segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Conversas mudas

Estava fumando e olhando para o nada, aqui da janela do quarto. Aproximei, sem querer, o cigarro dos ouvidos e então escutei aquele som de algo queimando. Mas era baixo, discreto, lento... Confortável e incessante.

Batizei para mim mesmo de "barulho da morte". Pode soar piegas, "barulho da morte", mas assim como as conchas guardam um bocejo do mar, esse som me lembrou o assoviar da finitude. Acabou o barulho quando acabou o cigarro.

Samael amaldiçoou a terra - e toda a vida nela - com o barulho. Ele, que no paraíso era maestro, disse que nunca o humano ia conseguir ficar totalmente em silêncio. Sempre haveria um ruído. Só a morte calaria a vida.

Enfim... O cigarro se cala e nos cala.

Ria & Lia



Minha família estava contente em me ver. O movimento que faziam com os talheres indicava certa empolgação e, ao mesmo tempo, desconforto. Pai girava o garfo vagarosamente como o ponteiro de um relógio prestes a parar. Dois giros para frente, três para trás, uma pausa. Nada. Nada fluía.

Mãe sorria com o canto da boca desocupado de comida. Reservado para a família. Aquele que sempre ri. Ela ria. As mãos cheiravam à comida que comíamos. Prova de amor é deixar seu cheiro na comida dos outros. Já minha irmã fiscalizava-me com seu silêncio. Mastigava o alimento tenro com curiosidade, esperando de mim a primeira frase. Sou convidado dos meus próprios pais. Foi um ano difícil para eles. Para mim, não foi um ano. Uma vida, talvez. Uma vida difícil da qual eu não posso me desligar. Porque sou assim. "Doente", eles dizem para os demais parentes. Sou doente por ser distante.

Ela, a mãe, perguntou como tinha sido a viagem. Expliquei que a maior parte do tempo estive dormindo (mentira) e perdi muito da paisagem linda que contorna os trilhos do trem. Elizabete não se conformou com a resposta. Achou um absurdo alguém dormir tanto como eu e ainda assim ter um trabalho, uma casa e - pasme - um namorado (mentira). Houve um namorado que não amei. Nem quis amar. Apenas fiz o que precisava ser feito. Tudo pelo fim das cobranças - da carne, principalmente.

Meu pai observava o bife morto diante de mim. Eu não o comia. Apenas bebi taças e taças de vinho e eles permitiam com gosto. Havia a ilusão de que a embriaguez invocaria alguma reação da minha parte naquela reunião e então um diálogo mais dinâmico nos validaria como familiares amorosos. O álcool libera o que a razão tenta esconder enquanto a lucidez está acesa. O álcool é quem apaga as luzes. Ele é sempre o primeiro a se despir e deitar. A razão - a se entregar.

Os ponteiros continuavam estagnados. Foi então que ele quis saber sobre meus planos de trabalho e expectativas para os próximos meses. Eu lhe expliquei que escrever era um processo aleatório demais e por isso me encantara tanto. Usei essa palavra, "encantara", no intuito de ser positivo, apenas. Disse que não dependia do tempo dos outros, afinal, se assim fosse, seria a escrita dos outros e não a minha. Elizabebte perguntou como meus chefes suportavam essa pobreza de argumento. Ignorei-a e então prossegui dizendo que cada linha escrita somente com a preocupação em evitar suicídio valia mais do que páginas e mais páginas de um plano falsamente elaborado para direcionar a narrativa rumo ao clímax e condenar o suicídio. Que o "nada", ao meu ver, o oco, o vácuo, era justamente o que as pessoas precisavam conhecer mais. Ele me olhou como quando ergueu meu corpo gelado do chão do banheiro e então abandonou o talher rodopiante. Cruzou os dedos e questionou sobre o que eu estava escrevendo. Mais um gole. Justamente sobre o "nada". Estou escrevendo sobre o nada, pai. Minha mãe ria freneticamente. Elizabete mudara de cor, era rubra agora. De repente senti a mão de meu pai aquecendo a pele do meu rosto tal qual o filete de sangue que pela mesma mão se espalhou pela mesma face. Pelo mesmo pai. O mesmo que salva e condena.

