segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Eu, meu deus; Meu deus; Meu eu; Eu



Eu tinha todos os motivos para não levantar da cama. Todos bem ensaiados, organizados dentro da minha cabeça. Não seria mais um dia e sim menos um. De tão ensaiado que estava, acabei perdendo a vontade de me anular. Quando percebi já estava sobre meus próprios pés, olhando pela janela e admirando a chuva. 

Dias atrás eu havia decidido partir. Partir de mim. Mas parte do que sou gritou, berrou, buscou algo no qual pudesse encontrar firmeza. Li em diversos lugares que isso se chama “instinto de sobrevivência”. Minha mãe dizia que era deus ou algo do tipo. Eu acho que foi medo mesmo. 

Medo de não ter mais a chance de arriscar. De nunca mais sentir o gosto bom que surge depois de tempos sentindo apenas o sabor amargo da decepção. É como ressurgir das próprias cinzas, mas não ser mais o mesmo. Aquele corpo não me servia. Eu não cabia dentro de mim, por isso consumi cada parte, cada canto, cada dobra do recipiente em que fui colocado. Refiz o parto e as partes.

Declínio. Subida. Estabilidade. Instabilidade. Declínio. Subida. Instabilidade. Estabilidade. Declínio. Instabilidade. Subida. Estabilidade. Queda. 

Sai para andar. Caminhei tanto que se traçasse uma linha ela acabaria com a ponta do lápis ou a tinta da caneta. A chuva me acompanhava. Tomei um banho como há tempos não tomava. Daqueles que salga a boca com o tempero das lágrimas. E eu chovi. Chovi como não chovia há tempos. Não tinha mais você, nem minha família nem se quer um telefonema me cobrando os capítulos do livro. Apenas eu e a chuva. O declínio da temperatura fez a pele estremecer. Ainda havia vida em mim. Mesmo eu vivendo tão pouco. 

Subida após subida, só me restava o horizonte com cara de quem tinha acordado há pouco. Não cansei. Não tive sede. Não senti dor. Algo me puxava. Fui atendendo ao chamado sem nem imaginar de onde vinha a voz. Vinha de mim. Alcancei o alto de um morro e nele me sentei. Sob a luz avermelhada estavam aquelas pedras gigantes. Eu estava triste. Tão triste que mal soube interpretar tal momento. Foi então que minha mente se desligou. E eu, personagem de tantas histórias, tornei-me o escritor. E ele escreveu: 

“Este espaço, este lugar, este fragmento de página é justamente a morada de tudo o que existe dentro de mim. Algumas coisas cabem perfeitamente nas palavras aqui escritas. Outras se escondem nos truques que uso para redesenhar minha razão, minha realidade e meus dias. Passo da conta. Das linhas. Passo e volto sempre para visitar um velho amigo, esteja ele dentro ou fora de mim. 

Quando pequeno, minha paixão era o desenho. Papel carbono, folhas em branco e o universo todo de animais e coisa para serem rabiscadas. Estava ali parte do ‘eu’ que ainda hoje dá seus pitacos. Mas ele era apenas a prévia do que viria. Continuei amando os desenhos, principalmente quando aprendi a desenhar letras... e palavras... e histórias. 

Depois veio a escola para domar – ou tentar domar – os cavalos da minha imaginação. Deram pontos, vírgulas e uma vasta lista de regras a serem seguidas. E eu as seguia, não por obrigação, mas porque elas adornavam o corpo nu da escrita. Em alguns casos, vesti a minha com roupas formais. Em outros, deixei ela nua, como veio ao mundo. Registrei dias em que ela quis fazer as próprias roupas. Deixei. A gente cria para o mundo, não para nós mesmos, não é? 

E cá estou, declarando-me. Declarando meu amor por todas as orações que deixei aqui. São preces que meu espírito fez no silêncio de seu corpo. No silêncio da minha essência. Estas rezas que me acompanhavam bem antes do parto. O legado, a doutrina, os dogmas de um deus vestido de menino, magro e tímido, que preferia brincar sozinho. Esse deus que já me salvou de muitas enrascadas e que encheu meu copo até que a pressão evaporasse antes mesmo do álcool. Eu, meu deus. Meu deus. Meu eu. Eu.

