiferente ao mundo, por dentro por que não? É como se tivesse algo ou alguém que simplesmente se recusasse a me deixar ser tão miserável quanto a vida leva a ser por meio das convenções sociais todas que impõe. Parece que há uma criança que não me deixa esquecer daquilo que impede a indiferença de entrar. Então esqueço eu dela. Fecho as janelas. </p><p>Por favor, seque-me. Não deixe nada. Eu prometo que te vendo minha alma se isso existir mesmo. Só leve tudo, ele por completo, e os que virão também. Deixe-me preparado sempre para o pior, faça-me nem duro nem mole, faça-me intocável, alguém que passa, que todo mundo passa e nem percebe. Alguém que já vem para ir, chega para partir, alguém que passa. Por favor, não quero ficar, não quero mais toque e apego, não quero acordar na casa dos outros e voltar para a minha sozinho, todas as vezes, não quero ficar por ficar, isso nunca me fez bem, sempre me tirou do sossego que eu mantenho ao fingir ter controle sobre os caminhos da vida que quebram minhas esquinas. É só tudo isso que te peço, faz-me como você, assim, apática, de pé, inabalável, nêmese inexpressiva. Amanhã eu quero acordar como por vezes já me senti: vazio, comigo mesmo. <br /><br />Se hoje eu acender uma vela, algo que não faço, será para a indiferença. <br /><br /><br /><br /><br /></p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-22813441659089588462023-02-27T10:02:00.000-08:002023-02-27T10:02:04.814-08:00Criança quieta<p>Com as mãos pequenas e egoístas, querendo tudo ao seu alcance, esmagou o mundo. Não sobrou nada, nem ninguém. Só sangue e pedaços de gente de ontem, passada, gente que não mais faria visita. Criança tem desculpa, pra tudo, pode tudo, porque não sabe ainda do tamanho que é o nada do futuro adulto. Criança pode, por isso nunca morre, fica dentro da gente - a que mata e não que morre, por décadas, até se cansar. Criança pode, com as mãos, esmagar o mundo. </p><p>Não precisa gritar. Não faz birra. É criança das quietas, aquelas vistas como piores, ruins desde sempre, que vão, fazem e não deixam rastro. Nem as manchas nas palmas conferem culpa. Assim, como quem não quer nada, faz porque é criança. Porque pode. Sabe que será guardada e protegido no melhor lugar dentro da gente. Na morada do egoísmo que sempre quer, faz e não leva culpa. </p><p>Quando penso na criança, vejo ela num quarto amadeirado, com uma janela de altura mediana, da qual se pode ver o mundo do pescoço, pendurado, prestes a se enforcar. Não precisa ficar na ponta dos pés, é uma visão confortável. Neste pequeno espaço, uma cama com cobertor de céu estrelado. Para a criança do meu quarto, morrer é se cobrir com o céu e dormir, enquanto flutua a cama para onde não sabemos. Esta criança precisa deste quarto. Um precisa do outro e eu dos dois, em mim, igual gente besta que sozinha não consegue ir além do que limita a camada da pele, a de baixo, não a que pela. A que sangra. </p><p>Quieta, não precisa de mãe ali pra lhe mandar calar. Ela é naturalmente quieta. Nasceu sem choro, sufocada pela vida prematuramente custosa. Quando voltou à vida, antes mesmo de ter chagado nela, também não chorou. Chorou pouco essa criança, mas quando chorava, o mundo implorava para ser esmagado por ela. Tão boa, tão solícita, criança pura, daquelas que acredita porque não vê na mentira cor alguma. Acredita em tudo porque a cor é de verdade, verde, azul, vermelha, mas principalmente azul, às vezes a verdade é amarela feito sorriso da gente toda que merece ser esmagada. Nada pior do que ver o mar nos olhos daquela criança rebentando ondas pra fora dos cílios, correndo pelo rosto. Pior ainda era ser a causa de seu silêncio. Pois da sua boca só saía aquela doce palavra de carinho genuíno. O mundo ia dormir torcendo para não acordar. </p><p>Doeu cedo. Sem entender, a criança foi. Acreditou. Sem saber, confiou. Sem saber, soube depois. A inocência é, antes de tudo, um escudo. Uma malha de aço impenetrável, mas com aparência de vidro. Vê-se através dela o que a criança não sabe esconder - porque nunca precisou. Sua fé nos outros e de que os outros ali estão para lhe proteger. Fé e transparência, é disso que são feitas as crianças caladas demais. As mais fáceis de serem esmagadas por gente. </p><p>Esta, em especial, vive no quarto, protegida do afora. Sente falta de ter com quem conversar, mas às vezes eu consigo ter um tempo para ir visitá-la. Conta-me dos seus pensamentos, de como organizou as constelações todas por tamanho, de como as manchas no universo são tão coloridas, que ali há verdade pura e transparente, que o universo é independentemente da gente. E ele se finda também independentemente da gente. A criança observa tudo isso e suas mãos já pouco importam. Sangue não é sujeira. Sangue é gente pra escorrer. Esmagou todas elas antes que elas mesmas se esmagassem e, antes, fizessem da criança um mundo todo para explorar. Gente não esmaga criança porque prefere destruí-la ao longo da vida. Cabe a nós protegê-las no mais seguro de todos os lugares: aquele que não contamos o endereço. </p><p>Dentro, bem nos confins de quem já não suporta mais ter que viver do outro lado da janela média, a criança redesenha o tempo e se conta de traz para frente. Esperando que, finalmente, o dia do seu não nascimento seja parido. Quem sabe assim a gente deixa a criança em paz. </p><p>Hoje, ela só quer ficar quieta. </p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-39527020418655309082022-12-16T08:51:00.004-08:002022-12-16T09:25:13.291-08:00Fundo dos olhos<p>Antes de estilhaçar seu crânio, a explosão havia esfarelado outras montanhas. Corria lenta, de longe, enquanto nas beiras da completa destruição sequer deixava um segundo para se tentar fugir, esconder, viver. Como não dizer que estava viva a obliteração completa da vida? Chamá-la de morte, então? De fim? Como, se havia apenas começado a alguns instantes? Fotografava em sua última memória - ou talvez a primeira próxima - algo que, de fato, ninguém veria. </p><p>Não era apenas fogo alaranjado como o de forja. Misturava-se também com terra escura. Comparou com as vezes em que usou os próprios dedos para fazer caminhos no barro, intervindo na paisagem natural. Comparou com vulcões sangrando também. Enquanto se expandia a devora do tudo, percebia que a morte era menos assustadora do que a vida contou. O que mais se sobressaía à sua chegada era uma profunda curiosidade. Magnetizava-o. Puxava-o para o não saber, por querer saber. Morte que chama.</p><p>De repente, chuva quente. Um vento de despedida que rodava feito abraço da partida. Sopro no rosto acalma. Inevitavelmente, tudo remetia ao adeus. Talvez por conveniência, mas ele não se importava. Estático, apenas aguardava o momento em que seria engolido pelas fúrias da terra vivida. Nada poderia paralisá-lo mais do que o desprendimento absoluto de uma história a qual foi obrigado a escrever. Mesmo sem saber, preferia acreditar que depois de alguns minutos, passados, lembranças, nomes, antigas dores, os desejos não vividos, tudo isso nada seria além de um eterno presente engasgado na garganta do vácuo existencial. Não haveria mais ele para dar ao pó memórias. Seria apenas pó, sem ida nem volta. Sem móvel, estante ou cômoda. </p><p>O calor deitou sobre sua pele. Olhos viraram duas supernovas e o branco absoluto prevaleceu. Conseguiu seu objetivo. O branco foi o último a ser visto. Do outro lado, observou ele se render ao seu constante desejo de aniquilação. O branco absoluto conseguiu. </p><p>A pequena esfera, há alguns metros de distância, correu mais do que o tempo e foi crescendo conforme se achegava no alvo. Ele percebeu que a rigidez do ferro sumira e em líquida partícula transmutava-se a devastação. Ali, precedia o olho o olhar, parecia o de um bicho dos que era caçado, não dos que caçava. Olhar de presa, de abate, do tipo que é grande, negro, profundo, inocente e em constante pedido de misericórdia. Quem destruiria a quem, no final do estouro? Negro, profundo e destruído. </p><p>Explodiu seu rosto.</p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-74436665368421164462022-11-16T10:49:00.002-08:002022-11-16T10:49:19.436-08:00Alguém o tempo todo<p>Escrevi umas três cartas porque sabia que não seriam entregues. Desde a adolescência faço isso. Escrevo para que não seja lido por mais ninguém além de mim. Nada de novo ou extraordinário. São apenas as limitações do ser. </p><p>Nestas escritas, consigo formular a descrição dos sentimentos mais turbulentos que carrego. Tento, ao menos, ler-me para crer que ainda estou ali. Mesmo com toda a angústia que me desmotiva, estou ali, talvez registrando pela última vez o quanto dói. Recentemente, grafei aqui que escrever é algo característico de pessoas doloridas. Se repito é porque acredito.