EufoRia

Eles me viam como um farsante patológico. Alguém que jamais dera real valor para tudo o que haviam conquistado. Alguém que matava o sol por não dar bom dia. Aquele que ignorava a beleza da lua, mas gostava da noite porque ela tirava a tudo e a todos ao seu redor. Era finalmente só "seu redor" - e de mais ninguém. Repudiavam a maneira como tratava seus convidados. A indiferença era pior do que sal na ferida - ou na sobremesa. Secava todas as amizades frutíferas de anos. E eu tive que fingir. Eu fingia demais. Porém, bastava uma pausa para ir até o banheiro e tudo voltava à concordância. A sensação de desapego, o zunido no fundo da cabeça, a falta de vontade se espreguiçando... o Sono. Hipnos. Morfeu é para os fracos. Sempre o sono. Nunca sonho.

Depois do tapa no rosto, minha mãe finalmente se libertou. Sua gargalhada era ouvida por todos os cantos da casa. Sem entender, meu pai - que esperava ser recriminado - voltou ao seu devido lugar e passou a saborear um vistoso pedaço de bolo com cobertura de goiabada. Elizabete agora se sentia tranquila, vingada e a mais amada. Bem alimentada. Eu não sentia muito além do calor que ainda repousava na bochecha. Não queria estar ali. Eu queria estar perto, mas dormindo. Só assim, longe de verdade.

Mãe perguntou se eu estava bem mesmo. O que estava acontecendo e o que era esse assunto sobre o "nada". Ela temia muito a morte e quando eu disse essa palavra, meu pai se viu obrigado a defender a paz e honra da família. Paladino. Ele fez pelo meu bem, explicou minha mãe. Disse que os anos na terapia e os remédios que tomei deveriam ter feito alguma melhoria no "tratamento", mas que as recaídas faziam parte do processo. Pai pediu desculpas no dia seguinte e mostrou-se interessado em ler sobre o vazio que eu traduzia há meses. Elizabebte não queria mais nada. Retirou-se da mesa fadigada de prazer.

Um dia comum. O vento tímido, as cortinas oferecidas... Sala sombreada e o vasto jardim exibindo sua vigorosidade. Quartos e mais quartos, corredores perdidos e minha janela. Passei horas emoldurado por ela, observando a morte natural de tudo. A finitude das nuvens, o brilho intenso de duvidoso de Spica, os pássaros imortais que estão livres do saber sobre a morte e minha família. Pai tímido e mãe imortal tomando conta da grama e minha irmã tomando sol. A luz branca - e não amarelada - que anuncia a indiferença do astro rei. Secava a pele da irmã oferecida, feliz e extrovertida. Todos morriam da janela pra fora. E só os mortos podem falar sobre o decesso. Resolvi me juntar a eles.

Todos ficaram surpresos. No mesmo instante, o casal correu em minha direção com algumas ferramentas em mãos e Elizabete apenas abaixava as lentes escuras dos óculos para crer no que estava vendo. Ela me lia como ninguém. Ela sabia o que havia dentro de mim e se deliciava com isso.

Cortei algumas rosas (morte), joguei adubo com cascas de frutas no solo (morte) e então enfiei alguns brotos de árvores frutíferas (haverá morte). Pai apoiava as mãos no meu ombro e pitava seu cigarro (morte). Mãe assoviava a 7ª de Beethoven (morto). Tudo parecia conspirar para que aquele momento valesse um retrato (morto) ou confissões entusiasmadas para os amigos tão acostumados com a decadência dos lares de classe média (morta). Tão acostumados com a moral sempre feita de vítima (morta).

Depois de todo o constrangimento, tive a chance de me afastar da casa e passar um tempo sozinho. Solidão. Era o fim da euforia. E o começo da minha...