Talvez hoje eu ainda use a escrita como placebo. Ainda me faz efeito. Pílulas de ilusão. E as justificativas são bem simples: aqui eu sou amado por quem não me ama; mando num mundo em que não existe dono; desafio o deus dos homens; louvo deus nenhum; confundo a mente – tanto a minha quanto a sua; refaço minha história; lavo as mágoas; planto as expectativas; colho das frustrações; e nunca abandono a capacidade que tenho de te prender aqui. Seja lá quem for já está familiarizado com esse texto. Comigo. Como amigo. Ou amiga. É pra se perder e fazer desse texto seu. Eu já fiz o meu. 

Neste momento, observo as pedras gigantes sob a luz vermelha. Eu, o escritor dessa história, rendo-me ao personagem e faço dele a minha jornada."



domingo, 16 de dezembro de 2012

Heresia

Doer
Adoecer
A dor e o ser
A dor em ser
Adolescer
Amolecer
Amor e o ser
Amanhã ser
Amanhecer
A mãe é ser
Amar é ser

Dormir
Dor em mim
Dura em mim
Dura o fim
Pula o sim
Nega a si
Cega a si
Sela aqui
Se ela quis
Fui eu que fiz

Desapego
Desde já, pego
Despeja o ego
Desejo
Dez beijos
Despejo
Detenho
Retenho
Já venho

Salgada
Desalmada
Calcada
Carcaça
Quem caça
A graça
Na fala
Calada
Cansada
Não casa, cansa

Nome
No homem
Nome de quem?
Homem de quem?
No homem de quem?
No abdômen
Do hábil homem
Dor que vai além
Há dor pra quê?
Adora a quem?
Agora, a quem?
Ninguém.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Boca, dedos, língua e olhos



Ruptura

Reúna todos os pedaços da ruína que você se tornou e rua. Rua para as pernas atrofiadas de quem não sai de casa, desconfiada, e fica enfiada nas almofadas com cheiro de cigarro. Acha a agulha de costura no meio da pele, faz um ponto pra fechar a ferida. Marca um ponto por ter fechado a ferida. E sal, muito sal pra ajudar na cicatrização. Religa os pontos com linha preta. Da ruína à malha de si mesma. Retalho por retalho, ela malha a si mesma. 

Enjoei da escrita propositalmente côncava. Cansei das palavras de confissão que prestam serviço ao falso bom-senso nosso (meu) de cada dia. Acostumei com o gosto amargo do cigarro e agora que o maço acabou só me resta amargurar outra ponta. Não a da língua. Nem do fumo. Dos dedos mesmo. 

Asfalto, calor, ar seco e a boca luta pra se manter úmida. Também luta por outras causas. Luta pra poder falar, luta pra se manter calada sempre que puder, luta para ser beijada e luta para dizer adeus sem ter que trair o coração. Essa boca acorda todos os dias comigo. Boceja, banha-se; perfuma-se; alimenta-me e vai. Vai vestida de lábios para mais um dia de asfalto seco, calor no ar e paladar seco. 

Olhar distraído de mentira. Finge que está preso nas páginas do livro recém-adotado, mas não tira os olhos dos outros olhos. Olha pra muita gente, pensa sobre toda essa gente e tem vontade de ficar, casar, brigar por causa do banheiro todo molhado, reatar... E se for pra ser, tem que ser olho no olho. Olho, globo do corpo, buraco na parede da alma, diafragma sem foco manual. Seu foco é etéreo. Quando se interessa, ajusta as lentes pra não atraiçoar o coração com ilusão de ótica. Ou ilude, mas não se responsabiliza pela interpretação. Nem depressão. O que os olhos veem é o que o coração luta pra não sentir. Porém sente. 

Ligamento

Boca, dedos, língua e olhos. Tudo junto na tentativa de ser algo. De ter peso, massa, importância, existência. De ter nome, de ser batizado e achar alguém pra chamar de hora em hora, sem pausa, sem desculpa, sem ter que marcar encontro. Alguém pra beijar a boca, entrelaçar os dedos, morder a língua e olhar nos olhos. Tudo simples. Tá tudo no corpo, já veio assim, a gente é que se censura. Passa tempo demais tentando achar desculpa pras vontades e repulsas.
O corpo morre. Vale lembrar.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Lá do outro lado



Hoje, não vou trocar de roupa. E vou sair sem rumo. 

