domingo, 28 de setembro de 2014

Busca

Escrevo em busca de silêncio. Silêncio dentro do peito, no canto traseiro dos pensamentos. Silêncio absoluto. Transcrevo a voz muda que fala por mim quando eu canso de brincar de "eu" e não quero ser mais. Tento , então, anular-me a qualquer custo.

Bebo, fumo, escondo-me atrás da cortina da fumaça, mas meus pés sempre ficam visíveis. Escrevo. Frase após frase, palavra não dita seguida de palavra não dita, é difícil perceber que tudo se trata de silêncio? Só me deixe aqui, quieto com minha tristeza que sempre tem a palavra na ponta da língua.

Busco a música quando não ouço "eu te amo". É assim que me preencho com as melhores declarações e as piores conversas francas - daquelas que rasgam o peito com um simples abraço de "obrigado por sua amizade". Escuto o que os outros não aguentaram e cantaram. Absorvo demais (e talvez isso seja ruim) cada verso e cada acorde como se estivesse faminto. Falta na barriga da minha essência um bocado de coisas que não descem pela boca e sequer enfeitam o prato. É uma mordida de desejo que umedece os lábios, mas não traz colherada alguma. É querer por querer e pronto.

São buscas equivalentes a fugas. "Oi, como você está?", "Indo, e você?". Indo em busca de qualquer coisa que me distraia ou que me traga, numa puxada só, algo que queime e gaste. Uma passagem que me force a correr pelas veias do outro livremente. Um mal necessário. Talvez eu também busque ser o mal do outro, aquele drama maravilhoso que faz sofrer, mas tira do cotidiano/trabalho/contas/responsabilidades a relevância roubada. Aquele bom e velho drama que desmarca reuniões, não responde e-mail, sai correndo pra comprar a janta e tira o vinho da merda da geladeira - mania péssima de guardarem vinho na geladeira.

Busca. O anzol que a gente sonha em fisgar.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Valsa perdida



O par faltou. Ausentou-se da dança e do meu corpo. Fugiu da minha mão e a deixou girando sozinha no salão durante toda a valsa. Vagando, percebi só a mim, largado num facho de luz misericordiosa que ria satisfeita da minha solidão desengonçada.

O par de pés não se entendia. Entediavam-se ambos os cascos naquele chão liso de madeira morta. Manchado com o suor dos que haviam se encontrado na melodia. Dois para cá, dois para lá. Eu, ali. Mas me recusava a sair e deixar de ser o dançarino perdido. Eu fiquei sem esperança. Fiquei por teimosia, balançando apenas as poucas moedas que ainda sobravam no bolso e algumas lembranças que guizavam dentro do peito.

Pouco a pouco foi tomando meu ser aquela paz fúnebre dos que morrem em vida. Seco por fora, encharcado por dentro, ainda em movimento - tal qual os astros na escuridão do universo. Assim fui, embalado pelo doce cheiro de cigarros e perfumes girando em torno da minha órbita melancólica. Ninguém me via, mas de longe sabiam que o brilho ali presente entre meus olhos entreabertos anunciava o funeral distante de algo que um dia cintilou excessivamente. Como estrela, gastou-se em silêncio, estático, o iluminar de um querer sem fim. E que extinguiu-se em si - como tudo.

Era incapaz de lembrar dos nomes de tantos nomes que passaram por minha memória. Entretanto e tantos, ficava o toque como marca na pele. A pressão dos dedos e dos braços entre abraços, o peso do pulso no ombro e um leve desenhar de rosto com as costas da palma.

Durante a valsa perdida dos meus dias, senti - por insistência da vida contrariada - os outros a fundirem-se à minha silhueta.

E naquele salão imenso, era eu, o par de um, a se bastar. Vivendo a música das minhas verdades.

domingo, 7 de setembro de 2014

O primeiro dos últimos



Hoje foi o primeiro dia vivendo juntos. Agora ele dorme ao meu lado, exausto. Foram muitas horas dando cara de "lar" aos cômodos. Há poucas semanas eu não seria capaz de dizer que a mudança fosse acontecer. Nosso primeiro dia morando juntos...


Logo cedo

Dormi demais e cheguei atrasado na estação de trem. Ele não me olhava. Mantinha sua visão presa aos ponteiros do relógio. Sim, eu já havia entendo o recado: "não diga nada, apenas ande e prossiga como se tudo estivesse acontecendo de acordo com o planejado". Mas eu queria falar. Estava morrendo de vontade de conversar com ele. Então não me aguentei e soltei o verbo... Ele sorriu de leve, amanhecendo aos poucos diante de mim e quando reparamos o dia já era meio. Metade para cada um.

Enquanto o mundo passava feito filme pela janela do trem, minhas mãos cochilavam nas dele. Estávamos partindo para um novo lugar afastado de todo o passado. Não se tratava de fuga. Pelo contrário, queríamos encontrar algo verdadeiro. Algo que não tirasse de nós o mais básico dos direitos: o de ser. Depois de algumas boas horas, para o trem e correm as batidas dentro do peito. Chegamos.