MelancoLia

Sentei à mesa e olhei para aqueles rostos. Todos marcados por uma falsa expressão de companheirismo. Olhei para meu pai e vi sua ruína, seu fraqueza reluzente que escondia a sombra de melancolia. Mas a deixava escapar enquanto seus dedos dançavam com um talher patético. Era um jogo óbvio de postura na qual a pessoa se firma no movimento repetitivo, encenando ter algum ponto de concentração e propósito. Tentando passar não a imagem dos ponteiros retardados, mas a de um cronômetro a calcular o tempo de explosão da bomba. Ele, sem falar, estourava meus ouvidos com aquele silêncio forçado. Emudecido, cada músculo de seu corpo rangia feito móvel velho. Isso estava me matando. Não suporto que alguém tente fazer uso do silêncio sem nem ao menos saber o que ele de fato é. Silêncio é morte. Luto. Finitude da vontade. E meu pai estava morrendo - não de verdade - mas de vontade de falar. Calou-se apenas para ensaiar a melhor hora de atingir o ápice de sua paternidade: a violência educadora. Ele cedeu à fúria quando me ouviu falar sobre o "nada". A razão é bem clara. Quando alguém não sabe tratar de algum assunto ou situação, perde a capacidade de imaginar, volta ao seu estado bestial e então faz uso da brutalidade - como se esta fosse capaz de expressar sua ideia. E, de fato, transmitiu: euforia.

Minha mãe era uma mulher já morta. Sua vida não existia sem a do meu pai. Logo, sua vida não era só sua -e assim posso dizer sem menor pêsame que viva ela não estava mais. Há anos, inclusive. Seu corpo sim, este era só problema seu. Meu pai fazia questão de enfatizar isso. A vaidade, maldição que escraviza os frágeis, era o preço que ela deveria pagar por ter se casado. Por ter nascido mulher. A mulher, sempre o outro, nunca ela. Nos meus primeiros anos de vida eu me senti como mulher. Até os 7 eu me sentia mulher - o outro dentro do mundo. Confinado junto de minhas vontades, sempre me achando fraco e incapaz. Foi me sentindo assim que eu finalmente encontrei a única arma contra todas as investidas grotescas do mundo: eu me encontrei. E lá fiquei sozinho comigo. Inalcançável. Mas minha mãe, não. Ela não se cansava de ser perseguida pelos anseios estúpidos do meu pai. Vendeu sua alma à soberba e então assim seguiu. Teve Elizabete para comprovar a fertilidade do corpo e negligenciou a criação da garota.

Minha irmã é apenas mais uma. Não sei o que dizer sobre ela. Elizabete sempre fez isso muito bem. Falou de si mesma até para os insetos que comiam seus vestidos. Ela sempre me odiou pelo fato de eu não prestar atenção em sua existência. Ela não compreendia até que meus pais disseram se tratar da tal doença que "deixa ele sempre triste". Isso só a enfureceu e ao invés de transmitir um pouco de empatia, acendeu uma maldade devoradora. Perseguiu-me, humilhou-me, agrediu-me sem saber que nenhuma de suas ações chegou com tais nomes até minha percepção. Eu apenas a sentia distante. E isso era o melhor que ela poderia fazer. Deveria ter agradecido quando tive chance.

O jardim, a casa inteira... Nada daquilo se conectava comigo. Eu olhava para as filhas de Virgo cintilando no céu e sabia que estavam mortas há séculos. Todo aquele brilho não passava de atraso. Vivas, elas já estavam mortas, bem lá no céu - o recanto dos merecedores. A lua é um pedaço de rocha morto. O sol é uma bola de fogo que se auto-consome. Suicida-se. O vácuo, o silêncio sideral, o espaço atemporal... Morte. Uma vibração constante que se anula no mesmo instante. Aqui, neste planeta onde a vida diz existir, não há fim para a finitude. Onde reside os restos cósmicos de Spíca há um ponto brilhante que também está morto há anos luz. Esse ponto é a Terra. Somos nós.