Tô com vontade de ver a cidade, olhar bem pra cara dela pra sentir se ainda me traz algum bem. Quero mesmo é esquecer de casa. De tudo e todos. Pode ser que eu morra nesse rolê. E se for assim, tudo bem. Já que ninguém nunca voltou pra dizer como é do outro lado, então eu vou inventar meu próprio relato.

“A pancada foi bem na nuca. Senti o sangue quente escorrer e depois nem pernas, nem braços doeram mais. Foi assim que eu apaguei. 

Quando abri os olhos estava no mesmo local. Cercado por várias pessoas. Mas elas mal me observavam. Foi então que duas delas vieram até mim e disseram que não havia acontecido nada de grave. Apenas um susto. Não é assim que se diz? 

Continuei caminhando até chegar na Praça de Prata, onde eu sempre passava as tardes. Tudo normal. Alguns cigarros, poucos carros... quase ninguém. Tudo certo. Queria paz naquele resto de dia. As coisas em casa estavam realmente complicadas. Minha mãe chorava todos os dias e meu pai só piorava. Piorava de postura. Não de saúde. Uma pena. 

Foi então que um garoto me chamou a atenção. Ele era idêntico a mim. Só que na versão criança. Simplesmente igual, até mesmo as roupas que eu usava. Levantei e fui até ele, mas não consegui alcançá-lo. Correu. E quando percebi eu estava em outro lugar. Achei que tivesse sido efeito da pancada na nuca, mas não. O cheiro era real, as cores, as vozes... eu estava no quintal de casa,. Só que não era o mesmo espaço de hoje. Era o de ontem. Ou melhor, o de anos atrás. 

Minha mãe, jovem e sorridente, pendurava pequenas peças de roupa no varal enquanto meu pai trocava de discos. Saia Gilberto Gil pela janela da sala e entrava Jor Ben Jor pela porta da cozinha. O garoto que encontrei na praça balançava entre as árvores, segurando um galho verde de “Dama da noite”. Até o Rink estava lá, pastor alemão capa preta que minha avó tanto amou. 

Foi então que a curiosidade me fez entrar em sua casa. Imediatamente fui envolvido pelo cheiro de comida caseira. Cheiro nada, perfume. Mas ela não apareceu. Nem sinal da matriarca que já havia nos deixado. Nem tudo era surreal. A morte dela, por exemplo, ainda era bem verdadeira.
Meus pais pareciam adorar aquele pequeno garoto. Ele ficava perdido na imensidão da horta, descobrindo um novo mundo dentro dos muitos mundos contidos ali. Eu gostei de tudo aquilo... Já nem me preocupava mais com a razão ou sentido das coisas. 

Olhei para o céu e as nuvens carregadas tapavam o sol. Ele escorria aflito por frestas macias até alcançar o chão – malhado de luz como uma vaca leiteira. 

Voltei os olhos para a casa e já não estava mais lá. Num quarto em construção, as paredes rústicas só não eram mais brutas porque traziam o tom alaranjado dos tijolos e isso quebrava a seriedade. Tons quentes para um lugar tão abandonado. Olhei bem... cada canto... o corredor... a janela.... Sim, era o meu quarto! O início dele, pelo menos. Fui para a porta e antes que conseguisse descer as escadas vi dois vultos bem próximos um do outro. Aquele jovem – de uns 14 ou 15 anos – tinha o mesmo porte que o meu, quanto tinha aquela idade. Ele usava óculos de armação preta e grossa, tinha muitas espinhas – com uma sutil luz de vela eu pude reparar bem nos rostos – e um cabelo horrível. Tipo topete, só que com gel barato. 

Na sua frente estava uma garota de cabelos bem longos e escuros. Escorridos. Ela já tinha o corpo bem desenvolvido e parecia se encantar pelo moleque mirrado à sua frente. 

Como num flash os dois selaram os lábios. Foi rápido o bastante para que ele pulsasse como nunca , a ponto de jogar os óculos no chão. E ela se sentiu segura. Ficou relaxada. Foi intenso o bastante para que eu sentisse uma saudade enorme do meu primeiro amor... Aquele que me deu o beijo mais esperado de todos. O primeiro. Dessa vez, fui eu que fechei os olhos. 

