sexta-feira, 31 de maio de 2019

Sotaque

Há como descrever alguém em silêncio. Assim como é possível soprar o escândalo do desejo na certeza de que você sabe guardar segredo. Dois reinos, mudos, onde cala quem consente. E sente muito. 

Eu não acredito em homenagem. Acredito em história. Se eu conto, é porque, mesmo dizendo, só você vai entender. Há um rastro, pegada, origem, que mostra de onde partiu e pra onde pretende ir. Começo, meio, em mim. Há um jeito de falar que se mistura à canção do saber, numa partitura que - ao invés de romper -, não parte ao meio tudo o que tenho a dizer. Este jeito é como o sotaque que eu tenho. Sotaque que só você consegue compreender.

Sua voz baixa foi o que tocou minha garganta áspera. Tentei, por anos, cuidar dos calos que me fazem tropeçar - ainda hoje - quando tento dizer, sem vírgula, na urgência de desabafar. Enquanto eu falava alto, você respondia baixo, pra dentro, atraindo-me tanto que eu ia descalço buscar nas profundezas do seu mar um pé pra não me afogar. Sua fala é das de tombo. Começam rasas pra, logo em seguia, afogar.

Sempre gostei do silêncio, do volume baixo, das discussões entre pai e mãe mais baixas ainda. Mais até do que o tom das trocas de ofensas. Lá, no nível último, eu conseguia ouvir nitidamente o que precisava ouvir. Era minha própria voz a dizer que tudo iria passar. Depois do barulho, nenhum pio. A sensação era de que o par de mãos pretas acariciavam minha cabeça e eu voltava a ser apenas uma criança esperando mimo. Não me importava mais com o adulto que me tornei. Era a criança esperando mimo e só. Sua voz era o silêncio que sempre gostei. Um afago, um não dizer, uma ausência que preenchia - e ainda preenche - meu não ser.

Do fundo do quarto, no canto que ninguém vê, estamos nós. Eu aqui, você lá.

Nós aqui, a voz, lá.

Quando pensei nunca ser capaz de entender o que eu mesmo disse a mim durante todos estes textos, eis que surge seu timbre cinza com o agudo de uma lança cuja ponta vermelha aponta nosso sangue misturado. Ele diz:

"Você tem sotaque quando escreve". Sim.

E que venha a voz ao nosso reino.

É um jeito de dizer que eu só calo quando é para cuidar da escrita.

Do nós, na garganta.

Coser

- Vá comprar pão!
- Quantos?
- Uns cinco. E traz o troco, hein!?
- Tá bom.

O caminho até o portão durava anos. Anos e mais anos descruzando as pernas, usando as joias de minha vó quando, à noite, as pedras já não reluziam tanto a ponto de chamar a atenção. O calor que salgava as juntas do corpo todo não era maior do que o temor que envolvia meu jeito de se vestir e de andar. Queria a bermuda mais curta, tão curta que mudava de nome, virava "shorts" aos olhos dos outros - aos meus, alívio. Deixava de andar agilmente nas pontas dos pés. Fincava a sola no solo e fazia tremer o chão todo com cada passada mentirosa e desajeitada que tirava de mim o rastro da desconfiança. Bastava olhar ali, aquele corpo mirrado, cor de barro: olhe lá - nada de "errado", parece mais um de nós. Vários nós, na garganta.

Abria com as mãos.
Girava lentamente.
Empurrava com força.
Rangia os dizeres.
Reclamava fazendo um ruído abafado com os dentes e, então, passava pelo portão mais velho do que meu sobrenome.

Odiava ele, pois chamava a atenção e fazia com que todo mundo visse minha casa aos pedaços. Ao passar da calçada, porém, algo acontecia dentro de mim.

Eu saía de verdade.