Para a constelação de Virgem, já estamos mortos. Eu me pergunto: para quem estamos vivos? Meus pais responderiam sem titubear - para nós, menino imbecil!

Eu não responderia nada.

Viver é antinatural.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Valor

Qual é o valor de x?

Pretx, brancx, pardx, gordx, magrx, altx, baixx, desempregadx, suburbanx, abandonadx, excluídx, presidiárix, bandidx, graduadx, drogadx, xsexual.

"X" é igual a mim e você.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Palavra e significado

"Parto" é uma palavra tão rica em significados que poderia ser o melhor termo para definir a vida.

Do parto nasço e me faço assim, do nada que fui ao tudo que não sei se serei.

Parto em direção aos anos futuros, compromissos, relacionamentos, quebras, voltas etc.

Parto o laço com a vida, cansado e desgastado, e simplesmente vou. Morro.

Parto que me dá o primeiro choro. Parto para evitar mais choro. Parto e só deixo choro.

Parto e descubro o ar, o gosto, o frio e o calor. Parto e deixo as chaves, cartas e o perfume no seu lençol. Parto e não olho para trás, finalizo o que comecei sem nem saber.

Parto.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Quanto custa sentir?

Todas as pessoas sentem algo. E "sentir" pode ter vários significados - desde os mais óbvios, semanticamente estabelecidos, até os mais complexos - subjetivamente escritos. Seja com for, há fluidez e alteração no corpo e no comportamento. Muda, como o olhar faz todos os dias. Inunda-se, como o mar faz todos as tardes.

E quanto custa permitir-se sentir o que há para ser sentido? O preço a pagar é sempre injusto. E assim pagamos. Pagamos o quanto for cobrado. Pagamos as passagens para visitar aquele amor de um dia; pagamos a cerveja bebida pela metade que rendeu a mesa a dois cheia de carinhos e mentiras; pagamos a entrada para a festa desinteressante com promessa de gente interessante; e no final da noite apagamos, como se não tivéssemos acontecido.

O preço do "sentir" está além da nossa capacidade de calcular. Ele oscila de acordo com a infla(ma)ção do querer e se faz nos detalhes de um perfume na nuca ou no descaramento em perguntar - "você está com alguém?". Geralmente, arriscamos linhas tortas - sem régua punidora - de um discurso sincero e patético que quer apenas ser amado, acolhido e - quem sabe - lido pela língua a frente. Depois, quando o efeito se desfaz pela correnteza sanguínea, a maré em nós deixa apenas uma sensação de derrota que custa a afundar na areia das expectativas. Cada palavra dita no momento de maior vulnerabilidade sentimental não pode ser apagada com os pés nem com a próxima onda. Marca profundamente e talvez um próximo verão possa então acobertar a memória do que a ponta dos dedos não entrelaçados entre mãos dadas pôde omitir. Paga-se se o preço, mas não apaga-se o peso - da rejeição, por exemplo.

Ainda assim, sentiremos. Espalharemos sobre o lençol exausto da cama as contas do peito e dividiremos a tristeza em suaves parcelas de consequências. Cada uma delas decididamente pronta a cobrar-nos diariamente um fragmento do carinho perdido.

sábado, 2 de agosto de 2014

A janela de Judas

Minha vida é o que escolhi para mim, e não o que escolhi ser. Não tive o privilégio de legislar sobre a constituição dos meus dias. Desde cedo precisei lidar com algo obscuro impregnado em minha essência. Os anos seguiram, e a guerra interior que destoava as atitudes do garoto calado cessou diante do acordo de paz entre bem e mal. Nenhum dos extremos abriu mão da própria natureza. Apenas admitiram a importância que um tem para o outro.

Há o mal em mim. Não sou o único hospedeiro de tal enfermidade moral. Porém, acredito ser um dos poucos que conseguiu aceitar a própria maldição sem crises. Na verdade, o que sempre me sufocou foi a impossibilidade de contar aos meus sentimentos sobre sua outra esfera. A escura.