Quando abri, estava novamente na praça. Nem garoto, nem moleque, nem pai, nem mãe. Um cheiro forte de rosas se escondeu em minhas narinas. Senti que o perfume brotava do meu lado. Virei a cabeça lentamente. Lá estava ela. Minha avó.

Dona Maria Anita, com seu vestido azul escuro, floreado de lírios brancos. Tão brancos como seus cabelos curtos e bem alinhados. Ela não disse nada. Tocou minha mão e mais uma vez apaguei.
No fundo da cabeça, escutei uma voz dizendo: ‘A gente é eterno enquanto viver na memória de quem nos ama’.

Ô vó... Acho que entendi. Eu me vi em todos esses momentos. Hoje, sou eu que vivo pra sempre.” 

O “outro lado” é o do coração mesmo. Num tem mistério.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Coraç(m)ão



A chuva simplesmente parou. No seu lugar, o sol mais radiante do que nunca. Consegui manter meus pés secos e de quebra ainda aproveitei duas rodas: a de samba e a de capoeira. Tudo certo. Até que... 

Às vezes sinto que meu coração é feito de papel. Dobra, desdobra, amassa, recompõe o formato, encolhe, aumenta e no final das contas volta a ser aquela mesma folha em branco. 

Cada passo acelerava mais as batidas do coração e no segundo em que a fumaça adentrava meus pulmões senti como se a nicotina tomasse o lugar do sangue. As veias enlouqueceram. Traguei com tudo o que tinha – e tudo o que tinha. Envenenado, tentei manter a pose. Escureci os olhos com as lentes dos óculos e cerrei os lábios – uma vez que são eles o maior perigo dentre os muitos perigos. 

Às vezes sinto que meu coração é feito de fumaça. Muda de forma conforme a força do vento. Se a brisa é morna, ele desliza lentamente pela caixa torácica. Mas se vier fria, então pesa como nuvem carregada e berra seus trovões a esmo. Berra pra quem quiser ouvir, mas nunca para quem deveria ouvir.  

Impossível controlar as vontades. Só consegui silenciá-las. Olhava para as árvores, para outras pessoas, para a poça d’água. Olhava para qualquer lugar que não me trouxesse aqueles olhos. E por alguns bons minutos senti como se estivesse vivendo minha própria utopia. Um campo verde, uma criança correndo entre nós... e nós. 

Às vezes sinto que meu coração é feito de perfume. Engana o olfato da razão. Confunde os sentidos e envolve os pensamentos. Ele dá o “ar e aroma” da graça ao quê, na realidade, não passa de poeira inodora. Sabe agradar tanto quanto sabe enganar. 

Pouco depois, busquei um ponto para firmar minha atenção. Havia uma linha bem delicada, sempre pronta para arrebentar. O momento foi bom dentro do seu silêncio. E foi na ausência de som que compus a trilha sonora da tarde. Tudo o que eu gostaria de dizer ficou confinado dentro da cabeça. Não vou dizer que foi satisfatório. Mas foi bom. 

Às vezes sinto que meu coração é feito de calcário. Pesa tanto que obrigado meu corpo a se inclinar diante do amor. Pesa e não deixa que nada o invada. Ele quer invadir. Quer adentrar o peito dos outros como pedra que estoura o vidro da janela. Quer ser a rocha que cai do céu e cicatriza a terra sem empatia alguma. Seco, rústico, mal lapidado, bruto... E quente como uma lasca de magma. 

Quando já não havia mais nada a ser dito, desisti da fala e fui para os olhos. Os meus, no caso. Com as lentes da câmera focadas, deslizei os dedos pelo corpo da máquina e suavemente aumentei o zoom. Aquela pequena mão, talhada em madeira recém-nascida encontrou toda a firmeza na outra palma – que era firme como solo. Unidas, fizeram florescer a mais pura segurança... fruto do amor sem papel, sem fumaça, sem perfume e sem peso. Amor feito de gente. Amor, apenas. 