Como se uma costureira chamada Nalva decidisse arrumar o que, em mim, ainda não estava corretamente arrematado, sentia as puxadas da agulha na coluna que me faziam subir a cabeça como se subissem as mangas de uma camiseta. Olhava pro meu corpo e dizia, com a linha entre os dentes: "Preciso soltar aqui e apertar aqui, tá tudo muito enforcado, a gola tá degolando, não é pra ser assim, ele precisa respirar enquanto anda!".

Fazia, cosia, tecia, voltava, reclamava, acertava. Entregava a mima melhor confecção de mim - aquela cujo caminho até o pão não mais seria uma peregrinação. Com a coluna alinhada de tanta linha, eu andava sobre o asfalto seguro de que, na ponta dos pés, rumava ascendido. Alta costura.

Os dedos, ao invés de contar os olhares e taparem o meu para não ver tanto desdém, desenhavam o ritmo do corpo que ia sincronizadamente em comunhão com a roupa. Se alguém ainda não sabe para que servem as pálpebras, pois bem, eu lhes digo: elas protegem os globos oculares dos olhos alheios que tentam queimar a retina da autoestima.

Veja, eu não os via. De cima pra pra baixo, lentamente, conferia seus sapatos, seus pés,descalços, sem desdém, tentando achar algum final para aquele começo de desprezo tão aquém de mim. Quando chegava ao chão, sumia o peso e eu entendia que todo aquele desprezo era medo.

Nalva não costurou apenas meu eu, ela me disse ao devolver os panos: "O ver me fez pensar que Locou pra sempre um lugar entre minhas linhas". Uma linguagem que só nós tínhamos, entre o ponto e a cruz.

Uma das maiores aflições era pedir o pão e não saber se as moedas iam dar. Ficava tenso, suando nas bordas da testa, imaginando a vergonha que seria dizer "Moço, vou deixar o pão aqui e volto com o resto do dinheiro" porque sabia que não tinha"resto". Minha mãe só vivia com o contado. O alívio vinha quando eu pegava algum troco que não fosse bala e, mesmo sem saber fazer as contas pra conferir, eu sabia que algo seria devolvido à Mã. Se estivesse errado, beleza, a vergonha não seria minha. Cobrava mesmo e, de repente, pedia metade do engano em 7Belo.

Eu voltava como dia, radiante, depois da calçada: costurado a mim mesmo, modelado e impecável. Sem culpa, a gente serve no número que é o nosso. Nem apertado, nem largo, nem sobrando, nem faltando. Quando eu saía, saía de verdade.

Coser é fazer a gente caber perfeitamente em nós mesmos.

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Profecia

Lanço ao fogo o que ontem foi a profecia dos nossos dias. Giro feito o sopro dos gênios pelas areias ditas do destino. Clamo, peço, busco no fundo da ampulheta algum grão que ainda não tenha passado pela garganta e que me dê mais tempo contigo na lembrança. O sangue ferve sob o banho da Lua. Eu me ofereço mais uma vez à desgraça desse querer que não dorme. É com a voz abafada debaixo do peito que te peço para voltar.

Os temperos, espalho pela mesa. Sinto seus perfumes se misturarem ao de minha pele. Já salguei demais minha visão e agora é hora de preparar um banquete para celebrar seu retorno. O fio da lâmina cai sobre meu rosto, sopro, ele sobe e corta levemente um sorriso. Dos vermelhos, tiro o calor, dos verdes, a consistência, dos amarelos, o peso, do azeite, o toque e das olivas negras, a saudade de teus olhos. Um beijo na boca da garrafa e a bebida traga a tensão dos músculos. Ponho-me à mesa para que coma com as mãos. Farto de mim só posso eu mesmo ficar. Você, não. Você tem que se saciar e sempre querer mais. Porque eu nunca me sirvo por inteiro.

