Minha vida é o que escolhi para mim, e não o que escolhi ser. Não tive o privilégio de legislar sobre a constituição dos meus dias. Desde cedo precisei lidar com algo obscuro impregnado em minha essência. Os anos seguiram, e a guerra interior que destoava as atitudes do garoto calado cessou diante do acordo de paz entre bem e mal. Nenhum dos extremos abriu mão da própria natureza. Apenas admitiram a importância que um tem para o outro.
Há o mal em mim. Não sou o único hospedeiro de tal enfermidade moral. Porém, acredito ser um dos poucos que conseguiu aceitar a própria maldição sem crises. Na verdade, o que sempre me sufocou foi a impossibilidade de contar aos meus sentimentos sobre sua outra esfera. A escura.
Quantas vezes desejei o mal extremo dos inimigos e sorri com sua derrota. Ou simplesmente joguei com a vida de pessoas desinteressantes que queriam mais de mim do que eu mesmo poderia oferecer. Jogo de palavras, jogo de interesses, sentimentos simulados, cumplicidade por conveniência e puro egoísmo no lugar de amo verdadeiro. São estes estilhaços de mau caratismo (será mau caratismo mesmo?) que cortaram a alegria estúpida dos dias insuportavelmente inevitáveis pelos quais passei sem deixar rastro. Atuei com a maestria invejável. Às vezes é preciso fingir que se sente algo para, então, ser convincente. Para, então, perambular livremente pelos anos sem ser incomodado.
Olho ao meu redor e vejo tudo se decompondo. Depois que descobri, ainda bem pequeno, que tudo o vive está fadado a morrer, encantei-me pela finitude. Eu sabia que teria fim para tudo o e todos. Talvez, o único momento em que a igualdade se faz por completa. E então não me senti mais culpado por desejar a antecipação do fim alheio. Certas vezes desejei o minha própria morte e nunca senti nada tão confortante quanto isso. Saber que nem mesmo aquela maldita angústia de gelar as vísceras estava livre de se finar valia mais do que 30 moedas de prata.
Claro que conhecer parte da minha potencialidade desgraçada me obrigou a desenvolver um alto grau de controle. Há limites para tal força destrutiva. Não posso dizer que atingi o equilíbrio ideal, contudo desenvolvi certas "técnicas" eficazes quando se trata de não perder totalmente a sanidade e virar prisioneiro de si mesmo. O primeiro passo foi conversar com o demônio que habita em mim.
"Olhos de níquel
Ele me observava do canto da sala escura, apenas reluzindo o par de olhos prateados. Pele seca, pálida, unhas comidas, nu. Conhecíamos- nos desde sempre, ainda que nenhuma palavra tivesse sido trocada até então. Seu cheiro era muito familiar. O mesmo odor que untava minha pele nos momentos de ódio extremo - ou de desejo por vingança. Eu sabia o que ele queria: total controle sobre minhas ações. Ele também sabia o que eu desejava naquele momento - tudo o que nunca poderia ter sendo apenas uma pessoa comprometida com o "bem maior".
- Você me odeia?
- Sim.
- Eu não posso simplesmente deixá-lo livre dentro de mim. Você me destruiria.
- Não.
- O que tem feito todos esses anos?
- Sussurrado na sua nuca.
- Sim. Eu pude te ouvir. Na verdade, eu sempre te ouvi.
- E isso te angustiava, não? Ouvir aquilo que se quer ouvir e nada fazer.
- Foi difícil. Mas seguir os seus conselhos me custaria muito caro. Não posso pagar o preço.
- Eu entendo. É justamente por isso que eu estou aqui e você aí. Eu aqui e você humano.
- E o que você é?
- Seu álibi. Aquele que sempre levará a culpa por suas ações erradas.
- Eu deveria me sentir melhor por isso? Saber que você é responsável pelos danos que causei e causarei?
- Não sei. O que sei é que precisamos um do outro. Mesmo trancado, eu sinto o mundo através de você.
- E o que você sente a respeito do mundo?
- Desprezo. Essa existência embrionária na qual me encontro permite-me refletir muito sobre o que foi criado - e tudo o que faltou neste processo.
- Eu não queria sua passagem por esta realidade fosse tão limitada.