Às vezes sinto que meu coração é feito de carne. Pulsa como quem chora pelo peito que não amamenta mais. Vermelho como a ferida deixada pela decepção ou pelo joelho ralado no asfalto. Adoece com o tempo, assim como adoecem os corpos velhos, depois de anos e anos de vida compartilhada, retratos e netos. E netas. Sinto que meu coração segura o amor assim como aquela mão segurou a sua. Com a certeza de que só podemos enxergar o horizonte quando não tivermos mais a ilusão de alcançá-lo. Meu coração, aquele que deixou de bater e agora só toca. E um simples toque bastou. 

Valeu mais do que mil palavras. Mais do que mil imagens.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Recuo...

... quando sinto que me perdi durante o caminho. Não que seja minha meta sempre estar dentro de uma estrada ou ciente dos meus próprios passos, mas acabei ultrapassando certas linhas que não me trouxeram nada. E de “nada” já me basta o vácuo no peito.

Hoje, enquanto vinha para o serviço, lembrei de um velho amigo que tive. Ele já não faz mais parte da minha vida, ainda que esteja vivo. Talvez ainda leia meus textos... 

Era um garoto de olhos curiosos. Gostava de ouvir para depois mostrar que havia aprendido. Que já não estava mais “atrás” de ninguém. Não se conformava com o posto de retardatário. Precisa estar no páreo tanto quanto no pódio. 

Quando o conheci não houve surpresa alguma. Magro, braços longos, joelho ossudo e rosto que misturava infância com adolescência. Eu, vestido de arrogância. Ele, agasalhado com prepotência. Daí veio a conexão. 

Aos poucos fomos ganhando espaço um dentro do outro. Um dentro da rotina do outro. Dias e dias deitados no chão do quarto olhando para o teto e imaginando como seria uma turnê com nossa futura banda. Pensávamos nas exposições de estêncil que montaríamos e os dias fumando nas calçadas gringas. Andávamos por horas à procura de um sorvete. Não tentávamos abafar as mágoas um do outro... pelo contrário, jogávamos sal para que ardessem muito e depois cicatrizassem. Falando assim, ninguém jamais acreditaria que tal história existiu na vida real. 

Lembro-me do dia em que meus pais estavam brigando em casa e eu já não suportava mais os gritos. Ele me ligou e tinha acabado de discutir com a mãe. Decidimos sair. Na mochila, duas chapas de estêncial, um lata de tinta e o dinheiro da passagem de ônibus. Calça rasgada, camiseta feia e rua. Jamais esquecerei disso... corríamos pelos becos pixando as paredes e depois completamos a aventura com um saco de pipoca velha e extremamente salgada. 

Com o tempo, certos fatores estragaram tudo, mas isso não vem ao caso. Hoje dediquei estas linhas aos bons momentos que guardo comigo. Tão preciosos quanto o último abraço recebido em setembro de 2011. 

Eu nunca vou te esquecer, caro amigo. Uma tragada em sua homenagem.

domingo, 11 de novembro de 2012

Tempo o insuficiente

Fiz minha mãe chorar. Fiz com que ela visse em mim um abismo tão profundo que seus olhos, feridos pelas cataratas do tempo, cegaram-se antecipadamente. Ela tentava me alcançar de qualquer jeito, mas eu já estava distante demais. Nem mesmo o chamado do amor foi capaz de me fazer recuar. Saltei dentro de mim mesmo e quando percebi, estava colado ao chão. Inseparáveis... eu e o fundo do poço. Lá do fundo dos m(s)eus olhos.

Entrei na sala e percebi que ele me observara dos pés à cabeça. Sem fazer questão de ser discreto. Quando me aproximei para dizer "bom dia", senti que seus dentes rangiam tanto quanto os ponteiros do relógio no canto superior esquerdo do consultório. Depois de acomodado, ele apenas pediu que eu dissesse o que estava me deixando triste.

Dentro de mim, uma enorme onda de sentimentos e palavras começou a se formar. De longe, os pássaros da razão começaram a voar frenéticamente numa direção oposta a do tsunami. Minha mente se tornou praia deserta e a boca não conseguiu dar espaço para tanta água. Calei.

Segundos depois, a angústia me cobrou mais do que tinha a oferecer. Sem sal no rosto. O único sal que não arde os olhos. O sal das lágrimas. Sem sal e sem palavras, o que mais eu tinha a perder? Nada. Foi aí que comecei a falar.

