domingo, 22 de abril de 2012

Corpo magro e botas sujas



Ano se passaram desde a última vez em que escrevi algo. As dores vieram e o corpo começou a cobrar pelos excessos. Foda-se.

O cenário não mudou. O deserto me persegue. Não me deixa pisar em grama verde ou afogar a cabeça no mar. A última carona me jogou no meio do nada. Era um cara com a metade do meu tamanho e o dobro da minha falta de educação. A carona não saiu de graça. Levei seu relógio.

O deserto não me surpreende mais. Você anda para frente e só vê mais chão. Se volta, nunca passa pelo mesmo local. As pegadas deixam de existir em poucos segundos. Seco e árido, ele é assim, não vai te abandonar tão facilmente. Deseja sua carcaça podre.

Restavam-me poucos cigarros e uns míseros goles de vodka. Bebida de terra fria que mais parece água de coco com diesel. Foi o que consegui tirar de um mercado qualquer, daqueles que não serve nem para ser roubado. Sentia fome e o pão estava no fim. Porra, eu estava no fim. Deixe o pão pra lá, ele não tem culpa de nada.

Foi então que avistei uma luz no meio das areais de ossos. Caminhei sem cuidado algum, afinal, já não tinha mais nada a perder. O que estou dizendo? Nunca tomei cuidado com nada nessa vida desgraçada. Avistei o corpo magro e as botas sujas. As botas sujas e o corpo magro também me avistaram. É assim que se conhece alguém: começando pelo pior.

Olhos claros, cabelos loiros, pele branca. Só podia ter sido abortado por algum demônio traiçoeiro. Aquela terra não lhe pertencia, nem mesmo o cheiro de morte que rasgava as narinas. Suas mãos eram delicadas e sabiam manejar a adaga com precisão. Cortou um pedaço de carne e me ofereceu. Eu já não tinha mais tempo nem paciência para romances baratos e seus joguinhos patéticos.

Enchi seu copo com bebida, peguei um cigarro e deixei que fosse aceso. Escolhi uma música e dancei durante toda a noite.

Deserto, estou de volta.

sábado, 21 de abril de 2012

Desapego

Por alguns instantes, fiz uma busca por tudo aquilo que me faz bem. Tudo o que parece me pertencer. São detalhes que conseguem reanimar minha mente. Até mesmo o corpo responde positivamente. Assim que fiquei diante de todas elas, imaginei como seria se desaparecessem. Ruína. Foi então que percebi a distância entre o que eu sou e o que eu preciso para ser o que sou. Desapego.

"Pensando alto, tão alto que pude desvendar o segredo por trás do céu. Não há nada, e por este motivo é que os pensamentos sobem até lá. Para se libertarem da mente. Desapego".

Páginas e páginas com explicações magníficas sobre o quão incompletos ainda somos. A constante pressão para que nossas mentes compensem anos e anos de preguiça, limitação, falta de interesse e baixa percepção do mundo real. Não adianta. Pelo menos comigo não adiantou.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Tristeza infinita 2

O Sempre. Aquele eterno retorno para um presente que se faz mais concreto do que qualquer passado. A vida traduzida na insistência. Resistência. Impertinência. Entre tantas outras formas de dizer “não” à desistência, o Sempre escraviza a existência. É preciso estar para relatar. A ausência torna-se mais rara do que a própria felicidade. E é neste momento que a tristeza ganha destaque.

Diante do poço que dá à alma sua profundidade, não se lança mais ao “nada” aquela esperança fugitiva, que aproveitou da inocência para se libertar. Por milhares de motivos, ninguém irá questionar seu encarceramento. A estadia dentro da caixa repugnante não deve ser colada em questão. Estamos falando da Esperança. A única capaz de combater essa melancolia sem nome. Falsidade para envenenar o coração e fazer com que este pulse mentira pelas veias. Os olhos, pulmões, rins e fígado agradecem. A dose diária de eufemismo amacia as palavras e então podemos dizer “felicidade” com a inverídica sensação de que sabemos do que se trata tal sentimento. Na miséria do próprio ser, a migalha de força alimenta o otimismo anêmico.