Quantas vezes desejei o mal extremo dos inimigos e sorri com sua derrota. Ou simplesmente joguei com a vida de pessoas desinteressantes que queriam mais de mim do que eu mesmo poderia oferecer. Jogo de palavras, jogo de interesses, sentimentos simulados, cumplicidade por conveniência e puro egoísmo no lugar de amo verdadeiro. São estes estilhaços de mau caratismo (será mau caratismo mesmo?) que cortaram a alegria estúpida dos dias insuportavelmente inevitáveis pelos quais passei sem deixar rastro. Atuei com a maestria invejável. Às vezes é preciso fingir que se sente algo para, então, ser convincente. Para, então, perambular livremente pelos anos sem ser incomodado.

Olho ao meu redor e vejo tudo se decompondo. Depois que descobri, ainda bem pequeno, que tudo o vive está fadado a morrer, encantei-me pela finitude. Eu sabia que teria fim para tudo o e todos. Talvez, o único momento em que a igualdade se faz por completa. E então não me senti mais culpado por desejar a antecipação do fim alheio. Certas vezes desejei o minha própria morte e nunca senti nada tão confortante quanto isso. Saber que nem mesmo aquela maldita angústia de gelar as vísceras estava livre de se finar valia mais do que 30 moedas de prata.

Claro que conhecer parte da minha potencialidade desgraçada me obrigou a desenvolver um alto grau de controle. Há limites para tal força destrutiva. Não posso dizer que atingi o equilíbrio ideal, contudo desenvolvi certas "técnicas" eficazes quando se trata de não perder totalmente a sanidade e virar prisioneiro de si mesmo. O primeiro passo foi conversar com o demônio que habita em mim.

"Olhos de níquel

Ele me observava do canto da sala escura, apenas reluzindo o par de olhos prateados. Pele seca, pálida, unhas comidas, nu. Conhecíamos- nos desde sempre, ainda que nenhuma palavra tivesse sido trocada até então. Seu cheiro era muito familiar. O mesmo odor que untava minha pele nos momentos de ódio extremo - ou de desejo por vingança. Eu sabia o que ele queria: total controle sobre minhas ações. Ele também sabia o que eu desejava naquele momento - tudo o que nunca poderia ter sendo apenas uma pessoa comprometida com o "bem maior".

- Você me odeia?
- Sim.
- Eu não posso simplesmente deixá-lo livre dentro de mim. Você me destruiria.
- Não.
- O que tem feito todos esses anos?
- Sussurrado na sua nuca.
- Sim. Eu pude te ouvir. Na verdade, eu sempre te ouvi.
- E isso te angustiava, não? Ouvir aquilo que se quer ouvir e nada fazer.
- Foi difícil. Mas seguir os seus conselhos me custaria muito caro. Não posso pagar o preço.
- Eu entendo. É justamente por isso que eu estou aqui e você aí. Eu aqui e você humano.
- E o que você é?
- Seu álibi. Aquele que sempre levará a culpa por suas ações erradas.
- Eu deveria me sentir melhor por isso? Saber que você é responsável pelos danos que causei e causarei?
- Não sei. O que sei é que precisamos um do outro. Mesmo trancado, eu sinto o mundo através de você.
- E o que você sente a respeito do mundo?
- Desprezo. Essa existência embrionária na qual me encontro permite-me refletir muito sobre o que foi criado - e tudo o que faltou neste processo.
- Eu não queria sua passagem por esta realidade fosse tão limitada.
- Então me deixe sair um pouco. Ou melhor, abra as janelas desse quarto. Eu quero ver... Só me deixe ver.
- Não sei o porquê, mas sinto que quero fazer isso. Seria como tirar a corda do pescoço. Vá, veja com seus próprios olhos...