Convidei-o para passear pelos labirintos da minha mente. Ele se achava treinado demais. Tentava construir novas passagens só com o olhar e a maldita caneta que não parava de tentar - inutilmente - desenhar mapas com as vias dos meus pensamentos. Não me censurava com as palavras. Fazia isso com o silêncio. Mas eu falei, e falei bastante. Falei bastante mentira. Jamais iria me revelar para um estranho, pior ainda se fosse um estranho que achasse mesmo ter acesso ao que sou no âmago.

Fiz questão de desafiá-lo. Acendi um cigarro e comecei ali uma batalha de pequenos gestos. Pediu para que eu falasse olhando em seus olhos. Não pediu para que eu cessasse a fumaça. Nada é mais irritante do que ver a pessoa provocada se esquivando com maestria da provocação. Pois bem, entendi o recado e apaguei o cigarro. Dessa vez foi ele que entendeu a afronta.

Pediu para que eu discorresse a respeito da infância. Contei dos meus devaneios, da vontade de ficar sozinho e de brincar apenas comigo mesmo. Tudo porque não suportava a falta de ordem e destreza das outras crianças, que quebravam os brinquedos e faziam movimentos bruscos. Não sabia  mover o punho do boneco para simular um soco. Não sabiam girar o corpo do soldado para que esse realizasse uma cambalhota. Por que eu iria brincar com eles se só serviam para quebrar a dança simétrica que dava graça à batalha? Eu era meu inimigo e herói. Eu decidia o final. E nem sempre o vilão era o derrotado.

Depois de abordar o tema "família", tentou recolher algum fragmento que justificasse aquela amargura. Amargura que exalava de mim desde o início da consulta. Falou do coração. Percebeu que ele estava mais soterrado do que o cinzeiro que me oferecera há poucos minutos. Não fiz questão de esconder. Disse que jamais amaria se o sentimento tivesse que atender a requisitos, fossem eles provenientes do destino ou de qualquer outra força invisível. Fui infantil ao ponto de deixar claro que preferia a solidão do que aceitar um amor morno. Foi então que ele teve a medida do quanto eu menti quando falei da época de criança. Eu nunca quis ser sozinho. Eu aprendi a ser sozinho.

Não se surpreendeu com minha aparência. Não achou nada de errado na minha dieta vegetariana. Drogas? Também não especulou muito. Apenas me alertou que elas só serviriam para me conduzir a um dos diagnósticos mais comuns de depressão profunda: tendência ao suicídio. Engoli suas perguntas e aos poucos me senti bem, pois foi baseado em mentiras que contei que o ego, sempre faminto, ganhou bons quilos. Cada farsa vestira no meu interior uma roupa de festa até então distante do meu orçamento e pior, distante do meu porte físico. Eu cabia em tudo, menos dentro de mim mesmo.

Horas se passaram até que ele finalmente chegou ao seu veredicto. Disse que não seria necessário uma série de encontros. Aquele bastava. Eu já me via sedento por explicações. Abandonei o personagem e todas as defesas. Queria ouvir daquele homem de meia idade, cabelos menos acinzentados do que seus olhos e rosto esculpido em marfim uma cura. Uma salvação ou qualquer coisa que tivesse valido o encontro forçado.

Fitou-me pela última vez e, com a voz fria de quem nada se surpreendeu, surpreendeu-me. Disse, sem rodeios: "Você precisa fazer apenas o que tem vontade de fazer, faça. Seja lá o que for, mas esteja ciente das consequências. Não há outra cura para o desejo, senão realizá-lo. E o seu mal, assim como o de todos os humanos de verdade, é querer."

Tempo insuficiente para que eu conhecesse o melhor psicólogo de todos: eu mesmo.


sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Nigrosina



O cigarro. Mais convidativo que a comida no prato. Era o restante de algo que já havia restado de outros restos, no canto da geladeira – que mais parecia uma gaveta de necrotério. Eu comia pra não sentir dor no estômago, mas ela, a úlcera, explodia da mesma forma. Minha vida patética de escritor só poderia durar o bastante para garantir algumas boas páginas escritas. Nelas, a desgraça de uma vida sem graça. Tão ordinária quanto essa falsa chuva que cai e não mata o maldito calor de verão. 