<br /><br />Há dor de diversas formas. As que ardem de tanto aproveitarmos bons momentos cuja conta chega depois. O corpo cobra - e por corpo eu me refiro a tudo, carne, osso, sangue, pelos, mente, imaginário, ansiedade, melancolia, desejo, suor, feromônio, vontade de fumar. Aqui me dói quase tudo. Parece, ao meu ver e sentir, que se tornou meu eu o da dor tal qual fosse, assim, seu habitat natural. De certo, quando me pego volta e meia ligado por completo à realidade, sinto um incômodo que rasga a garganta e pressiona o peito, ajoelha os joelhos e me obriga a deitar. Em queda lenta, recolho-me rápido como roupa no varal. Também escrevi isso recentemente, repito porque acredito na velocidade com a qual me retiro daqui, daí, dele, dela, do corpo todo. Quando escrevo "aqui me dói quase tudo", cito quase porque, na verdade, falta-me a dor por fumar e provocar meus calos vocálicos. Dói não doer por isso, confesso. </p><p>Admito, nesta toada, que assim, enquanto doer, sinto-me menos distraído. Há um ponto de concentração - ou pontos. Mais jovem, costumava ficar trancado em meu quarto escrevendo por horas enquanto ouvia a tempestade fazer seu espetáculo janela afora. Quando ela retumbava em trovão, eu terminava um parágrafo respirando sutilmente, quase que sem ar para puxar. A pressão caía porque - a ciência explica, mas eu, aqui, faço do meu jeito - o coração parecia achar que era sua hora de descansar. Por que doía tanto? Acabei de me perguntar isso enquanto terminava a frase anterior. Talvez por não ter algo ou por terem tirado de mim o pouco que tive. Quase todo mundo me levou algo. Escrevo "quase" porque houve aqueles que apenas deixaram dor. Um novo hábito para que meu corpo vestisse e se acostumasse. </p><p>Sumo, mudo, quero, porém não consigo conversar. Espero que conversem comigo mesmo eu não respondendo. Que me busquem, que me irritem por insistir em falar com alguém que, evidentemente, não está em bons tempos mercurianos para vigorar comunicação. Dói não responder, também dói não ser perguntado. Escrever é a prova disso. <br /><br />Nas épocas em que rio demais, também há dor. Se sentir feliz demais, completo, amado, querido, respeitado, visto, admirado, útil, dói. Dói porque acaba no próximo amanhecer. No exato instante em que se olha para o lado e não se sente mais paralelo às alegrias frívolas da vida que não é a concreta, apenas a ideal. Crescer dói, nascer dói, ficar dói, partir também, parir dói tanto quanto partir, é chegar e saber que se deve sair, é amanhecer porque o anoitecer precisa acontecer. A dor é o tempo. O tempo todo.</p><p>Aqui, onde não me encontro, despenco frases e mais frases que só fazem sentido para este meu jeito de ser que se empurra pelos anos, fingindo que aqui segue porque tem de atender às demandas de pessoas que precisam das minhas capacidades. Já estou morto, só falta morrerem antes de mim. Enquanto estão vivas as pessoas da minha vida, doo-me por elas. Por mim. Minto quando digo que é por elas. Menti também ao escrever que o texto anterior, aqui publicado, seria o último do ano. Geralmente, quando preciso mentir, faço enquanto digo, não enquanto escrevo. Aqui não tem outra saída senão a da verdade. A que angustia. </p><p>Doo-me de dor, não de doar. Raramente compartilho-me. Doo-me por tê-las amado, as pessoas todas. Vivo apenas pelo medo, simples medo, de não me doer mais. E nada sentir além do grande vazio que sempre me habitou, em tempos ancestrais ao da dor. </p><p>Cada carta que não entrego, mas escrevo, é uma dor que mantenho minha, para me manter meu. Por que me quero assim, tão próximo de mim? Porque quando me repito, é sinal de que ainda acredito no que sou. </p><p>Alguém com suas limitações. Alguém que sabe ser. Sabe se doer, mas não se doar. <br /><br />Alguém o tempo todo. </p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-4409603238171123002022-11-09T09:13:00.003-08:002022-11-10T09:03:43.466-08:00DoloridaDe braços finos e longos, descalça, com um vestido amarelado e os cabelos libertos. Couro da cabeça era escuro feito céu. O retrato da infância. A voz aguda rompia com a gravidade da adultez inevitável que a observava. Cresceu, viveu e meu viu crescer também. <br /><br />Na minha pequenez, eu me encantei por seu sorriso largo que fazia linha-fina para os olhos atentos, curiosos, em busca de alguma novidade. Eu me libertava quando imaginava que ela me via dançar. Seu jeito de conduzir os versos enfeitiçava o corpo todo. Não havia julgamentos, apenas liberdade. Dançava sem medo de ser visto, de ser estranho, de ser muito como ela: uma fruta de gogoia. <div><br /></div><div>Quando o que me restava eram cigarros, procurava por sua voz também. Cantava profunda, misturando o cinzeiro com o amargo do álcool. A dor não tinha que ser anestesiada, nem a rouquidão pospor o trago. Embalava, isso sim, a angústia numa trilha devida, dolorida. É tão paradoxal gostar de sofrer apenas para ouvir sua voz uma vez mais. Eu sofria te ouvindo e fumava o maço pra morrer vivendo.</div><div><br /></div><div>Nem me conheceu e sabia de mim. Sabia que eu era tímido, mas adorava dançar, que eu era quieto, mas amava cantar, que eu era magrelo, mas tinha a vontade pesada, que eu frágil, mas com a fala infalível, que eu gostava das cores, do verão, das flores, dos bichos todos, do cheiro de fruta na camiseta melada de manga, mas sabia me nublar na tempestade, fechar a cara e o tempo, recolher-me de um jeito que ninguém conseguiria achar para engomar. Era uma mãe calejada e cheia de anéis que me acariciava a cabeça. </div><div><br /></div><div>Seu jeito de se mexer me ensinou o que era movimento, dentro e fora do corpo. No balanço, a tradução do sexo, do desejo, em suas letras e timbres, era a que dava o tom ao meu dialeto íntimo. Teu escorpião de veneno doce, teu rancor sofisticado e o amor simples. Na balança, pendia o amor simples de gente dolorida. </div><div><br /></div><div>Havia uma tristeza entre nós. Mas há muito de nós entre o amor. </div><div><br /></div><div>Doloridas as pessoas que escrevem e cantam. </div>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-36267345014821969192022-11-08T09:05:00.000-08:002022-11-08T09:05:11.780-08:00Todos vão embora na hora certa<p>Meia volta da partida. O chegar e se despedir. Começando a terminar. Um sistema imunológico de gramática reativa na qual não se faz nariz de cera nem flor à pele, tudo é pontual, conciso, marcado para já estampar o pano de fundo e proteger o cenário. Se veio é porque vai. Se apareceu é porque desaparecerá. Se acolheu, abandono é. </p><p>Bastou um silêncio. </p><p>Quando diziam "o tempo vai virar", era necessário conjunto de sinais. Cheiro de terra evaporando do chão seco suado de si, vento morno, vento frio, agitação das árvores, os bichos se recolhendo junto das roupas no varal, a gente esperando o que já sabia. Depois de muito barulho, o silêncio que precedia a tormenta. Só que era diferente de tudo o que já se podia ter sentido. O um silêncio que basta é aquele que não se deixa perceber porque de barulho não foi feito. Não teve que calar nada. O silêncio que basta é aquele que dá início ao silêncio que muito dirá. É um calado que fala demais. </p><p>A mente sonha com respostas. Ela sabe que o consciente precisa de um apoio qualquer. Reúne, então, em seu salão de festas e tragédias o antagonista. Caberá ao inconsciente rabiscar explicações tal qual se costura o discurso de um rei a beira da loucura. Tenta lhe passar racionalidade por meio das palavras, mas sabe que a própria ação de escrever para insanos é, também, atestado de insanidade. A quem se quer enganar? Ao louco que deveria ser são? Ou ao louco que acredita ser possível gozar de qualquer sanidade? E dá para gozar com sanidade? Loucura. Barulho. Sonho. Algumas respostas. </p><p>Veio, mas por que foi? Precisava mesmo? Sempre precisam. Há justificativa. Crianças são preparadas para o mundo. Aprendem desde cedo a lidar com diferentes faltas que irão lhes preencher. Uma delas é o abandono. Existem as que aprendem a manter as companhias sempre por perto. Outras conseguem ser autossuficientes e, por isso, atraem quem deseja se aquecer junto de calorosa confiança. Abandonar antes evita de ser abandonado, concluem aquelas que não se assemelhavam às mais sociáveis. No meio do jardim, um botão não abria nem fechava. Já tinha cor, mas escondia as pétalas. Estava no meio entre crescer e se manter muda. Bastou um silêncio. Há crianças que vivem as companhias, que se conectam, que sorriem, florescem, mesmo sabendo que tudo irá acabar em abandono. Seu pavor não vem do fim, mas de não aceitar que ele virá. </p><p>Quando se aproxima demais, sente o cheiro. E o cheiro sentido também sente quem o sentiu. Perfumam-se. Quando a essência é nova, marca mais. A todo segundo ela reaparece nas narinas e traz memória. Depois se torna banal, some, vira cotidiana. O cheiro sentido não desaparece, mas quem o sentiu sim. </p><p>Se vai, por que não foi logo? É confuso entender os ponteiros do relógio quando se é novo na arte das horas. Falam que passa rápido o tempo bom, demora o da ansiedade. Se ele faz tão bem, se com ele os segundos são, de fato, aqueles depois dele, como aproveitar o presente que, despido do embrulho, dá-se ao regalo do abandono? Foi um silêncio só que anunciou um adeus sabido. O medo é de não aceitá-lo. Por isso sonhamos.</p><p>Todos vão embora na hora certa. </p><p><br /></p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-25736601513736081262022-05-11T11:06:00.020-07:002022-06-22T16:00:05.507-07:00Eu não sou o homem?<p>Havia um homem apagado naquela casa. Os portões quase caindo não mais serviam no bem-vindo. Sem convites, ninguém entrava. Alguém, às vezes, saía. </p><p>Pelas caminhadas solitárias da rua que abrigava seu passado, ia indo. Restava-lhe apenas o cotidiano. Horas iguais, dias iguais em quadrados diferentes de calendários atualizados a cada 1 de janeiro pelo dono da mercearia. Não dava bom dia. Seu silêncio era sua principal defesa. Ninguém sabia dele. O desconhecido causa medo. Tentaram lhe atacar, mas como atingir um ser que presente nunca se faz? Tal qual fantasma, vulto, aparição, não tocava os pés no chão ao flutuar, dia após dia, rumo aos mesmos endereços. </p><p>Não queriam acabar como ele. Sem família, sem continuidade, aguardando a chegada da morte. Outros se sentiam desprezados e atribuíam ao homem uma arrogância descabida. Como, tão pobre, poderia desprezar os demais à sua volta? No fundo céu de sua boca cerrada estavam as tantas histórias que ele poderia lhes contar, mas não quis. Nunca quis dividir com ninguém tudo o que lhe partiu por décadas. O quanto dele tiraram, o quanto dele levaram, nada disso saía do poço que se tornou o homem sem fundo. Um ponto-final que a todos incomodava.