- Então me deixe sair um pouco. Ou melhor, abra as janelas desse quarto. Eu quero ver... Só me deixe ver.
- Não sei o porquê, mas sinto que quero fazer isso. Seria como tirar a corda do pescoço. Vá, veja com seus próprios olhos...
"
Depois, chegou a hora de colocar em prática o que nunca antes havia sido feito por mim. Não há navalha, marreta, chicote ou agulho que machuque mais do que as palavras. Elas abrem feridas que jamais serão fechadas, a menos que a memória se quime e leve consigo as páginas do passado. Caso contrário, irão devorar eternamente o fígado de Prometeu que existe em todos nós.
Após eu ter descoberto a traição, não tive muito escolha. Calei. Tornei-me incapaz de dizer qualquer coisa. Algo estava acontecendo dentro de mim. Eu queria sumir, no entanto sabia que era preciso construir outra lembrança daquela época. De preferência, uma que fosse esculpida em vingança.
Resolvemos conversar sobre o ocorrido.
- Você vai ficar me olhando assim? Com esses olhos opacos e metálicos?
- Eu preciso lhe falar algumas coisas. As últimas, prometo.
- Tudo bem, mas olha, não adianta ficarmos aqui remoendo o que já passou. Ou me desculpa de uma vez ou simplesmente seguimos nossos caminhos separadamente.
- Você está certo. Não vou remoer nada. Só queria pedir desculpas.
- Desculpas? Meu, não faz sentido e sinceramente? Não me faça ter pena de você. Não foi por alguém assim que me apaixonei.
- Não é nada disso. Peço desculpas por ter te enganado desde o começo.
- Como assim?
- Eu nunca te amei. Nunca gostei de você pra valer.
- Ah, sei... Olha, eu entendo que você esteja dizendo isso pra tentar recuperar a autoestima. Só que é besteira, não precisa agir assim.
- Estou falando sério.
- Se não gostou de mim então por que ficou comigo? Por que foi sempre doce e atencioso? Por que ficou triste e calado quando soube da traição? Porque beijou minha mão?
- Porque perdi algo importante para mim. E acredite, não se tratava de você.
- Ah, não? Então o que era?
- O alimento para meu ego.
- Por favor, que argumento patético. Mas se você prefere assim, não vou discutir.
- Não vai mesmo, agora você vai ouvir.
- Bom, como sei que essa definitivamente será nossa última conversa, então vá em frente... Desabafe, acho que assim pago minha ultima parcela de dívida e caminharei sem culpa. Crucifique-me, vá em frente.
- Eu nunca gostei de você. Primeiro porque é praticamente impossível se interessar por alguém tão simplório. Com toneladas de frases, pensamentos e justificadas retiradas de filmes e livros tão básicos quanto seu léxico. Fiquei com você porque meu corpo precisava de alguém, mas alguém que voltasse mais vezes e permanecesse ao meu lado por mais tempo. Necessitava de uma válvula de escape e como sei que seu grau de esclarecimento sentimental é primário tive que alimentá-lo com todas as porcarias doces que o livro de receitas do "amor" ensina a fazer. A traição nunca foi o problema, afinal, eu te traia a cada vagão de trem ou mesa de bar. Você nunca me teve. O problema foi não ter encontrado alguém melhor antes que você se tornasse inútil. Não pensava em você quando escrevia mensagens ou telefonava, pensava nas minhas vontades sendo atendidas. Não pensava em você quando estava bebendo ou me divertindo, apenas me lembrava de manter algum laço para que você você voltasse na hora certa. Não pensava em você quando escrevia - nem de longe - ou ouvia música. Pensava em você quando minhas prioridades físicas e egocêntricas clamavam por satisfação. Todo sofrimento após a descoberta da traição não passou de uma última tentativa de evitar o fim das minhas regalias. Você é uma pessoa qualquer, básica e rasa demais. E não estou te atacando, de maneira alguma. Apenas estou apresentando você para si mesmo. Entretanto, sei que sua estupidez escudeira irá protegê-lo de qualquer auto-reflexão.
- Hunf, terminou?
- Faz tempo.
Se as pessoas soubessem como realmente parecem dentro da minha cabeça, debaixo do meu peito, entenderiam o porquê do esforço que faço para fingir que sinto alguma coisa por elas.
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