O livro seria sobre qualquer coisa. Não teria tema. Ou melhor, até tinha, só que ele não justificava a publicação nem mesmo a compra do publicado numa banca falida com cheiro de mijo e luz hepática. Eu estava escrevendo sobre o vício de escrever. Sobre a droga que havia se tornado a tinta da caneta e como o cheiro de papel envelhecido entorpecia minhas ideias. Era o placebo que eu tomava na fé de que fosse mais parecido com veneno do que com remédio diluído no café. Covarde demais para me matar, esperava que alguma força invisível tomasse coragem e fizesse o trabalho. Óbvio que era mais uma esquiva psicológica arquitetada por meus muitos Vinicius. 

Quem escreve é o Vinicius que abandonou a infância aos 3 anos. No dia em que caiu naquele buraco de barro, que viria a ser o futuro encanamento da minha humilde e imunda casa. Caí e lá fiquei. Parado e com medo de que o mundo fosse alto demais para que me aceitasse de volta em sua superfície. Sujo de terra, ralado e, acima de tudo, muito envergonhado. No buraco ficou a criança. Na superfície, a raiva. Foi aí que aprendi o quanto me matava sentir vergonha de mim mesmo. De todas as maldições, a pior delas se fantasiava de “eu” diante do espelho, rindo do que via. Rindo do reflexo pífio de que um dia havia sido o “Vinicius cheio de orgulho”. 

Com o tempo outros surgiram, alguns se fundiram e no final das contas me fiz em dois. Vinicius e Veny. O azedo e o distante. O depressivo e o agressivo. O sonolento e o autodestrutivo. Mas ambos insatisfeitos. Ambos teimosos e relutantes. Ambos desfocados e deslocados. Espectros no cotidiano daqueles que muito fingiam – e fingem - compreender tais entidades.  

Fui lendo muita coisa e aprendendo a me entender em cada fragmento de história. Não havia santo que deixasse de causar em mim a sensação de que ainda havia algo de bom dentro do meu corpo, mesmo com pulmões tingidos de cinza e sangue frequentemente adulterado. E quanto aos demônios? Bem... Todos eles sabiam meu nome, conheciam meu corpo e amaldiçoavam minhas conquistas. Eu os mantinha, pois precisava daquela culpa, da sensação de ser errado mesmo sem fazer nada. Os amaldiçoados são enfermos protegidos pela própria doença. Não morrem. Precisam viver eternamente para sofrer eternamente. Maldição é isso. Aprendi com os humanos. 

O cigarro continua queimando e eu não consigo tragar mais nada... A brisa cortou o apartamento antes mesmo que os vidros cortassem meus dedos. O copo caiu e eu pouco me importei. Dopado pelas frases, deixei que minha atenção continuasse imersa no eterno gozo da composição de parágrafos. Descia de leve a ponta da caneta pelas linhas retas e transformava aquela simetria em curvas úmidas de letras sugestivas. Qualquer palavra se fazia como tatuagem num corpo tímido e desajeitado. Escrevia para sentir os pulsos doendo. Sem cortá-los, sem fazer mais sujeira do que a vodka já havia feito. Por não exalar cheiro, deixei-a ali, marcando o carpete. Encerrando o porre. 

Mais música... sempre peço mais música a mim mesmo. Na adolescência, um dos Vinicius descobriu o peso das guitarras e sutileza pessimista do contrabaixo. Desde então, usou a música como trilha sonora do eterno seriado chamado “vida”. Não ouvia mais as pessoas no trem e ônibus. Encontrou paz num tipo diferente de silêncio. Aquele que se ouve e não se escuta. 

Enquanto terminava mais um capítulo, enxerguei antigos amores perdidos nos recortes e fotografias que a nostalgia havia feito questão de guardar. Abri minha própria caixa de Pandora e dela libertei os males do amor. Amor platônico, um Mefistófeles que habita o coração; Amor Possessivo, rei das moscas que Belzebu mandou para devorar a alegria; Amor Inseguro, travestido de Lilith; Amor Pagão, o Lúcifer que rejeitou as regras da casa, da mãe, do pai, da sociedade e saiu na rua de mãos dadas com Miguel, seu algoz...

 Assim que a inquietação me dominou e não mais sentira vontade de escrever, cheguei à conclusão que há poucos instantes havia fugido das minhas reflexões: agora sim consigo tragar outro cigarro.