</p><p>Sem cheiro, sem rastro, dentro de sua casa imperava a penumbra que só conforta aos paridos sem choro. Como seria o fim do universo? Tão misterioso quanto os cômodos daquela velha construção esfarelada pelo cansaço cimentado. Seu lixo, o que sobrava do prato, nada, não havia como traçá-lo. Desistiram, então, os vizinhos. Que fosse ali, com aquele homem, o fim do saber, a morada do caso perdido, do sem assunto. Não valia a pena tentar ajudar quem não quer ser ajudado. O povo perdeu. Sentiu que perdeu. Não cumpriu seu papel de comunidade, não salvou uma alma doída, não fez sorrir o rosto recolhido. Aquele homem era a prova de que o povo, tal qual a voz de deus, era inútil para desalmados. Aceitaram, as pessoas, que aquele ali já não estava mais entre elas. O que se via era o que não existia. Um retrato fiel da ausência. Sem cheiro, sem rastro. </p><p>Sua vida, despedida de adjetivos, ganhava valor apenas na fala alheia. Miserável, desgraçada, abandonada, desenganada, injustiçada, penosa, patética. Sentenças dadas em julgamentos inocentes. Cada um que analisava, à luz de suas convicções e moralidades, a decadência do sujeito que vive condenado à sua exclusiva - e inevitável - companhia, sentia-se um tanto mais vivo, um tanto mais vigoroso e sortudo, um tanto mais roliço e bem pago, bonito e amado, querido, desejado, alinhado à graça divina que é acordar pela manhã e saber que não é, o um dentre os cada, o homem. </p><p>Eu não sou o homem. </p><p>Nos séculos que se passaram, empilhados nas prateleiras de sua estante de livros, morava ele. Ali, viveu e vive. Vai e volta. Recobra, recupera, cicatriza e sangra. Leu e lê. Foi e ficou. Somente ali era possível encontrá-lo, acessá-lo. Escreveu e escreve. Sobre a mesa, o último de seus lembretes. Sobre o mundo, as notas que revelavam cantos nunca antes relevados nas linhas dos grandes historiadores. Sem falar com ninguém, conversou, com sua exclusiva - e inconsolável - companhia. O que lhe restou era o que lhe recolhia. <br /><br />"Eu não sou o homem? <br /><br />Não é que não escuto quando falam. Eu escuto. Muito menos que não digo, do diafragma à goela, alguma resposta que satisfaça o outro. Não me escondo quando olham, e olho quando não se escondem ao olhar. Eu estou ali, não estou? Lá também. Consigo sentir meus passos, os ossos estalando e o que me resta de articulações animando este corpo de antigamente. Eu estou ali, juro! Lá também já estive, sei que estive. </p><p>Quando disse que me machucavam as palavras sobre quem sou, eu não estava ali? Quando defendi meu espírito das maldições lançadas por falsos iluminados, eu não estava ali? No dia em que deixei de aguentar calado os toques, os puxões, a lâmina fria abrindo minha carne e a mão mais fria ainda buscando nas minhas entranhas a resposta que comprovasse incapacidade natural, eu não estava ali? Meus dentes, meus olhos, meus lábios, meu peso, tamanho, o que era meu, dado pelos meus, de antes, de ontem, de séculos, quilômetros, páginas e mais páginas, de histórias, quando a tudo removeram, eu não estava ali? <br /><br />E quando amei, fui amado, e depois jogado à marginália de minha própria intimidade, eu não estava ali? Quando escrevi com a nigrosina de meu tom posto e imposto como manto a cobrir o mais incendiário dos corações, eu não estava ali? Quando calei de ódio, quando sorri de raiva e indignação, quando perdi a tudo e todos, eu não estava ali? </p><p>Quando cantaram minhas músicas e eu tapei meus ouvidos para não destruir a memória límpida que tinha delas, eu não estava ali? Quando me deram tudo o que eu precisava para continuar existindo e sobrevivendo num mundo que não me era manso, eu não estava ali? Quando me deram a chance de continuar vivo pelo bem de seu sadismo, sem viver junto deles e delas, sempre distante, inalcançável, intocável, eu não estava ali? Deram-me tudo o que eu precisava para existir: as lembranças físicas e intangíveis de quando eu estive ali. Na carne, no âmago. </p><p>Eu não sou o homem? Eu estava ali! Não sou? Não sei. Pouco me importa saber, agora, se sou o homem. Todas as vezes que fui, preferia não ter sido. </p><p>Eu estava ali quando me bateram por diversão. Estava ali quando me violentaram a alma, a carne, o cálcio dos ossos, o marfim envolvendo meus olhos, em cada canto, eu estava ali quando me levaram para ser o homem e pagar por isso. Estava ali quando procuravam o homem que roubou de bolsos vazios, que matou sem arma, que trapaceou sem jogo. Eu sempre estive ali quando procuraram pelo homem. <br /><br />Quando não morria fácil, também procuravam pelo homem que contaria boas histórias sobre o terror que o secou o sangue. Eu estava ali. Estive quando ele me olhou e disse que amava o homem que eu era. Nos anos em que me fez sentir que sabia, eu, o que era ser homem para outro homem, afirmo, estava ali. Quando partiu e me deixou sem adeus também. </p><p>Eu estava ali, em todos, em tudo, só não como homem, apenas. O artigo que me precedia e perseguia especificava também a necessidade que os outros tinham de me alcançar para estraçalhar o que viam, ouviam, sentiam do odor forte de quem exalava fogosidade. Eu nunca ardi. Nunca. Eram os fitares dos outros que me queimavam. Eu nunca pelei mais do que pelou o peito quando precisava tirar dele o calor para lutar. Por fora, eu nunca ardi. O fogo é neles, não em mim.<br /><br />Eu não sou o homem? Para eles, quando convinha, sim. Comigo, sozinho, não. Fui eu muitos, demais, em excesso, abundância, uma estante farta de livros e seus instantes mirrados. Definido no 'o', não caibo. Diluído no um, sumo sem ser visto e deixo rastro ou cheiro algum.<br /><br />Eu não sou o homem. <br /><br />Sempre estive entre eles. Nunca com eles. <br /><br />Só, sempre só, homem. Assim estive quando estive."</p><p>Homem, ele, por mais um dia, não se esqueceu de quem nunca foi, mas esteve.<br /><br />Quando esteve. </p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-14427481441303216202022-04-27T07:18:00.007-07:002022-04-27T12:20:36.485-07:00Flume<p>Não contei as lágrimas. Sei que foram poucas. Antes eu tivesse as deixado chover por fora. Escorri por dentro. Veio a cheia. Inundei. </p><p>Flume. <br /><br />São os rios solitários? Profundos eu sei que são. Até os rasos fazem afundar. Queremos mergulhar neles, buscamos seu profundo, seu íntimo, queremos caber dentro do rio para com ele correr. Ao lado, a dois, estreitos entre as terras que morarão debaixo das unhas quando, finalmente, tocarmos seu fundo. Afundar, profundo, fundo. Busquei sempre alguém para correr comigo, em minha intimidade. O tempo que passou, eu permaneci como solo fluvial. Tive-me, enchi-me, fiz divisas para proteger o que era meu, sem proibir que fosse do outro. O tempo que passou, não eu. </p><p>Escrever mais para contar menos. Não são tantos os textos. Quem dera eu tivesse escrito para fora, na fala, na conversa, na terapia, o que seja. Recorri ao de dentro. Plúvio. </p><p>Senti falta por ter sentido vontade. Quero porque sempre quis. Há tempos que quero porque há tempos nunca tive. Ele passou, eu fiquei querendo. Passou e me olhou de leve, com ternura, de uma maneira que nem eu mesmo conseguia me olhar. Espelhado em seus castanho-escuros, vi-me, enchi-me, saí das divisas e transbordei como nunca antes. Nem o tempo conseguiu fazer com que ele passasse. Por isso estou aqui. </p><p>O desejo de ser amado para poder amar. Na base da confiança, na certeza do curso a ser seguido, a incerteza do sentimento que nunca chega é certa. Quem corre por mim além de mim? Quem escorrerá, um dia, ao meu lado, dentro e fora? E sentir que eu posso ser para o outro o fio que rompe com a seca, umedece os lábios, dá de beber e toma para si - a goladas - as correntezas todas que livram o amor de suas próprias amarras? Posso eu sentir? De repente, sinto porque não posso, mas quero porque sempre quis, mesmo sem poder. </p><p>Há sempre alguém, mesmo sem existir o nome, o endereço, o tamanho dos pés e a cor dos pelos. Há sempre alguém dentro de mim. </p><p>Custa muito amar, daí nasce o desejo. Amo porque quero queimar o sentimento. Desejo consome, esfarela e acinzenta todas as cores. Tudo vira cinza depois do beijo carminado. Tudo some. Fica o rastro, só. Amo desde muito novo, e de muitas formas amei. Sozinho, em todas elas. Amo porque não me obrigo a sentir. Sou pego de surpresa, todos os dias, pela minha capacidade de renegar uma força tão genuína e, ainda assim, pulsá-la nas sutilezas e detalhes do cotidiano. Na superfície, reflito o céu. No fundo, aflito, quem passa é o tempo. Eu fluo.</p><p>O que eu quero. Ser rio. Pra alguém além de mim. </p><p> </p><p><br /></p><p><br /></p><p><br /></p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-42934881413921122492022-04-13T07:14:00.003-07:002022-04-13T07:27:11.355-07:00Amar depende<p>Passei as férias tentando escrever mais algumas páginas de um livro que não sai da minha cabeça há anos. Nem um ponto sequer. Manteve-se dentro de minhas ideias. Recentemente, inclusive, só consigo pensar em cigarro. Digo “recentemente”, mas na verdade é cotidiano. Persegue-me esta vontade inegociável. Engano a mim mesmo dizendo que “amanhã eu compro um maço ou vou atrás de tabaco orgânico”. Amanhã nunca chega. </p><p>Também me acompanha as tantas angústias. Na verdade, não sei por qual motivo ainda me lembro do que não esqueço. Cigarro, angústia, a necessidade de vir escrever para registrar o que não lerei nos dias futuros. Não leio o que escrevo e isso nada tem a ver com arrogância de escritor. Não leio porque não me desperta curiosidade. Eu já sei o bastante de mim. Quando, às vezes, subitamente, descubro algo novo sobre mim, guardo. Nunca se sabe por quanto tempo durará – se é para sempre ou momentâneo. Nos últimos dias, comecei a pensar mais no futuro. Ansiedade provavelmente é a razão. Não sei pelo que espero, mas sei que é sempre pelo pior. </p><p>Enterrar alguém sem ter que ir ao enterro, não conseguir pagar as contas, ver a casa desmoronar, não sei, mas sei – é o pior, sempre. Pode parecer cruel, mas desejo fumar e me ver sozinho, por completo, sem ninguém dependendo de mim. Talvez porque eu saiba como lidar com meus problemas, porém odeio ter que lidar com o dos outros. Cobro-me demais quando sou requisitado por outro. Se não consigo ajudar, carrego, então, a desgraça alheia junto da minha. Dobro o peso no lombo e não peço ajuda. Meus amigos sempre vão dizer que preciso de tratamento, terapia. Estão certos, mas eu já sei o bastante de mim para entender que não desejo conhecer nada novo ou revirar o velho. Estar como estou não é bom, só é pior quando há pessoas evolvidas. Gente ligada a mim. Eu não quero. Queria gente por perto, mas que não estivesse ligada a mim, dependendo de mim, esperando por mim. Ensaiei uma resposta para meus amigos quando perguntassem “o que você gostaria de ganhar”. Pensei em dizer: amor de quem, por ventura, eu amasse. Nunca perguntaram. Nunca responderia isso também. Amor não é dependência, mas amar é. </p><p>Morre o jovem que nunca nasceu. Ele, também, uma promessa vaga. Vai-se o tempo, a vontade, a gana, fica o que sobrar. A gente come sem sentir sabor, parece até que fumou demais e perdeu o paladar. Não se fuma para sentir gosto, pelo contrário. Ter-me-ias querido ser insípido no beijo, na fala, na cala, no céu cavado da boca. Não fui. Traguei demais, camuflei-me na névoa que perfuma o fim com cara de fim, sem riso, sem abraço, sem gosto de fumante com língua de cinzeiro na do amante. Estourei meu peito.