sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Este quem aquém

Corri das situações dramáticas. Talvez tenha errado em não recorrer aos caminhos comuns, aqueles tanto indicados pelos outros. Escrevi uma mensagem curta apenas dizendo que precisava me recolher. Não deixei espaço para que oferecessem o pegar dos cacos no chão. Apavorou-me a possibilidade de querem. Num movimento que só eu conheço, aproximei-me e, na mesma velocidade, desapareci. Os poucos que acharam a mim ter alcançado erraram. Sem problemas, desde que não voltem a me procurar. 

As luzes bonitas banhando as calaçadas. As luzes sempre passam pelo meu olhar, mesmo hoje, tempo estranho em que pareço ter me coberto de uma apatia esverdeada feito os contos de Poe. Ainda assim, presto atenção nas luzes. Parecem elas vir com música. Mitski, creio eu, no atual estado de psico que me encontro. Estado em que deixo um elemento de composição sozinho. Estado de abandono. 

E envelheço meio a isso tudo. Distante de uma forma de vigor irritantemente incapaz de aceitar seu fim. Eu já aceitei muito cedo, inclusive quando não tinha nem chances de vencer as tantas vontades que tendem a impulsionar a vida. Os empurrões todos, um inferno, um calor de gelar que parece ter a pressa dos atrasados juntos, esperando uns aos outros. 

De repente eu só quis querer. Tive muitas vontades de me sentir querendo muito do que eu, conscientemente, sei que jamais terei. Quis muitos eles pelo caminho, fui deixando-os sem, às vezes, jamais tê-los tido concretamente. Sabe-se lá por quais motivos minha mente se organizou assim. Quando te ensinam um único jeito de dobrar as roupas, é com essa mania que você seguirá dobrando, ainda que, vestidas, marquem a silheta errada de seu corpo. É o que é, como é, como sempre foi.

Querer tem disso, de desdobrar e não deixar traço que recupere as formas de antes. Por via das tantas dúvidas, acabo passando por onde o ferro desdobra. A sola fica quente, queima às vezes, mas ao menos não desamasso. Pelo menos eu quero sem ser querido. Quem quer gente toda amassada? Se alguém quis, afastei-me antes de sentir o querido em mim. 

Foi-se a poesia que nunca existiu aqui. Foi-se tudo. Foice que cortou até o que nem tinha. Dancei sozinho desde a primeira vez e acho que isso me passou. Daí em diante, toda vez que a tempestade se forma, eu me arrumo pra ficar descalso e amarrotado debaixo do vendaval e só toca meu corpo as ventanias todas.

Medo e raiva de trovão não tive e não tenho. Dancei perto das árvores, não debaixo. A segurança vinha daí. Delas. Sempre delas, as com raízes escuras e firmes, pacientes, centenárias, as antigas que sem medo do céu me permitiram herdar um pouco desta coragem. Só que eu me movimento demais. Não finco tanto. Por isso caí nas graças da fúria, balançando de envergar a espinha.

Desta vez eu sangrei menos. Não por falta de lasco. A verdade é que nunca tive muito o que escorrer e agora sobrou menos ainda. Nunca teve muito o que vazar de minhas brechas além do imenso tudo que eu ainda mantenho apertado naquele canto de quarto que tomo conta na forma da inocente criança que caiu no buraco de barro e de lá sozinha saiu. Sozinha se limpou, mesmo que terra não seja sujeira. Ela, a criança, com o todo imenso e amassado entre suas mãos, um querido, ele, por quem, hoje grande, teme que o queiram. Este quem áquem. É um quem aquém.









sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Maduro mole

Calor, pouca roupa, uma regata, um shortinho, pés descalços. Tudo em tons amarelos, azuis e verdes. Aqui é assim, a vida no calor perfuma feito azeite na brasa, escorre lenta como gota de suor e se acaba num mar de lágrimas, de onde vem o sal da terra. 

