terça-feira, 30 de outubro de 2018

Olhe pro chão

Meus joelhos viviam ralados na infância. Eu corria muito e não capotava. Porém, eu tropeçava demais enquanto andava. Isso porque eu não andava olhando pro chão: eu olhava pra frente, mirando o horizonte. Meu pai, que sempre implicou com tudo o que eu fazia, era quem saía comigo e já nos primeiros segundos de caminhada lançava um: "Olha pro chão, rapaz! Vai tropeçar e cair aí".

Eu abaixava a cabeça e olhava pra porra do chão. Não via muita coisa além do caminho de barro, asfalto, mais um teco de barro, asfalto, esgoto, barro, asfalto, pula a merda do cachorro, esgoto... O que mais me irritava era, primeiro, meu pai, depois o fato de ter que andar de cabeça baixa. Eu queria andar igual minha avó, mãe de meu pai, cabeça erguida, postura intacta, passos compassados. Só que com ele não tinha o que querer. Era andar olhando pro chão pra não levar xingão.

Uma vez, tinha saído com minha avó e falei pra ela que o pai vivia me dando bronca pra andar olhando pro chão porque dizia que eu iria cair se não olhasse e isso me irritava. Ela perguntou o porquê da irritação e eu disse que não queria andar de cabeça baixa porque parecia que os outros iam achar que eu estava com vergonha deles. Daí, minha avó, no auge de sua sabedoria, disse:

- Seu pai pediu pra você baixar os olhos, não a cabeça.

Nesse momento, tudo fez sentido. "Olha pro chão". Hoje, ando exatamente do jeito que - ambos - me ensinaram: cabeça erguida, visão baixa.

Por que resgatei essa lembrança? Porque hoje, enquanto conversava com um amigo querido sobre sentir que nós, enquanto povo, estamos andando para os lados e não para frente, pensei: tudo isso porque estamos mirando o horizonte sem prestar atenção em nossos passos e onde estamos pisando. Porque, ao mirar apenas o além, não conferimos sobre quais caminhos estamos andando. Consequentemente, passamos pela estrada dos outros - uma espécie de labirinto que nos impede de progredir. Gastamos nossas energias tentando resolver o problema que os outros criaram. Andamos de um lado pro outro.

A gente capota, levanta e acha que anda pra frente. Entretanto, na verdade, só estamos limpando os joelhos ralados e não olhando pra onde deveríamos realmente olhar.

Pra nossa caminhada.

sábado, 20 de outubro de 2018

Maria Zilda

A lembrança é o que nos faz sentir o presente e ver o futuro.

Maria Zilda, irmã de minha vó, logo, era minha mãe e tia, porque aqui era assim que a gente se sentia. A mais velha, rígida, ereta, esguia, com as frestas da cara talhadas na incansável força da mulher preta nordestina que quando estava imersa no cotidiano, segurava os cabelos com o turbante sempre perfeitamente amarrado - e quando descascava a manga com a faca cega, deixava o crespo reluzir no sol, mostrando pra ele quem é que raiava de verdade. Primeira vez que viajei para fora do quarteirão da minha vila, fui para Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Eu, minha mãe e meu irmão.

Descemos do ônibus num suposto terminal - que, na verdade, era só um ponto parado na beira de uma rua qualquer - e fomos encontrar tia Zilda no local combinado. Desencontros à parte, quando ela chegou, o alívio veio junto. O vestido florido, o turbante, a altura, os óculos gastos e a visão infalível de quem enxerga os outros pelo movimento - e não pela imagem estática - formavam a matriarca em nossa frente. Pagou-me um suco de goiaba naquele calor que parecia um abraço de saudades que já vem com todo o suor escorrido ao longo do longo caminho.

Em sua casa, o cheiro foi a primeira sensação a me dominar. Era cheiro de de quem não deixava um cômodo sem ser lustrado; um taco sem ser encerado; um móvel sem ser espanado. Tia Zilda, como a maioria das mulheres de minha família, ganhou a vida limpando a casa dos outros. Perdeu muito, só que ganhou comida, então, ganhou a vida. Em seu quarto, eu me encantei com as joias e as bonecas de porcelana extremamente perfumadas. Um Jesus ensanguentado nas paredes e o teto era varado pela luz que encontrava aconchego por entre as telhas. O quarto ela era tipo um universo: tinha começo, meio, alto, baixo, e fim. Fiquei lá por alguns bons minutos até ela me chamar pra tomar banho na bica.

O quintal dos fundos tinha um cano que servia de chuveiro pra gente se livrar do calor. Eu fiquei tímido no começo, mas depois não quis sair mais daquela cachoeira de PVC. Havia uma mangueira gigante aos fundos, com uma copa digna de fazer a maior sombra do terreno. Eu já imaginei o dia seguinte, debaixo dela, tranquilo, largado. Mas o dia seguinte não foi bem assim.

Tia Zilda precisava de frango, farinha e feijão preto. Minha mãe ficou encarregada de ir buscar. Subimos uma ladeira enorme, debaixo do sol e - eis aqui o motivo desse texto - uma música tocava em todos os comércios, sem parar, bem alto: "Beija-flor", do Timbalada. Pra mim, foi a trilha sonora do Rio de Janeiro, da quebrada de Duque de Caxias, onde eu cheguei pela primeira vez e por mais uma vez me senti em casa. Era rua, era calor, era gente falando alto, era bicho correndo entre as pessoas correndo, era subida, ladeira, era pico, lá em cima, era mercadinho, era farinha no saco - não na embalagem -, era galinha que minha mãe escolhia sem olhar nos olhos, era frango quando fosse pro prato, era feijão preto pago com moeda. A música entrou em mim como se dissesse: "você vai estar com 31 e ainda falará de mim". No caso, escrevi.

Tia Zilda fez o melhor pirão de todos e o feijão preto dela era só dela, não tem receita que aprenda a fazer como ela fazia. Tia Zilda, como eu te amo até hoje, a senhora sou eu também. Duque de Caxias sempre será a senhora e quando eu piso no Rio, peço sua bênção, assim como a de sua outra irmã, Josefina.

Ela me trouxe farinha quando veio me visitar aqui, em São Paulo, porque comida sempre foi uma forma da gente se conversar em minha família.

Porque o silêncio da fome era algo que a gente evitava com tudo o que tinha: frango, farinha e feijão.

Quando tinha.