</p><p>Que os dias durem menos - como um maço - quando se há o que entregar de si para o mundo. Durem mais - como o último cigarro - nas vezes em que não somos encontrados. Nos poucos dias em que nos tornamos inalcançáveis, incansáveis. Mão nenhuma nos toca, a polícia não nos pega a troco de nada, ninguém mais nos vê pelo contraste de nossa cor. Somos só nós, eu, você, longe e sem contato, sabendo um do outro mais do que o suficiente. Eu te imagino fumando.</p><p>A mim, mais um dia. Depende de como ele for, eu fico mais anestesiado. Olho sempre para meus dedos e vejo o quão tortos são. Lembro de minha vó, de ter sentido, a vida toda, que já nasci com mãos envelhecidas. Mãos de bruxa que, com um cigarro por entre os dedos, ganhavam vida no desgaste. Amarelavam as unhas, pareciam lentes antigas de óculos ou durex de décadas colado em alguma foto, caixa ou controle remoto. Amarelam com o tempo. Fica o medo estampado. Quem fuma tem medo de quê? Se o maior deles é a morte, pode ser que seja dela. É possível ter medo sem se amedrontar. Também é possível amar sem depender. Já vi nas histórias dos outros, só na minha que ainda não.</p><p>Este livro será escrito, eu sei. Amanhã eu fumarei, sei disso. </p><p>Amar, depende. </p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-63163129400739827382022-03-22T10:46:00.009-07:002022-11-08T12:10:57.924-08:00Toca pra chamar<p><span style="text-align: justify;">O toque calejado não sente muito
do topo da gente. Escorrega pela casca esfregando as montanhas secas sem
cachoeira, secas e ressacadas, sobre a pele ressentida. Não se sente muito, mas
passa a mão mesmo assim. Toca pra chamar, num frio momento em que se tenta
soprar a brasa do tempo, uma fagulha de chance, um carinho qualquer pro cansaço
próprio. Toque de recolher.</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">As horas passadas e ultrapassadas
do dia sem fim nunca chegam. Nunca bastam. Seguem firmes e fixas no infinito
buraco das obrigações. Contas choram mais do que filhos que nem se tem, dívidas
cobram mais que rancores muitos tidos, sustento pesa tanto quanto o corpo
suspenso no ar, caindo sobre a cama arrumada para a manhã de amanhã. Leva-se,
lava-se, alguns segundos a mais, só, como as gotas a cair e acariciar a moleira
sempre fervente a benzer os fios crespos do profundo cabelo em quente momento que
corta o frio. A geada do esquecimento puxa as datas perdidas e as enrola com a
toalha. Demora para sair, merece o atraso, é sua vez de não estar. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Quando se cuidou por último?
Quando teve medo de se perder? De morrer sem um grande final? De embranquecer o
olhar e encontrar, no fim do túnel, um retorno indesejado? Precisa voltar,
precisa trabalhar e responder às tantas bocarras cheias de notificações. Caninas,
molares, sempre impacientes como dor de dente, amolando e pedindo tudo para ontem –que começou
desde hoje, já na hora de ser a manhã de amanhã. De um cômodo ao outro, não
cabe mais. Esbarra o cotovelo na quina que range a madeira e prensa a
mandíbula. Sua língua não desenrola faz tempo. Não encontra outras, não dança,
mas cabe inteira no céu acima. Algo tem que caber na boca. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">E os dedos, e as pegadas
invisíveis sobre a madeira, elas ficam. Quando sair, quem fincará? Seu cheiro
vai e se pega contigo e com o outro que chegar. Você não o sente, mas ele sim.
Autorreconhece-se como aquele que cobre a mudança para evitar poeira. Um novo
lugar para recomeçar o cotidiano. Sobre as caixas, aquele velho manto que
esfarela a cada fim de dia. Pó de si e o véu da fragrância original numa
dialética imóvel dos móveis que, amanhã, já serão parte da manhã. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">O cansaço não muda. As horas
também não. Mesmos, conhecidos, manjados. Na nova solidão, cheira a própria
carcaça. “Com o que me farejo?”. O que vai nas paredes? Algumas fotos, um
quadro. De novo? Nada. São os mesmos também. Há de se ter o gasto como parte da
existência custosa. Só de conseguir desempacotar tudo e colocar o melhor de si
nas prateleiras já deixa fechado com que chave a porta será aberta para os de
fora. Colocou no bolso do outro, mas não trocou pela nova. Espera sua visita tocar
a campainha, espera sua visita tocar sua mão e entrar, espera sua visita sorrir e lhe abraçar.
Enfia a mão no bolso dele, tira a velha, coloca a nova, senta e assiste, de
dentro para a fora, a porta, mais uma vez, ser aberta. Não se despede. Apenas
admira quem lhe faz sentir em casa na sua casa. <o:p></o:p></p>
<span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 11pt; line-height: 107%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Os calos seus na pele do outro são como um peso
a mais. Um toque a mais. Firme, rígido, de quem chama para ficar. Toca pra
chamar.</span>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-68867957019739361602021-10-14T07:45:00.006-07:002021-10-14T07:52:29.774-07:00No fundo<p></p><p class="MsoNormal">Os passos até o centro da cidade não eram largos. Caminhava
conforme a música em seus ouvidos. Trilha sonora por entre os tantos carros à
margem da sua imaginação. Os rostos, aqueles sem som nos ouvidos, pareciam
ranger as rugas de preocupação. Conflitavam com as fotos que iam sendo batidas
dentro da cabeça daquele que, sozinho, tentava fugir de tudo e todos. Sozinho,
mesmo assim fugitivo. As mensagens chegavam aos montes, mas a regra era ignorá-las.
Uma espécie de jogo mental que ele fazia consigo mesmo. Tanto tempo se sentindo
solitário fez com que se tornasse parte do à parte todo. Quando procurava pelas
pessoas, achava-as. Quando era procurado, desaparecia. Ingratidão, insensibilidade,
pouco caso, indiferença. Vão entender sobre tudo, menos sobre depressão. Menos
sobre se tornar inacessível por não ser insensível. Trocar o sentir pelo “sinto
muito, mas não estou”. Vão entender sobre tudo, menos sobre isso do “consigo
mesmo”, sem mais ninguém.<br />
<br />
O que comer? Em qual bar parar? Quem eu não quero ver e corro o risco de? Para
onde não ir? O mapa se faz pelos caminhos conhecidos ou pelos desconhecidos?
Por onde ir ou por onde não ir? Escolher a comida e o que beber ajudava a ter
alguma sensação de autonomia. Isso, em partes, também lhe devolvia certa quantidade de serotonina, adrenalina, ou falsa sensação de ter algum controle
sobre aquele vazio imenso. Desenhar o horizonte com a ponta do dedo para, em
seguida, tentar segurá-lo com as mãos. Sentou-se ao fundo, na última mesa,
local íntimo, perto do banheiro e da cozinha, onde se come, é comido, livra-se
do que sobrou e reaproveita os restos. Onde tudo cheira forte, igual gente. O
atendente de sempre, com aquele olhar cotidiano. Conforta encarar um
desconhecido que sente te conhecer pela frequência e não pela intimidade. Tão
perto, mas tão longe. Conseguem sentir o cheiro um do outro. Sobra demais,
exala demais. No dialeto dos cansados, apenas as frases feitas têm valor, pois
facilitam o caminho até o final previsível. É na metade da conversa que eles se
encontram, atendido e atendente, perto da cozinha e do banheiro. <br />
<br />
O primeiro gole faz a mandíbula repuxar e arder um pouco. Sua mente sempre lhe
dá o mesmo diagnóstico: é o estresse ciente de que o álcool irá lhe tomar. A
respirada profunda, a garganta mais ainda, desce e vai soprando as feridas. Uma
cura que dói, talvez. Escreveu assim numa das páginas, numa das vezes que
esteve ali, ele. A cena era aquela, sem nenhuma excepcionalidade. Um cara
sentado, sozinho, envolto nas suas questões, envoltas na sua mente, envolta na
angústia sem fim que a tudo tempera. Não tinha ele como dar aos outros as razões
para seu sofrimento. Só sabia que doía de um jeito não compartilhado com os
demais. Era uma dor dele, algo antigo. Um pertence íntimo.<br />
<br />
Quando a mordida perdia força e os lábios passavam a pesar mais, olhava ele para o
nada. Diante de si, outras mesas, outras bocas, copos, cardápios, cheiros, mas
ainda assim distantes. No fundo, o íntimo, a cozinha e o banheiro permaneceram com ele e, de tempos em tempos, com o atendente. Bastidores daquele momento,
estão e só. Nada de mais, nada de incrível. Tudo sem novidade. A vida é assim
também. Muito mais assim do que pensa a maioria das pessoas. Momentos especiais
não fazem sempre história tampouco se tornam. Já os comuns, que são feitos para serem esquecidos
enquanto vividos, prematuros, vêm ao mundo para dar adeus e dizer que um
simples segundo pode pesar demais. No fundo, pesa mesmo. <br />
<br />
Todas as vezes em que foi até o bar carregava na mente algumas tantas questões.