Ela era tímida, coberta por folhas secas e pintada de branco. Um branco cansado de ser tão pálido e que tentava a todo custo parecer cinza. Foi paixão instantânea. Eu vi naquela casa um véu de silêncio que cobria de suavemente tudo o que buscamos juntos durante anos. Silêncio para que nossas juras fossem sussurradas.

A tarde chegava com seu laranja inconfundível. Encostei minha cabeça no ombro dele e baixei a guarde. Fiquei totalmente vulnerável. Nada mais me incomodava. Ele desenhava meu rosto com a ponta dos dedos e assoviava "Sea of Love". Olhávamos para o nada -  a utopia de nossas próprias existências - sem esperança alguma. Era tão bom... Era liberdade.

Do alto das sobrancelhas eu via o céu escuro dos seus cabelos a anoitecer minha ansiedade. Ali ficamos, deitados... Sem uma simples palavra... Eu o amo mais do que ele poderia imaginar.

O início do desconhecido. A cama sendo arrumada pelo desejo - cuidadosamente preparada para acordar bagunçada. O carinho tomando conta da sala, deixando as almofadas entre o sofá, já imaginando a chegada do par de corpos friorentos. E o amor. O amor não saiu de nós para ajudar na arrumação. Ele ficou no seu canto e aos poucos tomaria conta dos cheiros, cores, texturas, sons e o que mais estivesse ao seu alcance.

A vida não era nem de longe perfeita. Ela apenas se apresentava bem naquele momento. Como de costume, recebeu-nos de braços abertos dando as boas-vindas aos novos moradores. A vida, nosso lar. A casa que escolhemos e nos acolheu.

O primeiro dia para nós, os dois últimos.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Pés descalços na terra

A barra de seu vestido não chegava ao solo. Mas suas solas sim.

Olhava para baixo apreciando o par de pés descalços na terra, enraizando-se naquela superfície gelada e rígida. Tal qual olhar de mãe. Ambas se observavam, garota e mãe terra. Semente e semeadora. 

Ela não precisava mais correr. Havia alcançado a si mesma na crosta que acalentava as erupções em seu peito. O amor em magma escorria lentamente e não mais se petrificava como as palavras de adeus que nunca jorraram da boca do outro. Ela e a terra se entendiam silenciosamente. Tremiam juntas.  

Nenhum passo. Fincada, ficou. Bateu o pé esquerdo e disse para ninguém: sortuda são as árvores que caminham só em pensamento mesmo.  

Um belo dia

Um belo dia para incendiar a própria casa e ver tudo se desintegrar. Paredes, móveis, roupas, plantas, cadernos do primário, documentos importantes, fotos, fatos e lembranças.

Um belo dia para destruir. Para libertar o desejo pelo fim prematuro. Escutar a madeira estalando e se contorcendo, passiva.

Um belo dia para sentar diante do enorme paquiderme de concreto, indefeso e solitário. Eu, ali, observando tudo ruir, em silêncio absoluto. Captando apenas a essência flamejante do momento único. De longe, um belo dia.

Um belo dia para apreciar o telefone mudo a derreter. E com ele todas as vozes que insistiram durante anos em me tirar o sossego. Suas teclas virando uma massa uniforme de nada. Os números deixando de ter razão, coerência e significado. Sem toques por hoje. Hoje que, diga-se de passagem, não passa de um belo dia.

Um belo dia para espalhar o cheiro de fumaça no bairro. As pessoas saindo de suas respectivas moradias para observar a minha a partir. Choram, berram, tentam me levantar pelos braços, mas eu estou pesando toneladas. O alívio me fez ganhar todo o peso que antes pertencia apenas ao mundo. E meus ombros agora podem doer por conta própria. Encerrei meu papel de Atlas enquanto esse belo dia se recusa a acabar.

Um belo dia para acender o cigarro nas brasas do meu passado. Fumando vagarosamente a despedida forçosa dos anos mais escuros que já tive. E nada pode me abalar, afinal, as estruturas que me mantiveram por aqui agora não são nada mais do que entulho. Sim, um belo dia para aposentar o endereço.

Um belo dia pra perder o refúgio. Abrir mão do lar e do retorno. Mudar-se para o abandono. Rua - que tanto me ensinou e foi, por várias vezes, minha cama, meu sofá e meu quarto. Ela sim estará sempre ali para mim e para o meu par de tênis sujos. Um belo dia para se contentar apenas com a roupa do corpo e a calçada dos outros.

Um belo dia para lançar à fogueira muitas músicas que já não me lembro mais. Versos, refrões, acordes, raiva, ódio, raiva e ódio. As labaredas se tornam azuis. Fogo frio, que arde mais do que gelo seco. Lá estão todas as letras que tanto cantei até irritar os calos das cordas vocálicas. Um belo dia para ficar calado. E só observar.

Um belo dia, serei eu a queimar. Mas por hoje é só.

Basta.