Enquanto a água acaricia minha pele, sussurro algumas poucas palavras. Desejo que o espírito esfrie a cabeça que não para de te invocar. Velas acesas, uma luz fraca e alaranjada, cansaço, passos molhados pelo chão de madeira e a porta do quarto entreaberta. Na transição da tarde para a noite eu encerro mais um dia de nossa história. Deixo que o corpo seque sozinho com a última brisa morna antes que a penumbra arrepiasse os pelos.

Com a coluna a rodopiar, entrego a nuca desnuda às vozes que cantam sem parar. Roubo cada verso que elas me lançam, envio-os a você, busco-te de longe, encaro-te como se estivesse diante de mim, os braços penteiam o vento e as velas se apagam. Coberto pela prata minguante, estico os dedos e alcanço – no criado mudo – as cartas que enviei e que retornaram em silêncio. Não as reli, não foi preciso. O cheiro das minhas mãos ainda estava ali, forte, como pimentão. Ponho-me na cama para que durma por inteiro, da cabeça ao peito. Cansado de mim, talvez só você mesmo. Eu, não. Eu me basto. Porque nunca me descrevo por inteiro.

Eu sempre te escrevi mais. Porque você nunca me serviu por inteiro.

domingo, 5 de maio de 2019

Coisa

O sossego do desapego finalmente encontrou um espaço em minha cama. Dorme ao meu lado, calado, confortável. Assim, consigo sonhar com algo real, de fato. Vejo os rostos para os quais disse "adeus" e não fiz questão alguma de mentir pra mim, pensando que, no fundo, tratava-se de um "até breve". Ainda que eu lembre como era bom ser um em dois, não vejo sentido em acordar para viver o mesmo dia - a dois. Toda manhã é um novo fim em nós. Em mim.

Enquanto conto o tempo nas pontas dos dedos, pergunto-me: "mas você não sente falta?". Oras, como não sentir? Se é falta ou alívio, não sei dizer, mas eu sinto, sim. Algo aqui dentro infiltra as paredes que defendem meu coração do mundo lá fora. Aos poucos, vejo elas descascarem, esfarelarem, virarem areia, novamente, do pó ao pó, no tijolo. É uma sensação sorrateira. Talvez por isso que eu a deixe fluir. Gosto de quem vem silenciosamente e faz barulho mesmo assim. Esta sensação - que rasteja feito a serpente que me habita - vem com o tempo. Assim como você foi, com ele, o tempo.

Estes diálogos silenciosos - que, inclusive, são as conversas que não tivemos, mas estão aqui - basta vir pegá-las - só aconteceram porque eu sabia que você me ouviria daí, de longe. Há sempre uma música de fundo dizendo o que a boca se recusa a dizer, porque ela quer falar e não cantar. Quando ela cala, quem fala são os ouvidos, donos de si, trovejantes como meu espírito. São os ouvidos que falam o que eles mesmos precisam ouvir. Ensimesmados, parecem-se como nós - dois pares de calçados perdidos no caminhar ao longo do longo chão duro, pela estrada seca que só se molha no momento em que o sal cai do céu e finge ser chuva, faz a gente perder a mão e errar no gosto, despencar, virar toró. Corta a cara erodida e nos engana fazendo tropeçar os pés d'água.

Parece chuva, mas não é.

Trata-se de outra... outra... outra... coisa. Odeio essa palavra... "coisa". Só que eu separá-la bem, do jeito que eu separo o que eu sinto do que eu sou e de como eu ajo, bem, parece, então, que há aí um outro convite pra ser sem saber onde se está. Para ser "coisa alguma".

Quando a gente sabe o que quer, mas não consegue se convencer do contrário, ao nos perguntarem "Mas o que você quer?", respondemos: "Qualquer coisa". 

"Coisa" é justamente o que não queremos tanto quanto não queremos explicar o porquê de não querer.

É o sossego do desapego.

Enquanto as teclas do piando competem com meus dedos para ver quem chega primeiro ao topo da razão a envenena no intuito de deixar que meus os músculos dos ombros relaxarem, eu lhe digo:

Você não sabe de coisa alguma.