Problemas no trabalho, em casa, nas relações diversas, problema com o mundo e
com ele mesmo. Esta era a razão para ir sozinho e não responder às mensagens. No
fundo, é íntimo. <o:p></o:p></p><br /><p></p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-87500170190616762792021-08-17T10:02:00.002-07:002021-08-17T10:14:51.095-07:00Histórias<p>O toque. Sentia falta do toque. Enquanto ouvia o som a rasgar lentamente meu peito, passei os dedos sobre o telhado das mãos... Estiquei a pele e vi veias. Por conta dos montes de dias comuns, parei de contar os de crise, deixei de contar aos amigos, guardei para mim o que nunca quis, mas aprendi a aceitar. Todos estes anos e eu, hoje, toco minhas próprias mãos para lembrar que escapei de toda a ajuda, todo o tratamento, toda a orientação capaz de me fazer menos eu, mais comum, feito os tais dias. Feitos para serem esquecidos. Ou nunca contados por outrem.</p><p>Perguntei-me, “imagine se eu fosse contar a vocês tudo o que já vivi?”. Instantaneamente, as imagens reviraram na cabeça. Estilhaços e mais estilhaços lançados contra meu rosto de dentro, aquele que, mesmo no escuro de pálpebras fechadas, é obrigado a me encarar. Eu vi tantos momentos, preso neles, ou agarrado a eles, às vezes buscando por eles e, ao não tê-los, imaginando-os, eu me vi vendo. Como não consegui me destruir por completo? Não cabia a mim tal tarefa. Ela, que ainda me corrói sem descanso, é quem dará cabo desta tarefa.</p><p>A tarefa de angustiar. </p><p>Não deveria eu rememorar o passado e sentir de bom grado o gozo dos que venceram a si mesmos ainda que a miséria da própria mente posasse junto às fotos, sorrindo sem os dentes? O teatro que a melancolia montou não me deixa. Na encenação dos meus fracassos, faz-se a verdade que nunca superarei: sou eu quem fecha as cortinas antes dos aplausos, pois diante dos outros, o que espero são vaias. E se elas vierem, serei capaz de confrontá-las. Construí-me assim, ensaiei as falas todas. Agora, se forem palmas, se por acaso me ovacionarem, aclamarem minha existência frágil e rascunhada, meu ensaio, minha certidão de encerramento, meu final, o que farei? Não saber me mata, seca-me o sangue. Eu não sei o que fazer quando me colocam diante daquilo que os ofereço: o melhor de mim no pior personagem que eu poderia fazer. </p><p>Preparo-me demais para, fatalmente, sabotar a peça. </p><p>O toque ainda me falta. Peço por ele, antes de dormir, no lugar da oração. Há de ser sempre um pedido silencioso, tímido e quente. Quase como colocar as linha da vida sobre a chama da vela. O limite entre dor e prazer se resume à simples necessidade de lembrar a si mesmo, ainda que se arrastem os dias comuns, de que se sente. Dor ou prazer se sente. </p><p>Comigo, arrasta-se ela. Conosco, vamos um com o outro, até que o toque nos separe. Feitos para serem esquecidos. Ou nunca contados por outrem. </p><div><br /></div>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-33155800127200197112021-02-04T13:10:00.003-08:002021-02-04T17:36:09.763-08:00Caminho contrário<p>Acordar na casa de alguém, sair antes que ele levante, achar uma padaria, pedir um pão na chapa, suco de laranja, pensar "porra, queria ter dormido na minha cama mesmo", sentir cheiro de álcool e suor amanhecidos, colocar o celular no modo avião para não receber um "Cadê você?". <br /><br />Fiz o caminho contrário, e cada pessoa que passava por mim parecia sentir meu odor com o olhar. Estava frio, típico amanhecer sem graça em São Paulo, cidade dos dias úteis. A cara era a de quem levanta com pressa porque, mesmo no horário, sente-se atrasado e inútil. A desgraçada da estação de metrô não chegava nunca. Tudo o que queria era sentir que já estava perto da minha vila. Ontem tinha sido tão ruim assim? Não sei direito, eu me lembro, mas faço questão - e esforço - de esquecer. Começou a funcionar. <br /><br />Duas linhas inteiras, uma pela metade, até a estação onde se faz baldeação. A eternidade tentando se vender em vagões, que de vagos só tinham o nome mesmo. Em qualquer horário há sempre gente o suficiente para ocupar todos os bancos, comprar todos os chocolates. Aqueles olhares normais, cotidianos, contados dia após dia útil. Pior era eu que ainda os observava, tentando achar algo ali para me distrair. Inútil. No fundo, inútil era eu, evitando quem fiz questão de não evitar ontem à noite, quando tive a chance. Não queria pegar o celular, a mensagem estaria ali, eu sentia. <br /><br />Por que evitar? Foi tão ruim assim? Para mim, foi. Para ele, já não sei - e não quero saber, este é o ponto. Há dois momentos na vida em que sentimos calor insuportável que não deixa dormir: quando estamos com medo de algo sobrenatural e nos cobrimos, ou quando estamos com tesão e, sem poder liberá-lo, ele finca sua boca molhada nas costas da primeira orelha desavisada e lambe devagar, até a gente se retorcer no colchão descoberto deixando a saliva pingar. Nem ventilador ligado, nem brisa que entra pela janela conseguem desimpregnar do corpo aquela sensação de querer queimar. É o querer que faz arder, não o calor do ambiente em si, entende? O ambiente tanto faz, tanto fez. É um calor de dentro para dentro, ao invés de para fora. <br /><br />Passei a mão rapidamente pelo rosto e senti aquele cheiro inconfundível de "agora eu que me vire para conseguir lidar daqui em diante" na ponta dos dedos. O caminho corria, eu voltava até o apartamento pequeno, observava ele dormindo como se nada tivesse acontecido. Não aconteceu, mesmo, e este foi o grande evento dentro de mim. Uma festa clandestina onde era celebrado o aniversário da rejeição. De convidada só havia ela, óbvio, ensurdecida por suas próprias reclamações, ciente de que não tinha ninguém além de si - um amor próprio imposto e inevitável. Durou a noite inteira, varou a madrugada, e eu não pude fazer absolutamente nada. Fiquei sentado, contando a gotas a agonia que me preenchia. Era certeza que, quando o sol nascesse, além da insuportável luz fina que anunciava mais um típico amanhecer sem graça em São Paulo, eu ainda teria que recolher a sujeirada da noite anterior. Levaria o pratinho com o último pedaço do bolo que me dei de consolo. Até então, não era isso que me angustiava.<br /><br />Eu não precisava ter dormido ali. <br /><br />Um pão não tinha sido o bastante. Deveria ter comida mais. Bebido mais um copo de suco. Também poderia ter parado em algum lugar e comprado um maço. Voltaria a fumar, assim, depois de ter negado todos os cigarros dele, mentalmente, sem que tivesse me oferecido um. Seria tão bom, mas eu já estava azedo só de ter que lidar com o celular, imagine com caixa de padaria que dá troco de moeda ou cobra 1 conto a mais pra passar um box no débito? Por favor, não estava em condições. Ainda mais com um só pão na barriga. Não. Outro dia. Mais vinte e quatro horas. <br /><br />Por que eu fiquei? O horário da condução não tinha se encerrado. Eu poderia até ter pago um carro para voltar, ou, de repente, dormir na casa de alguma amiga, amigo, colega, sei lá. Virado a noite num corujão. Só não podia ficar na rua e correr o risco de ser enquadrado, esfaqueado, quem sabe até roubado. Isso não, sem condições. A gente já se fode de trabalhar pra ser tirado de otário no serviço, não tem como virar comédia na rua. Eu sei, fatalidades, lugar errado, hora errada, enfim. Desculpas não faltavam no meu bolso ou na agenda do celular. Fiquei porque quis, porque achei que finalmente minha racionalidade seria vencida pelo inusitado. Quando tirei os sapatos, enchi meu copo pela quarta vez, e fechei os olhos para ouvir músicas que ambos gostávamos, eu já tinha decidido o que me fez ir até ele. São as mentiras que eu conto a mim mesmo que também me angustiam. <br /><br />Quando eu falo de voltar a fumar, eu não minto sobre tal desejo. Minto quando não fumo e adio para outras vinte a quatro horas este reencontro. Eu finjo que me engano e sigo fingindo ser enganado. Eu finjo uma data para o reencontro. Talvez seja eu um completo irresponsável sentimental nesse joguinho todo de negação. Só que é assim que eu consigo fazer com que todo dia não seja o dia, a hora, mais do que vinte e quatro. Eu conto cada cigarro do maço, são 22 ou 20, se não me engano. Mas não fumo, ainda, porque preciso acreditar na minha mentira e preciso me enganar acreditando. Sigo nessa dança solitária que é conviver consigo mesmo quando se pensa demais, planeja demais, estrutura demais, sem admitir que o verdadeiro desejo é o de soprar fumaça no castelo de cartas e ver tudo ruir. <br /><br />Disse a ele que não poderia ficar, podendo; que eu tinha que tomar pelo menos um banho para o dia seguinte - e isso era a mais pura (talvez a única) verdade-; que era meio de semana ainda, sem que isso fizesse diferença qualquer; que eu ia dormir logo - um desejo real, mesmo sabendo que não conseguiria dali para frente. Ele ouviu, acreditou, concordou com tudo, e teve o que queria: eu, ali, contra a minha falsa vontade de não ficar. Menti para mim mesmo achando que não valsaria sozinho esta farsa. <br /><br />Falta apenas um ônibus e chego em casa. Dentro dele, já sinto tudo menos decadente. Talvez porque o caminho passasse pelas tantas vielas que adentrei ao longo das minhas três décadas. Era gente abrindo o comércio na garagem de casa, cheiro de produto de cabelo nos salões com tamanho da caixa de fósforo do jornaleiro bicheiro que acendia aquele cigarro matinal, tão ritualístico quanto meu vício de mentir para mim mesmo buscando manter uma saúde que não tenho. Melhor, que não me importo em ter, mas tenho medo de perder. Eles indo, eu voltando. Eles começando, eu torcendo para acabar, torcendo para terminar aquele caminho contrário. <br /><br />Precisava dar um sinal de vida. Tirei do modo avião. Não tinha mensagem dele. Havia se passado mais de duas horas desde que saí. Ele já deveria ter levantado. De repente, levantou e não se deu conta de que eu tinha partido. Foda-se, melhor assim. Eu não saberia o que responder se ele me perguntasse por qual motivo saí às