Sobe a maré, desce o luar sob as ondas, quente, tudo, sola, areia, coqueiro queimado, cerveja  —sol líquido, um copo suado, um corpo ao lado, querendo-se, sentindo seu peso, pena ou pesado, vai bater asas de qualquer jeito quando sobrevoar as ideais do outro, os desejos dos outros, igual carcara faminto. 

Quem se quer no verão nunca mata a sede. Continua bebendo de todas as fontes, ri e dança, a música ganha outro tom, uma época diferente, mais livre, pelando à flor da pele e no cabelo fazendo arranjo.

É assim quando se olha pra ela, com os olhos de oliva, com os fios relampejando no mangue dos pelos cujo douro vem do fogo no topo do céu, a amolecer moleiras. Um cheiro de fruta no rosto, a boca ainda melada, os dedos brilhando e quando toca, gruda. Aí a gente não se larga mais. 

Precisa rodar, ficar tonto, amortecer os lábios e se sentir dono do mundo. Por alguns segundos, o delírio saboroso da caminhada pelo deserto sem oásis. A corrida pelo sertão seco, montado nas carcaças amanhecidas.

Café quente na mesa, língua mergulhada no amargor perfeito do bom dia sem resposta. Não existe previsão do tempo. É sempre hora. É sempre calor. É sempre muito. É todo muito, sempre hora. 

Se a pele está boa, o coração e tudo de dentro também está. Se o cheiro é de gente, sinal de saúde. Se arrepia, não é de frio, é de vontade daquelas que torra. Abana, sopra, só aumenta a brasa.

Não tem idade sob o sol. É todo mundo mole de tão maduro.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Será que ainda?

Foram as poucas verdades que trocamos capazes de colocar sua presença como o teto das minhas ideias, para onde olho antes de dormir e tento imaginar a quantos anos luz estão os meus quereres dos seus. De longe, sinto sua falta, mas nego. Antes, queria saber se você sente a minha.

O silêncio que nos define, hoje, marca também uma insegurança compartilhada. Tento eu tratá-la como orgulho, como vingança, qualquer outro sentimento que não me coloque de joelhos, novamente, diante da vontade de te ver, conversar contigo, sentir seu cheiro quase indetectável, ouvir a voz suave e cansada de quem, no fundo, gostaria de ter vivido o pleno pico da sua energia vital.

Eu queria conversar e não consigo porque me limito à pequenez do que me resta de brio. Assim os meses se vão. No lugar, um branco absoluto que nada marca para a memória do amanhã. Nós dois estamos escrevendo o tempo perdido e dele só recordaremos, talvez, da vontade oculta de se encontrar mais uma vez.

Falo por mim e por você porque ainda te sinto. Não vir atrás de mim, ficar aí no seu canto, com sua vida, interagindo com outras pessoas como se tudo o que passamos não fosse nada além de uma época fadada a crescer e se tornar chata, entristece-me. É uma tristeza diferente, porque identifico nela a mim mesmo. 

Marca-me a pele do espírito como se desse a ele corpo. A tristeza diferente que dói, mas não indigna. Diferente porque é conhecida e atende pelo meu nome, mas estranha quando conto sobre o que machuca. Parece que nunca me viu e desaparece quando eu a vejo. Diferente porque é paradoxal, trata o mais do mesmo como nunca visto antes. Quando escrevo sobre ela, sou descrito.

Tentar definir o amor é fuga para não lidar com a falta de certeza que ele essencialmente carrega. Se ama, treme. Perde base, vive em risco. E eu não sei se amo como tratam por amor as letras das músicas que gosto de ouvir quando estou triste. Defino que é amor porque assim fica mais fácil sofrer. Fica mais comum, diferente da tristeza – aquela estranha.

Diga se ainda pensa em mim, mas não para mim. Diga a você mesmo. Façamos diferente desta última vez.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Fruta

O descalço da terra sob os pés amacia a passada. Gira, gira, cai no calor do entardecer, suado rodopiante, sozinho. Escorrega bastante, entregue ao tombo, ainda quente, como se tivesse acabado de nascer. Cai de maduro com mel na casca escorrendo devagar, suando os olhos dos outros, colando de leve na pele de quem por ele passar. O perfume de fruta, o olhar de fruta, o peso de fruta, sabor de ninguém. Só dele, só ele se sabe.