Infinita e maculada. Nunca negou sua própria ruína. Faz com que a carne doa. Faz com que a mente se perca no próprio labirinto. Destrói qualquer barreira que a razão venha a construir. Uma mordida tentada na maçã de Eris. Ela surge, repentinamente, e pede licença para entrar. Educada, conforta o coração com um abraço aleijado, sem realmente tocar o envolvido. Sopra em seus ouvidos as verdades ocultas. Não tem compromisso com a mentira, pois não quer ser esquecida. Quer ser lembrada, de tempos em tempos, como aquela parte amarga da verdade que sobrou no prato. Ninguém quis comer. Nem mesmo a fome. Nem mesmo a desgraça.

Penetra por debaixo na unha e paralisa as mãos. Tira de seu bolso um par de algemas e contempla os pulsos com o aço gélido. Impede o corte. Censura a navalha. Sufoca por não abrir passagem para que o desespero percorra a estrada do suicídio. Prisão perpétua que faz querer morrer todas as vezes que um novo dia começa. Um dia que começa morto. Um que nasce morto. Um dia natimorto. Já se sabe como vai ser, o quanto vai doer e qual o tamanho do tempo a sofrer.

O paladar abandona sua morada. Na boca, a secura. Legítima insuficiência da língua que, por tantas vezes, se consumiu. Saboreou a si mesma. Viciada no gosto da vaidade. De tanto lamber a mesma fonte, ficou estéril. Secou. Pariu o insípido. Agora lamenta, sem derramar uma lágrima. O sal já não é mais rei na superfície frígida da língua. Não cura feridas. Inútil.

A opacidade toma conta do velho castanho. Madeira seca trancafiada nos olhos. Não há brilho, nem esperança de chuva. Não há mais lodo ou musgo. Aridez predominante. O par, que antes compartilhava do mesmo resplandecer, já não dialoga mais. Ambos os olhos estavam separados por quilômetros de desgosto. Condenados a viver juntos, faziam vista grossa para tudo que surgia de benéfico. Evitavam qualquer expectativa. Apodreciam sem nenhum pudor, mesmo que suas raízes ainda estivessem fixas no solo irrigado de sangue. Ninguém quem ver a dor, nem mesmo os olhos. Preferem morrer em vida a viver a morte.

Infinita tristeza que se instalou no ser. Não permita nada, por favor. Acabe com toda a farsa e traga ao corpo cansado a bênção de Morfeu. Faça-o dormir. Pois nem a fome é capaz de interromper o sono dos condenados.

Infinita tristeza, não seja escrava do sempre. Se passar a insistir tanto, a semelhança com a vida imposta será inevitável. Acalente aqueles cuja pele se tornou invisível. Que tenham o direito de sofrer como qualquer pessoa.

Infinita tristeza, só você é capaz de transformar todos os humanos em seres iguais. Todos penam. Todos pagam. Todos são reduzidos ao nada que de fato são.

Infinita tristeza retire todos os privilégios que enaltecem o ego, pois vestiram a todos com títulos e sobrenomes pesados. É hora de sentir a leveza do não ser. É hora de não contar. Silêncio.

Infinita tristeza, não resista. Anule-se. Anule-me.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Filho, vai comprar pão

Filho, vai comprar pão

Domingo. Manhã fria e tempo chuvoso. Acordo, com as meias nos pés gelados e três blusas de moletom. Duas calças, touca e lábios rachados. Tem que acordar com 10 toneladas de sono nos olhos. Vermelhos e colados, eles me impedem de ver direito. Mas os ouvidos estão no talo. Mãe grita: “filho, vai comprar pão”. No ato, a memória desperta. Esperta, já me dá a letra. Pego as moedas e notas com durex sem contar. Três pãezinhos e um leite C. Bom dia.

No caminho, a pele treme. Roupa, tênis, luvas. Tudo em vão. O frio aqui no Burgo Paulista é cruel. Gela a ponta do nariz e castiga os pulmões. Desço a rua sem nada de novo. Calçadas quebradas, espalhando pedras por todos os cantos. Merda molhada pedindo pra ser pisada, bituca de cigarro, garrafas de Coca-Cola e pacote de Cheetos. Choveu e a sujeira que a gente escondeu voltou. Cobrou espaço, chamou os ratos, acabou com a frescura na calçada da Dona Ermínia, contaminou a pista, a frente da minha casa e da sua.