escuras. Diria que era meu jeito? Provavelmente. Assim ele desistiria de entender. Eles sempre desistem. <br /><br />Desci dois pontos antes do meu. Sem condições de ficar sentado naquele banco a sacolejar. Além do mais, eu gostava de andar a pé. Na verdade, eu preciso, é uma necessidade. Andar me faz pensar que não estou pensando demais. Cada passo busca distração qualquer que tire de mim alguma conclusão do que vejo, ouço, farejo. Volto a ser criança dentro do fusca de meu tio, indo para Itaquera, observando as luzes da cidade refletidas no vidro cheio de gotas esparramadas sobre o cobre dos postes de mercúrio. Lá, naquela lembrança, eu andava sem precisar dos meus pés. Era o mundo fazendo um caminho contrário. <br /><br />Dona Hermínia enrolava a sacola de feira. A vista cansada ainda conseguiu me alcançar. Deu sua benção e um sorriso largo que redesenhou todas as marcas naquela pele preta vívida e vivida. Benção de dedos tortos, bem vividos também. Era o que eu precisava. Cruzamos nossos destinos e dissemos, um ao outro, qualquer palavra de proteção. Vá e volte, Dona Hermínia. Que o tomate não esteja o roubo de sempre. <br /><br />Ali, um quarteirão antes da minha cama, as pessoas não me olhavam. Eu me tornava invisível. Mais um, ali, indo. O que eles não sabiam é que, na verdade, eu fazia o caminho contrário. <br /><br />[Mensagem]<br /><br />Ele: Dormiu comigo ontem para sair assim, sem dizer tchau? <br />Eu: Pelo contrário. <br /><br /><br /><br /> <br /><br /><br /><br /> </p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-36556892048892534062020-12-14T11:25:00.039-08:002020-12-21T03:56:42.013-08:00Banho-maria da solidão<p>Seu corpo já não era mais o mesmo. A cada final de dia, ele mostrava o desgaste. Rangia os cantos, doía as dobras, ressecavam-se as vigas. Era de se esperar, mas a vida não permitia sentar e aguardar. Pelos cômodos, zanzava de um lado para o outro, cuidando do lar, e não de si. Parecia até que morava fora da própria carcaça. Quando lhe sobrava algum tempo, pegava a faca e tirava as sujeiras debaixo das unhas, imaginando quando teria a chance de pintá-las novamente. Inclusive, imaginar ainda era o que lhe conferia algum alento. Alguma autonomia. Apesar de não ter mais patrão que ordenasse o que fazer, estava sabido de que a maior cobrança viera sempre de si mesmo. Não podia parar. Precisava se sentir útil, nem que custasse o esfarelar das paredes adentro e afora. </p><p>Em tudo o que fazia, depositava um pouco de si. Se varria o pensamento, refletia sobre a vida. Enquanto lavava as mágoas, lembrava de amores passados. Na hora de cozinhar, a escolha dos temperos, dos legumes, da quantidade de água e intensidade do fogo, dividia espaço com o cantarolar de receitas que um dia tiraram da língua a insipidez das palavras não ditas. Enchia a boca de música, era o seu jeito. Ainda assim, mesmo nos instantes de abstração, permanecia em movimento, trabalhando sem parar. Ao seu lado, o cansaço, sem cansar, permanecia. Abstrair, no final das contas, era o banho-maria da solidão.</p><p>Certa manhã, enquanto tirava o pano de cima da farinha de milho para preparar o cuscuz, passou as costas da mão na testa e a levou até o meio da cabeça. Quando atingiu a moleira, fez-se um carinho. Neste instante, salgou a massa amarela com lágrimas. Há tempos não sabia o que era afago. Todas as dores que compunham as articulações se comoveram com aquela cena e deram alguns minutos de alívio a ele. <br /><br />Enquanto seguia o instante, chorou e se deu a si mesmo. Cansou de buscar nos afazeres do dia a dia algo que apenas se adquire quando é o lado de dentro que assume o controle da situação: valor. O tempo, senhor daqueles que contam com ele, trocou suas roupas leves e brilhantes pelo manto grosso e escuro da noite. Forrou-se, anunciando, assim o fim de suas atividades. Mas ele, o exausto, seguia trabalhando. <br /><br />Foi então que a intervenção ocorreu: queda de energia, tudo se apaga. Sobra sobre a mesa uma vela. Ao olhar fixamente para ela, ainda apagada, tentou calcular quanto tempo duraria acesa. Duas, três horas, talvez? Até lá, teria voltado a luz? Não sabia, e não saber lhe atormentava. Foi até a porta da cozinha, olhou para a vastidão do quintal e avistou o jardim. Lá estavam as rosas, a camomila, guinés, abre-caminhos, as respostas todas. Um banho lhe cairia bem - e o levantaria daquele chão terroso. <br /><br />Antes, sentou-se à mesa e pegou a carta antiga que havia escrito, mas nunca enviado. Sabia a data de cór: trinta e um de janeiro - o último do primeiro. <br /><br />"Oi, sou eu.<br /><br />Você me abandonou. Todos estes dias aqui foram despedidas. Sete, para ser mais exato. Antes eu não sabia, mas agora sei. Acho que isso me tirou um pouco da angústia. Eu sofri em silêncio. Talvez meu olhar fizesse algum barulho, só que era baixo. Quando eu mirava os pés, os meus e os seus, algo ecoava aqui dentro. Nem seu ouvido colado em meu peito conseguiria captar esse som, mas que algo ali chiava, garanto, chiava.<br /><br />As distâncias nunca foram novidade, não é sobre isso que me refiro quando falo que fui abandonado. Hoje, escrevo esta carta para retribuir o seu adeus. Sinto que fui abandonado porque percebi que eu não era a chegada, eu não era o retorno, sequer o começo ou recomeço. Eu era a passagem. Um momento que nasce só porque já sabe quando irá se findar. Se pensei que poderia finalmente ser o propósito, acabei por me enganar. Às vezes eu faço isso, eu me engano para conseguir viver uma vida mais humana, com os erros todos, com o sofrimento que nos faz lembrar de que ainda sentimos algo por que nos falta bastante. Se no fundo eu sabia que assim seria, nas bordas, queria dar voltas para achar um caminho diferente até nós dois, sabe? Não consegui. Errei. Sou gente mesmo. </p><p><br />Você me abandonou quando desdenhou da comida que te preparei. Eu fiz com as mãos, tinha muito de mim ali. Fiz com gosto, com amor, mas não te fiz ficar. Também me abandonou quando olhava ao redor e tudo te irritava, mas não conseguia mirar em mim e achar aquele fim de tarde bom, onde a gente podia se trocar nos toques em nossos rostos mornos como se, ao invés de batê-las, deitássemos o sol nas palmas. Eu escrevo aqui, agora, pra ti, do jeito que sei dizer o que não te disse no momento certo. Eu sei que poderia ter falado tudo isso enquanto esteve aqui, mas o passageiro aqui era eu, não o que eu tinha para te dizer. Isso era para ficar. Você me abandonou quando veio porque sabia que não iria ficar. Meu erro foi duvidar desta certeza tão forte quanto o abraço que te dei em meio às malas. <br /><br />Meu coração sofreu demais. Você levou muito de minha felicidade contigo. Não te cobro ou culpo por isso. Eu a dei de bom gosto, sim. Digo que a levou para te lembrar que ainda a tem, caso esta fosse sua vontade. O pedaço de mim, esse não passageiro, mesmo viajando contigo. Não pude ir até onde está. Não sei se consigo ou se quero ir. Enfim...o que sei é que você foi. <br /><br />E agora que foi, não volte. Teu lugar em minha mesa é outro."<br /><br />Com o balde cheio, arrastou o corpo cansado até o banheiro. Abriu a janela, deixou a noite entrar, e o prateado sutil da lua tingir a água. As ervas preparadas. A pele, os pelos, as palmas e solas, tudo em silêncio, esperando pelo fim do encardido. Aos poucos, foi se banhando e sentindo cada bocado daquele emaranhado de quereres calados, por vezes mal ditos, não atendidos, adiados, nervosos, impacientes, firmes. Sempre muito firmes, segurando o todo que ele chamava de "eu". Um nome submerso nas águas agora douradas pela mistura do bronze de sua marca com o argento minguante. <br /><br />Pronto, sangrou tudo o que tinha para sangrar. Salgou tudo o que faltava salgar. Mas o doce, este se manteve. Na maciez encontrava aquele pouco de açúcar que ainda lhe fazia sorrir os ânimos. Com o melaço escorrendo da ponta dos dedos, sentou-se nu à mesa e degustou o suor adocicado como se fosse a recompensa pelo dia tão custoso. Parou, olhou e disse, convencido: <br /><br />"Fiz com as mãos. Tem muito de mim aqui". <br /><br /> <br /><br /><br /> <br /><br /><br /></p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-30471167628601064862020-12-07T12:08:00.002-08:002020-12-08T12:13:11.808-08:00Lúcido<p>Quando saí pela culatra e fui atrás de você, eu sabia que era uma corrida sem fim. Um disparado sem rumo, um susto, aquela tentativa de evitar o retiro. Daqui, sei que a gente se pensa. Esta é a única certeza que guardei sobre nós. Vivemos o bastante para que se fizesse o para sempre. <br /><br />Eu sei que o orgulho queima qualquer carta escrita e não entregue, mas as palavras que grafamos nela, isso não há como destruir. Cada escolha feita no momento de compô-la era mais do que comunicação. O que fazíamos ali era afago um no outro, sem tocar nos respectivos orgulhos. Maneira tola de achar que estamos nos preservando sem abrir mão daquele outro – você aí, eu, aqui – que nos complementa tanto. </p><p>Suas visitas nos meus sonhos são as melhores. Eu, lá, posso me emocionar e chorar enquanto te abraço e digo que senti sua falta mais do que seu desprezo. Fazemos as pazes no meu inconsciente que, neste contexto de rompimento, é mais sensato e consciente do que o eu-acordado. Às vezes é difícil de lidar com o paradoxo de ter você sem precisar abrir mão de uma parte importante de mim. <br /><br />Para nossa infelicidade, fui criado num contexto de despedidas, partidas, de abandono e solitude. Acabei me tornando bom em partir e péssimo em voltar. Mas será que nunca tentarei melhorar? Deveria, eu sei. Admito. </p><p>Queria saber como está. Porém, não consigo te procurar. Ao menos eu sei de algo: você está sem mim. </p><p>E isso, tenho certeza, ainda te faz pensar em nós. Então, pelo menos aí, sei que estamos juntos, nem que por alguns poucos segundos do seu dia.</p><p>Do seu consciente.