Não é festa, é agonia. Queima por dentro e por fora num azeite-desejo sem fim –cheirando a cara toda. O vizinho olha pela fresta da janela e se arrepia. Sua boca abre até a goela fazer bico. Nada sai, nada entra, fica lá olhando o outro semeando.

Queria um dia pegar um vagalume com as mãos e manter sua luz acesa dentro da mais profunda penumbra. Desejo de criança e de adulto, de velho também, esse de manter alguma luz. Nada do calor passar, nem a noite esfria. Pra dormir é mais de um banho. Tem que toda hora se molhar. A pele tá boa, forte, aprendeu a lidar com o olho do sol. Não descasa, só muda de pele quando precisa sumir.

A casa é pequena, de longe não dá pra ver. Está rodeada de bananeiras, uma cerca de madeira capengando no arame banguela, uma mexeriqueira seca, o que mais couber na vista de desocupado. Ascende a luz alaranjada pra não esbarrar nas coisas que nem tem. Toma cuidado porque não há mais do que cuidar. O que cuidar. O dia passa junto da noite, começam e encerram juntos. Ele fica ali, na sua vida medíocre, achando que o mundo já é grande demais para ele alargar com suas ideias. 

 

sexta-feira, 3 de março de 2023

Mas só

No meu azul afundo em busca do que ainda não descobri sobre mim. Acompanhado pelo passado que reflete cada rosto a me abandonar no passado, finjo passear pelo por vir como quem desfila numa calçada qualquer, brincando de ser importante. O que move é a promessa do depois, aquele em que nem acredito, mas mantenho porque não acreditar em nada me obrigaria a ter fé no que resta: eu mesmo. Não me vejo, sou cego para mim, nem espelho dá conta.  

Tento, então, ler-me através dos outros. Poucos, mas outros, com quem tive magnetismo uma noite e na outra despertei com repulsão. Amanhecer é agonizante. Sempre fui de anoitecer, mas não se escapa da matina sedenta. 

A carta dos olhos castanhos e cabelos longos 

Você é incisivo. Perfura com o olhar afiado e fatia minha alma sem deixar que sangre. Quando falo contigo, percebo o quanto me observa com interesse - e isso me interessa. Às vezes é duro nas palavras, mas compensa quando decide ser doce, carinhoso. Eu me sinto livre contigo, porque sei que podemos dançar de qualquer jeito, sem se importar com os demais. Você não liga para meu jeito desleixado, nem reclama do fato de eu não usar desodorante. Sei que te incomoda, mas você não reclama. Prefere me observar e colher nos detalhes das minhas tantas falas uma brecha para demonstrar seu amor. Acabei percebendo tarde demais. Quando eu te quis, você já não me olhava.  

A carta da pele macia e do toque molhado 

Eu insisti em nós. A gente nunca chegou a se beijar ou algo do tipo, mas estávamos sempre juntos e para mim era como se fosse um relacionamento a dois. Amizade, no caso, mas eu sentia que de você fluía outro tipo de sentimento. Você nunca tentou nada, mas foi justamente seu recuo, seu silêncio, que sempre me disse tanto. Eu sentia seu calor enquanto o meu tocava a sua pele poucos centímetros de distância entre meu pegar e seu pescoço. Lembro dos cheiros, do tempo abafado, de tudo. Do céu frio à noite, de você me esperando e fingindo que não. Minha mão transpirava quando fazia algo que você pudesse recriminar. Perdi as contas de quantas vezes senti a dureza de suas palavras. Mágoa, sim, só que não era maior do que o prazer de te ter por perto. Perto não, em mim, ainda que sem contato direto. Você, na verdade, sempre me tocou onde ninguém mais chegou a tocar. 