"

Depois, chegou a hora de colocar em prática o que nunca antes havia sido feito por mim. Não há navalha, marreta, chicote ou agulho que machuque mais do que as palavras. Elas abrem feridas que jamais serão fechadas, a menos que a memória se quime e leve consigo as páginas do passado. Caso contrário, irão devorar eternamente o fígado de Prometeu que existe em todos nós.

Após eu ter descoberto a traição, não tive muito escolha. Calei. Tornei-me incapaz de dizer qualquer coisa. Algo estava acontecendo dentro de mim. Eu queria sumir, no entanto sabia que era preciso construir outra lembrança daquela época. De preferência, uma que fosse esculpida em vingança.

Resolvemos conversar sobre o ocorrido.

- Você vai ficar me olhando assim? Com esses olhos opacos e metálicos?
- Eu preciso lhe falar algumas coisas. As últimas, prometo.
- Tudo bem, mas olha, não adianta ficarmos aqui remoendo o que já passou. Ou me desculpa de uma vez ou simplesmente seguimos nossos caminhos separadamente.
- Você está certo. Não vou remoer nada. Só queria pedir desculpas.
- Desculpas? Meu, não faz sentido e sinceramente? Não me faça ter pena de você. Não foi por alguém assim que me apaixonei.
- Não é nada disso. Peço desculpas por ter te enganado desde o começo.
- Como assim?
- Eu nunca te amei. Nunca gostei de você pra valer.
- Ah, sei... Olha, eu entendo que você esteja dizendo isso pra tentar recuperar a autoestima. Só que é besteira, não precisa agir assim.
- Estou falando sério.
- Se não gostou de mim então por que ficou comigo? Por que foi sempre doce e atencioso? Por que ficou triste e calado quando soube da traição? Porque beijou minha mão?
- Porque perdi algo importante para mim. E acredite, não se tratava de você.
- Ah, não? Então o que era?
- O alimento para meu ego.
- Por favor, que argumento patético. Mas se você prefere assim, não vou discutir.
- Não vai mesmo, agora você vai ouvir.
- Bom, como sei que essa definitivamente será nossa última conversa, então vá em frente... Desabafe, acho que assim pago minha ultima parcela de dívida e caminharei sem culpa. Crucifique-me, vá em frente.
- Eu nunca gostei de você. Primeiro porque é praticamente impossível se interessar por alguém tão simplório. Com toneladas de frases, pensamentos e justificadas retiradas de filmes e livros tão básicos quanto seu léxico. Fiquei com você porque meu corpo precisava de alguém, mas alguém que voltasse mais vezes e permanecesse ao meu lado por mais tempo. Necessitava de uma válvula de escape e como sei que seu grau de esclarecimento sentimental é primário tive que alimentá-lo com todas as porcarias doces que o livro de receitas do "amor" ensina a fazer. A traição nunca foi o problema, afinal, eu te traia a cada vagão de trem ou mesa de bar. Você nunca me teve. O problema foi não ter encontrado alguém melhor antes que você se tornasse inútil. Não pensava em você quando escrevia mensagens ou telefonava, pensava nas minhas vontades sendo atendidas. Não pensava em você quando estava bebendo ou me divertindo, apenas me lembrava de manter algum laço para que você você voltasse na hora certa. Não pensava em você quando escrevia - nem de longe - ou ouvia música. Pensava em você quando minhas prioridades físicas e egocêntricas clamavam por satisfação. Todo sofrimento após a descoberta da traição não passou de uma última tentativa de evitar o fim das minhas regalias. Você é uma pessoa qualquer, básica e rasa demais. E não estou te atacando, de maneira alguma. Apenas estou apresentando você para si mesmo. Entretanto, sei que sua estupidez escudeira irá protegê-lo de qualquer auto-reflexão.
- Hunf, terminou?
- Faz tempo.

Se as pessoas soubessem como realmente parecem dentro da minha cabeça, debaixo do meu peito, entenderiam o porquê do esforço que faço para fingir que sinto alguma coisa por elas.