</p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-57233202950366567052020-12-05T14:46:00.000-08:002020-12-05T14:46:49.003-08:00Do que é feita a gentileza<p>Se eu não suporto o toque de desconhecidos, com certeza é porque existe uma boa razão para isso. Não é algo que explico, ainda mais se for para alguém qualquer a esbarrar em minha vida. Odeio que toquem em mim e ponto. <br /><br />(...)<br /><br />Quando sentei para escrever a história de Antônio, busquei reunir apenas os brinquedos espalhados de sua infância. Pelo chão de barro batido encerado com pasta vermelha, era preciso tomar cuidado para não furar os pés com os bois feitos de galhos secos, ou os cangaceiros cujas armas eram facas cegas de outras épocas. Queria contar para quem quer que lesse que Antônio não era uma pobre criança largada na caatinga da minha imaginação. Não, pelo contrário. O menino era tão rico, mas tão rico, que podia se dar ao luxo de viver sem o mesmo nos momentos de descontração. Antônio era filho de coronel, rosado, nada ágil, uma criança feita para ficar parada, esparramada no chão igual aos seus passatempos. Foi então que se aproximou de mim alguém sem nome e, como se não bastasse, tocou-me o ombro direito. <br /><br />Reagi com rapidez e tirei sua mão com a minha, colocando-a sobre a mesa. O pedido de desculpas dele veio, mas não a minha simpatia. Enquanto os olhos ferviam, a boca se matava para não deixar o fogo escapar. Nesta luta incessante contra o forte desejo de mandar um "vai tomar no seu cu", resumi tudo em: "o que foi?". <br /><br />- Desculpe te interromper. Queria saber se você tem isqueiro. <br />- Não. <br />- "Não" me desculpa ou "não" tem isqueiro? <br />- Não e não. <br />- Poxa, já que o pedido de desculpas não adianta... posso te pagar uma dose do que você está bebendo para compensar o incômodo. <br />- Não precisa. Basta me deixar aqui com minha ocupação. <br />- E sobre o que é sua ocupação? <br />- Olha... eu estou tentando não perder a educação...<br />- Gente, para que tudo isso? Só estava tentando ser gentil... <br />- Sente-se, então. <br />- O quê? <br />- Sente-se, e vou lhe dizer do que é feita a gentileza. <br /><br />Ele sentou. Eu olhei para Antônio e pedi que me esperasse ali mesmo onde estava, envolto por seu folguedo sádico. Ele me ignorou - o que é sinal de que entendeu meu recado. Agora, livre, pude voltar a atenção para o desconhecido candidato a gentil. Dei-me sete segundos de silêncio para analisá-lo. Depois, comecei. <br /><br />- Eu tenho isqueiro. Parei de fumar, mas mantenho ele sempre comigo porque sei que a qualquer momento posso voltar a tragar cada um dos 22 cigarros que um maço tem. Então, além de mentir para você, também minto para mim. Você ainda quer o isqueiro? <br />- Sim, por favor. <br />- Aqui está. <br />- Você quer um cigarro. <br />- Não. <br />- Está mentindo agora...<br />- E você aprendendo. Quero. <br />- Tome. <br />- Acende para mim? <br />- De repente, parece que estou diante de outra pessoa. Primeiro, arrancou minha mão do próprio ombro, agora quer que eu acenda o cigarro em sua boca...<br />- São toques diferentes. No primeiro, você me invade. Neste segundo, sou eu que invado você. <br />- Não entendi. Como assim me invade?<br />- Deixe pra lá. Eu estava escrevendo sobre Antônio. <br />- E quem é esse? <br />- Ele é muitos. Um conjunto de pessoas que conheci ao longo da vida e que, aos pedaços, foram me parindo Antônio, mesmo ele não sendo meu. Despois de costurado, tive que assumi-lo. Sempre quis ser pai, então, apeguei-me a isso. <br />- Antônio ainda é uma criança? <br />- Sim, saudável e quieta. Vive em seu mundo. Não me dá muito trabalho. <br />- E você decidiu escrever sobre ele por quê? É alguma carta para alguém? Para a mãe dele, ou pai (sorri com o canto daquele traço fino e sem graça que lhe parece ser a boca). <br />- Escrevo sobre Antônio porque precisa sempre me lembrar de como mantê-lo vivo. <br />- Não sei se entendi bem, mas, enfim... Não queria ter atrapalhado de qualquer forma. <br />- Já que atrapalhou, diga-me, por que acha que lhe pedi para sentar aqui? <br />- Por que te deu vontade de fumar acompanhado? <br />- Realmente você está aprendendo. <br />- Então, está me ensinando algo, é? <br />- Acredito que sim. Uma lição diferente, talvez um pouco dura. Estou lhe ensinando sobre a mediocridade. <br />- Com assim? Não ia me dizer sobre do que era feita a gentileza? <br />- Antônio é uma criança que tem tudo porque seu sangue enriqueceu com o dos outros. Seu sangue é a herança mais valiosa que ele poderia ter. O moleque é filho de coronel. <br />- Pensei que você fosse pai dele. <br />- Pensou errado, mas como está em processo de aprendizagem, tudo bem. O que tenho por Antônio é a vontade de ser pai, sem sê-lo. Mas a questão se volta para a gentileza e a mediocridade. <br />- Acho que a conversa está estranha demais, você me desculpe, mas preciso voltar para minha mesa. <br />- Antes, queria lhe agradecer pelo cigarro. Nunca mais toque em uma pessoa desconhecida sem o consentimento dela. <br />- Ok, já pedi desculpa. <br />- Meu isqueiro. <br />- Aqui está. Valeu. <br /><br />Fito seu semblante arrastado saindo e desaparecendo entre os desinteressantes. Eu ainda queimava pelas vistas. Não adiantou muito tentar trucidá-lo ali na mesa. Quando eu estava terminando de colocar pressão na arapuca para, depois, lambuzar a ponta dos espetos com veneno, ele fugiu. <br /><br />Voltei para Antônio. Continuava lá, agora com um carcará das penas de palha e bico de semente. Suas mãos elevavam o pássaro que sobrevoava o cercadinho com a boiada. Parecia farto, não patrulhava em busca de caça. Talvez, apenas estivesse se planejando para a janta. <br /><br />Perguntei a Antônio se ele não estava com fome. Ficou quieto por uns segundos e mordeu o porco de batata doce. Aquela criança era realmente simples, pura e simples como toda a criança. Pronta para ser corrompida pelos arredores. <br /><br />Foi o tempo de pular de um parágrafo pelo outro que, de longe, sentindo a pressão do ar mudar, novamente chega o boca de jabuti. <br /><br />- Eu já estou indo, não encostei em você, mas quero saber por que disse que estava me ensinando sobre do que é feita a gentileza e a mediocridade? <br />- Tem mais um cigarro? <br />- Tenho. O último. <br />- Não quero. Não fumo o último do maço dos outros. <br />- Por quê? <br />- Porque não gostaria que pedissem o meu. E não daria também. <br />- Gentil da sua parte. Só um minuto...<br /><br />(Afasta-se, vai até outra mesa com uma garota fumante, pede um cigarro, ganha, retorna e me entrega o mesmo). <br /><br />- Então, você ia me falar sobre gentileza e mediocridade... <br />- Antônio é uma criança que, de longe, segue observada por mim - alguém que não é seu pai, mas que o cria, assume sua existência, responde por e para ela. Naquele gigante quarto, o pequeno corpo se fixa como um ponto no meio da frase, uma quebra brusca que obriga a narrativa a abrir a porta e perguntar se está tudo bem. Ele não responde e segue naquele mundo, um mundo dentro do meu, que o olha a distância. O pivete brinca com seus artefatos rústicos, desafiando o conceito que temos de tempo. Ali, Antônio prova que nada além de sua atenção miúda é o que importa, o que conta e o que passa. O mundo, para ele, é uma batata doce com quatro palitos de madeira que formam as patas do "porco". Eu, mesmo vendo Antônio naquela situação agonizante de inércia no vácuo do quarto-universo, ainda assim não encosto nele. Não me sinto à vontade para interromper aquele marasmo em meio ao silêncio castigador da caatinga. Quem sou eu para achar que minha vontade de chacoalhar aquele projeto de pessoa e dizer - "Antônio, menino, você viu meu isqueiro?" podia ser importante o bastante se filho - ou algo do tipo - a gente cria para o mundo? Ponho-me no meu lugar de observador e faço jus a ele. Às vezes, o que me resta é ficar no meu canto, em meio à opulência do herdeiro de coronel e a pobreza da minha narrativa. Antônio permanece lá, consigo mesmo, sabendo pelo calor do meu hálito raivoso que, de longe, eu ainda zelo por sua segurança. O que ele precisa, eu, como seu provedor, dou: atenção. Sem sentir meu toque, ele sabe que nem eu nem ele somos tão importantes assim para valer a interrupção das entrelinhas em que fomos escritos. <br />- E o que isso tem a ver com mediocridade? <br /><br />(pego sua mão e a coloco no meu ombro direito). <br /><br />- Eu sou Antônio. </p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-59102868376494837932020-10-27T09:43:00.004-07:002020-10-27T09:43:45.963-07:00Tempo da terra<p>Dias secos. Com a poeira do passado sendo soprada pelas bocas desconhecidas, resta-nos fechar os olhos para tentar nos proteger da aridez da realidade. O ontem não se resolveu, e veio cobrar do hoje a solução. </p><p>Ao seguir o ritmo do tempo imposto, calendário balança feito roupa no varal. Começa se movimentando lentamente por conta do peso da água, depois, com o calor, seca e passa a se mover compulsoriamente, descontroladamente, livremente. Tempo livre feito roupa no varal, presa apenas pelo compromisso de continuar servindo. Cabendo. Dia após dia.</p><p>Um após o outro, a folhinha na parede nos recorda: sirva e caiba. </p><p>Quando paro, no instante em que a boca do prendedor afrouxa e posso sentir meus ombros novamente como meus, confiro quantas marcas meu rosto ganhou. Uma aqui, outra ali, vão se encontrando. Se olho para o céu, elas parecem camisa amassada. Se baixo a cabeça triste a ponto de me enrugar mais, deparo-me com o espelho trincado, refletindo as rachaduras do chão - agora na cara - seco, árido, lembrando que o pisar das solas secas no que pela manhã lavei enquanto rosto não pararia no amanhã. </p><p>Um após o outro, seria assim, dali em diante, todo vez que acordasse, alguém me pisaria a face - fosse pessoa ou o tempo mesmo. </p><p>Trabalhar com a ponta dos dedos dando ordens, com o restante de mim obedecendo, com a cabeça queimando a própria moleira e o coração sentado numa cadeira da cozinha, quieto, sem pegar uma maçã ou banana, apenas olhando a mãe limpar para, depois, conseguir lhe comprar maçã e banana. Pequeno, ele fica lá, esperando ser grande o bastante para trabalhar também. Para poder dar de comer à mãe. Dar amor. </p><p>No fim, antes de a noite esfriar o lombo, mexo um pouco na terra já umedecida pelo suor. Salgada, luta para que não sequem os brotos antes mesmo de saírem em busca do sol. Não é falta de água nem excesso de sal. O que lhe seca são os dias. </p><p>Um após o outro. </p>Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-69195471777875066462020-06-03T13:59:00.001-07:002020-06-03T15:11:25.086-07:00CoralCostumo desenhar situações. Literalmente, espalho os lápis coloridos sobre a superfície fina da minha intuição e rabisco todas as possibilidades que podem traçar os dias seguintes. Às vezes isso me toma tempo. Outras, tira-me o espaço para enxergar além do que poderíamos chamar de “expectativas”. Com tempo ou sem espaço, o que sei é que em cada linha desenhada, em cada rastro de cor que se destaca, há um desejo meu, forte, daqueles que marca no peito tudo o que coração tenta sombrear.<br />