A carta da voz funda e do sorriso quebrado 

Se eu pudesse, tomaria seu cérebro para mim. Tomaria sua vida, seu jeito, tudo. Porque sempre amei, desde o primeiro encontro. Eu querendo me mostrar superior, indiferente, e você - naturalmente indiferente - me deu uma lição logo de cara. Na suavidade do seu despropósito, olhou-me diretamente e sorriu como se estivesse revendo alguém que há tempos procurou. Eu te procurei, em vários e várias. Acabei achando só em ti mesmo. Quando levei um filme para nós, quando estava ao seu lado, quando quis e você não entendeu, quando você entendeu e quis, quando quisemos e fizemos, eu te procurei. Depois sumi, porque somos assim. De partida. Mesmo sol sobre a cabeça, mesma sombra no sorriso, mesma voz de despedida.

A carta da bondade alta e dos braços longos 

Talvez te abraçar me fizesse sentir proteção das grandes. Você, menor, aconchegava as ideias sempre em ebulição e o calor delas me envolvia por inteiro. Era como se a segurança se materializasse em alguém que eu finalmente conseguia alcançar. Assim a gente se amou, longos abraços, curtos momentos. O fim se prolongou junto da distância inevitável. Quando me perdi, você foi me buscar. Quando encontrei em nós o primeiro traço de amor, errei, traí sua confiança, mas amadureci sem ela e hoje sei o quanto vale. A gente, de tempos em tempos se reencontra. Eu com meus braços querendo seu calor e você com seu silêncio vulcânico me lembrando de que não mais posso te ter. 

A carta das lágrimas doces e do coração salgado 

Não sei bem por que estou aqui. Sempre ficou evidente de minha parte que não lhe amaria para além da amizade. E não amei mesmo. Sem amar, entretanto, vivemos juntos por anos. Juntos numa proximidade íntima e só nossa. Só a gente entende - e nem sempre, às vezes. Entre desentendimentos, brigas, mágoas, voltamos, nem sempre melhores, nem sempre inteiros, mas querendo o outro ainda na história da vida. Eu, sinceramente, não consigo imaginar o quando me amou, mas tenho a mágoa sua e as entrelinhas de cada palavra que não me disse - nem me escreveu - como sinais de que doeu. De que eu te inundei muitas vezes, apenas por ser franco demais. Por nunca ter imaginado para nós uma vida a dois que envolvesse mais do que a admiração e carinho, cuidado, o amor mesmo que sentimos um pelo outro. Escrevendo assim até parece romântico. E é, só não me entenda mal. Daqui não vai brotar nada. 

A carta dos lábios acinzentados e corpo nu

Se tivesse que ser com alguém, seria com você. Por isso aconteceu. Mas só. Eu não tenho nada além disso para dizer. Há como chamar de carta apenas três ou quatro linhas? Não vou dizer que foi ruim nem nada, vou dizer que lembro, que foi bom. Na verdade, assim como o outro ali, não sei por que estou aqui. Acho que isso estragou a gente, sei lá. Talvez você espere algo ainda. Espero que não. Você é importante. Eu te amo, mas só. Cinco linhas já dá uma carta, será?

Só. 

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Uma vela para a indiferença

As mais sinceras desculpas. Uso-as porque poupa da discussão inútil. Recentemente, senti falta de romper com alguém que amo até doer. Toda aquela faze de angústia que destrói a saúde me faz perder os quilos que não tenho e me sentir morto. Um amargo que não tem gosto. A boca até procura, a língua tenta se lamber, mas nada. Tem a raiva na saliva que espuma, sim, a vontade de ver o outro sofrer ao ter que lidar com sua própria falta de caráter - ou simplesmente falta que faz em mim. 

O que sei é que assim vão. Dias, meses, espelho sem meu reflexo, porque não consigo me olhar quando estou desse jeito, em trabalho de parto daqui para nunca mais voltar. Retiro os rastros, passo um pano molhado nos passos dados sobre minha memória vingativa e não quero lembrar o caminho. No fundo, se passa este ciclo de tempestades, eu sei que vou admitir tranquilamente que tudo aconteceu porque eu, ainda hoje, amanhã sempre, tenho dificuldade em acreditar que as pessoas são capazes de permanecer. Não são.

Começa como um fio. Estala a espinha e arrepia a pele. O olhar congela porque não quer perder mais de vista. E tudo o que ele faz parece interessante, principalmente o que não é. Entra nas suas ideias e não se incomoda com a desordem delas. Vai ficando, quando viu já fez um mês, um ano, seis, passaram-se dez e ainda estamos aqui, eu escrevendo e ele nem sabendo. Enrola há tanto tempo que já tenho uma malha de lembranças de molho. 

Se existe alguém para quem eu tenha rezado mais nessa vida foi para a indiferença. Não há salvadora maior. Todos os dias eu peço para que se instale em mim. Todos os dias eu peço para sentir menos, para fazer jus ao meu jeito fechado que não compartilha quase nada daquilo que se cria pelos meus cantos. Se é por fora indiferente ao mundo, por dentro por que não? É como se tivesse algo ou alguém que simplesmente se recusasse a me deixar ser tão miserável quanto a vida leva a ser por meio das convenções sociais todas que impõe. Parece que há uma criança que não me deixa esquecer daquilo que impede a indiferença de entrar. Então esqueço eu dela. Fecho as janelas.  

Por favor, seque-me. Não deixe nada. Eu prometo que te vendo minha alma se isso existir mesmo. Só leve tudo, ele por completo, e os que virão também. Deixe-me preparado sempre para o pior, faça-me nem duro nem mole, faça-me intocável, alguém que passa, que todo mundo passa e nem percebe. Alguém que já vem para ir, chega para partir, alguém que passa. Por favor, não quero ficar, não quero mais toque e apego, não quero acordar na casa dos outros e voltar para a minha sozinho, todas as vezes, não quero ficar por ficar, isso nunca me fez bem, sempre me tirou do sossego que eu mantenho ao fingir ter controle sobre os caminhos da vida que quebram minhas esquinas. É só tudo isso que te peço, faz-me como você, assim, apática, de pé, inabalável, nêmese inexpressiva. Amanhã eu quero acordar como por vezes já me senti: vazio, comigo mesmo. 

Se hoje eu acender uma vela, algo que não faço, será para a indiferença.  




Criança quieta

Com as mãos pequenas e egoístas, querendo tudo ao seu alcance, esmagou o mundo. Não sobrou nada, nem ninguém. Só sangue e pedaços de gente de ontem, passada, gente que não mais faria visita. Criança tem desculpa, pra tudo, pode tudo, porque não sabe ainda do tamanho que é o nada do futuro adulto. Criança pode, por isso nunca morre, fica dentro da gente - a que mata e não que morre, por décadas, até se cansar. Criança pode, com as mãos, esmagar o mundo. 

Não precisa gritar. Não faz birra. É criança das quietas, aquelas vistas como piores, ruins desde sempre, que vão, fazem e não deixam rastro. Nem as manchas nas palmas conferem culpa. Assim, como quem não quer nada, faz porque é criança. Porque pode. Sabe que será guardada e protegido no melhor lugar dentro da gente. Na morada do egoísmo que sempre quer, faz e não leva culpa. 

Quando penso na criança, vejo ela num quarto amadeirado, com uma janela de altura mediana, da qual se pode ver o mundo do pescoço, pendurado, prestes a se enforcar. Não precisa ficar na ponta dos pés, é uma visão confortável. Neste pequeno espaço, uma cama com cobertor de céu estrelado. Para a criança do meu quarto, morrer é se cobrir com o céu e dormir, enquanto flutua a cama para onde não sabemos. Esta criança precisa deste quarto. Um precisa do outro e eu dos dois, em mim, igual gente besta que sozinha não consegue ir além do que limita a camada da pele, a de baixo, não a que pela. A que sangra. 