<br />
Hoje, a situação me levou até alguém distante. Envolto numa densa nuvem escura, ele estava lá, parado, no pico das ideias, observando a cidade mudar da ansiedade do dia para a melancolia da noite. Sua cor era escura, azul profundo que mais parecia me puxar para dentro dele. Índigo. Hipnotizante.<br />
<br />
Aquela atmosfera de mistério combinava perfeitamente com o desenho que fiz antes de sair de casa – e que tinha no tom rosa do lápis mais nanico – por ser o mais usado – o desgaste da minha imaginação, aquela que não se cansa de rabiscar o que projeta em segredo. Segredo, não. Mistério.<br />
<br />
Pensei em mil frases a serem ditas, mas nos últimos dias acabei calado. Tinha minhas questões para pensar e junto com essa responsabilidade vinha o desânimo em expelir qualquer que fosse a frase que tentasse expressar o que sentia. Ou melhor, o que eu não conseguia sentir. Nestas últimas semanas eu pouco rabisquei. Passei mais tempo tentando apagar. Agora me vejo aqui, no entardecer, com estas cores que eu já havia imaginado antes mesmo de ver. Tudo que ontem só ficava dentro de minha cabeça explodiu naquele infinito cravejado de estrelas e, pela primeira vez, senti como se conseguisse mostrar para o mundo todo, para toda aquela cidade lá embaixo, para aquele rapaz ali em cima, as cores das minhas vontades. Eu entardeci. Nasci no fim de um dia diferente do meu aniversário e ainda assim me fiz aniversariante só porque sabia que o presente estava por vir.<br />
<br />
Verifiquei se não havia perdido o que eu trazia nos bolsos. Tudo certo. Queria dar algo a ele. Sentia que precisava dar algo a ele. Já havíamos aprendido a nos comunicar pela linguagem dos silêncios, então, era mais do que justo que eu dissesse, sem emitir uma palavra, o que ele necessitava tanto ouvir. Nem a penumbra daquele pico conseguiu me esconder. Aquecido no moletom coral, eu cheguei como quem não quer nada, querendo tudo. Pensei comigo mesmo: “que cor teria essa situação?”. Não tive tempo de me dar a resposta, pois já estava sentando ao lado dele.<br />
<br />
- Trouxe algo pra você relaxar<br />
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Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-16145357078365981342020-06-03T13:26:00.003-07:002020-06-03T13:26:38.521-07:00O menino mais leve que o ventoQuando foi a última vez que o ar acariciou o rosto ao invés de bater nele? Quando foi a primeira vez que se sentiu como o vento – livre o bastante para não ir, apenas ocupar o espaço vazio, suavemente, como brisa leve? É tanto pesar dentro da mente onde os pensamentos deveriam apenas flutuar feito nuvens e, leve como elas, apenas deixar chover ideias, que dá vontade de soprar a cabeça como se assopra um machucado. Em que momento o tempo fechou dentro de si e aquilo que chamava de alívio se tornou sufoco? São muitas perguntas para respostas ainda indefinidas, mas querer saber faz sair pelo mundo – de dentro e de fora – em busca de algo que encha novamente os pulmões. Algo que dê fôlego.<br />
<br />
O ar, o vento e a necessidade de sentir o sopro da liberdade arrepiar os pelos do braço. Um misto de alívio com risco. Algo parecido com o medo de ser feliz – ou o medo de não aguentar a felicidade. Há quem fale sobre leveza, porém, não é toda hora que os ponteiros da vida permitem relaxar. Cada segundo passado parece uma vida perdida. O peso dos dias corridos, talvez, seja o que faz do ar, do vento, algo angustiante, já que não se pode tocá-los nem sentir, por um instante, que a liberdade está em suas mãos. Livre o bastante para se manter preso nas próprias escolhas – estas que, por sua vez, nunca são livres o bastante.<br />
<br />
Do berço cair, pelo chão se arrastar, nos móveis buscar apoio e nos olhares equilíbrio. Erguer-se, desde pequeno, é um ato de coragem. É o primeiro contato com o peso, tamanho, com a densidade de algo que se carregará para o resto da vida: si mesmo. Se mesmo nos primeiros anos já se pode superar a gravidade da situação que é nascer neste mundo, por que se perde na poeira das expectativas não vividas justamente aquilo que se há para viver? Se pequeno se levantou, por que grande não caminha? Por que gigante não alcança? Por que alto não enxerga além do baixo muro da realidade aparentemente intransponível? Mais perguntas, menos respostas. A mesma necessidade de fôlego.<br />
<br />
Respirar o ar. O próprio ar. Quando foi a última vez que o fôlego veio do âmago e não do boca-a-boca alheio? Quando...?<br />
<br />
Há dias em que as lembranças guardam as verdadeiras respostas para as tantas perguntas que o vento traz. Nestes dias, há de se encontrar entre as fotos bagunçadas nas gavetas da memória aquilo que, em situações sufocantes, fará toda a diferença: o respiro.<br />
<br />
Inspirar e espirar. O subir e descer do peito será a prova que ainda há vida mesmo no corpo cansado; na mente exausta. Trata-se de jamais prender a respiração novamente.<br />
<br />
Trata-se de libertá-la. Finalmente.<br />
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Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7073156267238420732.post-83889283122036978412020-03-25T12:06:00.001-07:002022-07-04T04:18:30.516-07:00Índigo<div class="separator"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjM33Ealk-vjRrQ7qsKUBmZdgGraeSntRGWY6dU8C-lBY5xkGcbmppk0FO-8Pr6UmLigXWLtHRnGeUsEW3I1oOAkBi5V5RMn9x49dAG7V3S10jv73d1_pHyGaqvd4IajS0Mv-SXje3wlkJ8JO-E0UOuZRVEcOio7S0DltxiRFZkCzG8XQ0wg0Mg2tKTZQ/s1600/Indigo_eva.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1200" data-original-width="1600" height="413" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjM33Ealk-vjRrQ7qsKUBmZdgGraeSntRGWY6dU8C-lBY5xkGcbmppk0FO-8Pr6UmLigXWLtHRnGeUsEW3I1oOAkBi5V5RMn9x49dAG7V3S10jv73d1_pHyGaqvd4IajS0Mv-SXje3wlkJ8JO-E0UOuZRVEcOio7S0DltxiRFZkCzG8XQ0wg0Mg2tKTZQ/w551-h413/Indigo_eva.jpg" width="551" /></a></div><br /><br /><br />Deixo o azul escorrer pra sentir a espinha gelar. Daqui do alto, eu vejo as luzes da cidade e elas, da outra ponta, também conseguem me enxergar. Brilhamos distantes, como toda beleza deveria ser. Brilhante e distante.<br />
<br />
Olho e sinto, como se o tom tivesse mesmo o dom de me tocar. É frio, mas é bom, não corta, mas também não faz carinho. Ao mesmo tempo que me dá vontade de fazer absoluto silêncio, ele, o tom, passa da cor pro som, e me faz ouvir o movimento do sono no ar... É como se fosse uma lenta respiração de todo o planeta adormecido, cujo barulho de “inspira e espira” praticamente soasse tal qual uma canção de ninar. <br />
<br />
Ali, em meio àquele azul todo do céu que cobria a cidade, eu lembrei que quando era criança, acreditava que o sonho nada mais era do que ser levado para o topo do universo pela própria cama e se cobrir com as estrelas todas. Sonhar, pra mim, era estar no céu, coberto de azul, brilhando distante. Pensando aqui, agora, como é que a gente se perde tanto ao crescer e não mais crer nestas explicações para os fenômenos mais simples da existência? Sei lá, viu... Sei lá.<br />
<br />
Cometi o erro de tentar pensar na vida hoje e hoje mesmo eu desisti. Não da vida, mas de pensar em como ela seria. Tudo frustra, justamente porque exige de mim o que eu mesmo jamais exigiria. Vem de fora, de pessoas que nem conheço, vem de uma voz que não me soa familiar. Por isso que eu vim para cá, bem no pico de sempre, ficar ausente lá embaixo. <br />
<br />
Aqui o azul predomina e resfria meu rosto como sopro bom pra tirar o ardor de machucado, o roxo do olho, o vermelho do sangue pisado, e fazer casca no ralado... É bem assim que eu quero ficar, pelo menos no que sobrou do dia. Só que você me mandou mensagem dizendo que estava chegando.<br />
<br />
- Trouxe algo pra você relaxar.<br />
- Eu disse que estava nervoso?<br />
- Se não disse antes, acabou de dizer agora.<br />
- O que é?<br />
- Música. “Bad Dream/No Looking Back”.<br />
- Só ela me faria subir até aqui pra ver sentido em todo esse horizonte sem propósito aí na frente.<br />
- A vista aqui é diferente mesmo, né? A gente não consegue ver o tanto de cobrança que há ali por entre as ruas.<br />
- Sim. Aqui, eu consigo ver cores nos sons, ouvir sons quando lembro de rostos, consigo entrar numa relação diferente com o tempo.<br />
- Ele para?<br />
- Não, ele circula. Vai e volta, dá um abraço de “oi” e logo em seguida um de “tchau”. Tô viajando nas ideias, eu sei...<br />
- Até aí, normal, né? Eu sei do que você precisa.<br />
- Sabe, é?<br />
- Não só sei como te darei.<br />
- Você tá ligado que se errar, as chances de eu nunca mais botar uma fé na sua capacidade de saber do que eu preciso são grandes, certo?<br />
- Certíssimo.<br />
- Então vai, diz aí do que eu preciso?<br />
- Esmalte nessas unhas.<br />
- Caralho... Pior que não tem como eu discordar de você.<br />
- Pois muito que bem. Tô com a cor aqui.<br />
- E qual vai ser?<br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br />Dhoruba Venyhttp://www.blogger.com/profile/00847618622953909445noreply@blogger.com1