Quieta, não precisa de mãe ali pra lhe mandar calar. Ela é naturalmente quieta. Nasceu sem choro, sufocada pela vida prematuramente custosa. Quando voltou à vida, antes mesmo de ter chagado nela, também não chorou. Chorou pouco essa criança, mas quando chorava, o mundo implorava para ser esmagado por ela. Tão boa, tão solícita, criança pura, daquelas que acredita porque não vê na mentira cor alguma. Acredita em tudo porque a cor é de verdade, verde, azul, vermelha, mas principalmente azul, às vezes a verdade é amarela feito sorriso da gente toda que merece ser esmagada. Nada pior do que ver o mar nos olhos daquela criança rebentando ondas pra fora dos cílios, correndo pelo rosto. Pior ainda era ser a causa de seu silêncio. Pois da sua boca só saía aquela doce palavra de carinho genuíno. O mundo ia dormir torcendo para não acordar. 

Doeu cedo. Sem entender, a criança foi. Acreditou. Sem saber, confiou. Sem saber, soube depois. A inocência é, antes de tudo, um escudo. Uma malha de aço impenetrável, mas com aparência de vidro. Vê-se através dela o que a criança não sabe esconder - porque nunca precisou. Sua fé nos outros e de que os outros ali estão para lhe proteger. Fé e transparência, é disso que são feitas as crianças caladas demais. As mais fáceis de serem esmagadas por gente. 

Esta, em especial, vive no quarto, protegida do afora. Sente falta de ter com quem conversar, mas às vezes eu consigo ter um tempo para ir visitá-la. Conta-me dos seus pensamentos, de como organizou as constelações todas por tamanho, de como as manchas no universo são tão coloridas, que ali há verdade pura e transparente, que o universo é independentemente da gente. E ele se finda também independentemente da gente. A criança observa tudo isso e suas mãos já pouco importam. Sangue não é sujeira. Sangue é gente pra escorrer. Esmagou todas elas antes que elas mesmas se esmagassem e, antes, fizessem da criança um mundo todo para explorar. Gente não esmaga criança porque prefere destruí-la ao longo da vida. Cabe a nós protegê-las no mais seguro de todos os lugares: aquele que não contamos o endereço. 

Dentro, bem nos confins de quem já não suporta mais ter que viver do outro lado da janela média, a criança redesenha o tempo e se conta de traz para frente. Esperando que, finalmente, o dia do seu não nascimento seja parido. Quem sabe assim a gente deixa a criança em paz. 

Hoje, ela só quer ficar quieta. 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Fundo dos olhos

Antes de estilhaçar seu crânio, a explosão havia esfarelado outras montanhas. Corria lenta, de longe, enquanto nas beiras da completa destruição sequer deixava um segundo para se tentar fugir, esconder, viver. Como não dizer que estava viva a obliteração completa da vida? Chamá-la de morte, então? De fim? Como, se havia apenas começado a alguns instantes? Fotografava em sua última memória - ou talvez a primeira próxima - algo que, de fato, ninguém veria. 

Não era apenas fogo alaranjado como o de forja. Misturava-se também com terra escura. Comparou com as vezes em que usou os próprios dedos para fazer caminhos no barro, intervindo na paisagem natural. Comparou com vulcões sangrando também. Enquanto se expandia a devora do tudo, percebia que a morte era menos assustadora do que a vida contou. O que mais se sobressaía à sua chegada era uma profunda curiosidade. Magnetizava-o. Puxava-o para o não saber, por querer saber. Morte que chama.

De repente, chuva quente. Um vento de despedida que rodava feito abraço da partida. Sopro no rosto acalma. Inevitavelmente, tudo remetia ao adeus. Talvez por conveniência, mas ele não se importava. Estático, apenas aguardava o momento em que seria engolido pelas fúrias da terra vivida. Nada poderia paralisá-lo mais do que o desprendimento absoluto de uma história a qual foi obrigado a escrever. Mesmo sem saber, preferia acreditar que depois de alguns minutos, passados, lembranças, nomes, antigas dores, os desejos não vividos, tudo isso nada seria além de um eterno presente engasgado na garganta do vácuo existencial. Não haveria mais ele para dar ao pó memórias. Seria apenas pó, sem ida nem volta. Sem móvel, estante ou cômoda.  

O calor deitou sobre sua pele. Olhos viraram duas supernovas e o branco absoluto prevaleceu. Conseguiu seu objetivo. O branco foi o último a ser visto. Do outro lado, observou ele se render ao seu constante desejo de aniquilação. O branco absoluto conseguiu. 

A pequena esfera, há alguns metros de distância, correu mais do que o tempo e foi crescendo conforme se achegava no alvo. Ele percebeu que a rigidez do ferro sumira e em líquida partícula transmutava-se a devastação. Ali, precedia o olho o olhar, parecia o de um bicho dos que era caçado, não dos que caçava. Olhar de presa, de abate, do tipo que é grande, negro, profundo, inocente e em constante pedido de misericórdia. Quem destruiria a quem, no final do estouro? Negro, profundo e destruído. 

Explodiu seu rosto.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Alguém o tempo todo

Escrevi umas três cartas porque sabia que não seriam entregues. Desde a adolescência faço isso. Escrevo para que não seja lido por mais ninguém além de mim. Nada de novo ou extraordinário. São apenas as limitações do ser. 

Nestas escritas, consigo formular a descrição dos sentimentos mais turbulentos que carrego. Tento, ao menos, ler-me para crer que ainda estou ali. Mesmo com toda a angústia que me desmotiva, estou ali, talvez registrando pela última vez o quanto dói. Recentemente, grafei aqui que escrever é algo característico de pessoas doloridas. Se repito é porque acredito.

Há dor de diversas formas. As que ardem de tanto aproveitarmos bons momentos cuja conta chega depois. O corpo cobra - e por corpo eu me refiro a tudo, carne, osso, sangue, pelos, mente, imaginário, ansiedade, melancolia, desejo, suor, feromônio, vontade de fumar. Aqui me dói quase tudo. Parece, ao meu ver e sentir, que se tornou meu eu o da dor tal qual fosse, assim, seu habitat natural. De certo, quando me pego volta e meia ligado por completo à realidade, sinto um incômodo que rasga a garganta e pressiona o peito, ajoelha os joelhos e me obriga a deitar. Em queda lenta, recolho-me rápido como roupa no varal. Também escrevi isso recentemente, repito porque acredito na velocidade com a qual me retiro daqui, daí, dele, dela, do corpo todo. Quando escrevo "aqui me dói quase tudo", cito quase porque, na verdade, falta-me a dor por fumar e provocar meus calos vocálicos. Dói não doer por isso, confesso. 

Admito, nesta toada, que assim, enquanto doer, sinto-me menos distraído. Há um ponto de concentração - ou pontos. Mais jovem, costumava ficar trancado em meu quarto escrevendo por horas enquanto ouvia a tempestade fazer seu espetáculo janela afora. Quando ela retumbava em trovão, eu terminava um parágrafo respirando sutilmente, quase que sem ar para puxar. A pressão caía porque - a ciência explica, mas eu, aqui, faço do meu jeito - o coração parecia achar que era sua hora de descansar. Por que doía tanto? Acabei de me perguntar isso enquanto terminava a frase anterior. Talvez por não ter algo ou por terem tirado de mim o pouco que tive. Quase todo mundo me levou algo. Escrevo "quase" porque houve aqueles que apenas deixaram dor. Um novo hábito para que meu corpo vestisse e se acostumasse. 

Sumo, mudo, quero, porém não consigo conversar. Espero que conversem comigo mesmo eu não respondendo. Que me busquem, que me irritem por insistir em falar com alguém que, evidentemente, não está em bons tempos mercurianos para vigorar comunicação. Dói não responder, também dói não ser perguntado. Escrever é a prova disso. 

Nas épocas em que rio demais, também há dor. Se sentir feliz demais, completo, amado, querido, respeitado, visto, admirado, útil, dói. Dói porque acaba no próximo amanhecer. No exato instante em que se olha para o lado e não se sente mais paralelo às alegrias frívolas da vida que não é a concreta, apenas a ideal. Crescer dói, nascer dói, ficar dói, partir também, parir dói tanto quanto partir, é chegar e saber que se deve sair, é amanhecer porque o anoitecer precisa acontecer. A dor é o tempo. O tempo todo.

Aqui, onde não me encontro, despenco frases e mais frases que só fazem sentido para este meu jeito de ser que se empurra pelos anos, fingindo que aqui segue porque tem de atender às demandas de pessoas que precisam das minhas capacidades. Já estou morto, só falta morrerem antes de mim. Enquanto estão vivas as pessoas da minha vida, doo-me por elas. Por mim. Minto quando digo que é por elas. Menti também ao escrever que o texto anterior, aqui publicado, seria o último do ano. Geralmente, quando preciso mentir, faço enquanto digo, não enquanto escrevo. Aqui não tem outra saída senão a da verdade. A que angustia.  

Doo-me de dor, não de doar. Raramente compartilho-me. Doo-me por tê-las amado, as pessoas todas. Vivo apenas pelo medo, simples medo, de não me doer mais. E nada sentir além do grande vazio que sempre me habitou, em tempos ancestrais ao da dor. 

Cada carta que não entrego, mas escrevo, é uma dor que mantenho minha, para me manter meu. Por que me quero assim, tão próximo de mim? Porque quando me repito, é sinal de que ainda acredito no que sou. 

Alguém com suas limitações. Alguém que sabe ser. Sabe se doer, mas não se doar. 

Alguém o tempo todo. 

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Dolorida

De braços finos e longos, descalça, com um vestido amarelado e os cabelos libertos. Couro da cabeça era escuro feito céu. O retrato da infância. A voz aguda rompia com a gravidade da adultez inevitável que a observava. Cresceu, viveu e meu viu crescer também. 

Na minha pequenez, eu me encantei por seu sorriso largo que fazia linha-fina para os olhos atentos, curiosos, em busca de alguma novidade. Eu me libertava quando imaginava que ela me via dançar. Seu jeito de conduzir os versos enfeitiçava o corpo todo. Não havia julgamentos, apenas liberdade. Dançava sem medo de ser visto, de ser estranho, de ser muito como ela: uma fruta de gogoia. 

Quando o que me restava eram cigarros, procurava por sua voz também. Cantava profunda, misturando o cinzeiro com o amargo do álcool. A dor não tinha que ser anestesiada, nem a rouquidão pospor o trago. Embalava, isso sim, a angústia numa trilha devida, dolorida. É tão paradoxal gostar de sofrer apenas para ouvir sua voz uma vez mais. Eu sofria te ouvindo e fumava o maço pra morrer vivendo.

Nem me conheceu e sabia de mim. Sabia que eu era tímido, mas adorava dançar, que eu era quieto, mas amava cantar, que eu era magrelo, mas tinha a vontade pesada, que eu frágil, mas com a fala infalível, que eu gostava das cores, do verão, das flores, dos bichos todos, do cheiro de fruta na camiseta melada de manga, mas sabia me nublar na tempestade, fechar a cara e o tempo, recolher-me de um jeito que ninguém conseguiria achar para engomar. Era uma mãe calejada e cheia de anéis que me acariciava a cabeça. 

Seu jeito de se mexer me ensinou o que era movimento, dentro e fora do corpo. No balanço, a tradução do sexo, do desejo, em suas letras e timbres, era a que dava o tom ao meu dialeto íntimo. Teu escorpião de veneno doce, teu rancor sofisticado e o amor simples. Na balança, pendia o amor simples de gente dolorida. 

Havia uma tristeza entre nós. Mas há muito de nós entre o amor. 

Doloridas as pessoas que escrevem e cantam.