Silêncio predomina. Ninguém quer sair. Os amigos devem estar na frente da TV, com aquele copo de Toddy quente, algumas bolachas “água e sal” e a pancadaria entre o Tom e o Jerry. O dia começava assim. Começava primeiro para as crianças. A gente viajava sem hora para voltar. De pijama, alguns tinham o Super Nintendo pra se entreter. Eu e meu irmão não tínhamos nada disso, mas a gente conseguia se divertir. Comandos em Ação, X-Men e bola de futebol. Quem vai dizer que não? Sem aquele papo de “pobre coitado”, só se submete quem não entender que tem gente que vai em frente sem precisar de muito presente. O sorriso no nosso rosto não nasce do mesmo solo. Brota do concreto, do quintal sujo e das paredes da casa que descascam mais do que a cara dos que são o que são porque têm, mas não conseguem ir além.

Apertei o passo e virei a esquina. Faltava pouco para a padaria. Mão no bolso. Dinheiro seguro. Moeda até ficava molhada de suor. Mas não podia soltar nem perder nada. A mãe ficava bruxa de raiva e o que eu podia fazer? Dinheiro contado até o dia 15, quando o pai recebia seu salário de miséria. Mais de trinta anos em uma empresa, explorado e desanimado. O patriarca desistiu de lutar e gostou do gosto da derrota. Mas quem vai julgar um pai que não quis mudar de vida, pois achou que nesta linha era capaz de sustentar a família? Sempre tem alguém pra julgar. Eu, por exemplo, julguei. Mas a vida ensina a corrigir os próprios erros e, principalmente, saber que o “sim” de hoje pode ser o “não” de amanhã.

A fila estava longa. O cheiro do pão maltratava meu estômago vazio. Três pãezinhos e um leite C. Nunca soube contar o troco então confiava no caixa. Se desse errado, a mãe mandava voltar e eu tinha que ensaiar a fala cheia de vergonha, diante do cara que nem se quer sabia meu nome. Ele estava certo. Eu, errado. Tudo normal. Na volta do caminho, encontro meu amigo. Ele tá indo atrás do pão dele, e eu voltando com o meu. Cada um com o seu. O pão nosso de cada dia. Ninguém dá nada. Tem que ir comprar mesmo. Já acordei e os olhos não estão mais tão colados. Ele marca o futebol de hoje. Mesmo com frio, a bola não parava de rolar. Já logo lançou a ideia: “ó, vou escolher você pro meu time”. Só que eu não sou desses que já fecha sem nem saber do proceder. Grosso e perna de pau, esse daí só queria me explorar no time. Eu gritava “ladrão”, ele nem tinha noção, perdia a bola, acabava com o lance, tomava rolinho e deixava o time sem chance. O gol ficava menor. Nem, tô legal, prefiro tirar “dedos iguais” e decidir assim. Não tô falando de sorte, tô falando de postura.

Mãe pega o pacote e conta o troco. Tudo certo. Toddy tá no copo. Escolhe o pão, corta, passa a margarina, aperta as duas partes e morde. Casca dura que corta o céu da boca, fica mole com um gole do chocolate. Começa assim, mais um domingo de 1995.

Agora vai me dizer que infância não é coisa de gente grande?


Vai buscar o pão, acorda que o dinheiro já tá na mão

Aperta bem e não perde nada

Pra depois não pedir moeda pra quem não te olha na cara

Sua responsabilidade começa cedo

Com olho pesado e sono cabreiro

O estômago diz “bom dia, só que não”

Se você não levantar o irmão vai cobrar com razão

A mãe não vai até lá, nem é maldade ou preguiça

É a sina de quem leva a casa toda na espinha

Sem tempo pra prosa e fofoca no portão ou na padoca

Sabe como é, ouvido de vizinho tá colado na desgraça aqui dentro de casa

Então a gente muda o caminho, aperta o passo e fecha a cara

E faz o que tem que ser feito, pão com margarina corta o céu da boca, não tem jeito

Agradece pelo pão nosso de cada dia, nessa vida escassa que se acaba, renasce e continua na desgraça.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Eu não sei escrever

Não. Definitivamente, eu não sei.

E todas as expectativas vazias e mesquinhas que depositam sobre minha pessoa são apenas fichas se gastar com apostas. Investem na minha ruína. Os palpites são feitos diariamente e todas aquelas longos elogios apenas soam como o ranger das correntes prontas para serem presas aos meus calcanhares. Bola de ferro, gosto amargo, tempo retrocedendo, má respiração, falta de alimentação. Não, definitivamente não.

E o que é "escrever bem"?

Seduzir o leitor e fazer com que ele se sinta parte de algo importante? Aproximá-lo de uma realidade que nunca irá viver? Fazer com que a vida não passe de uma vitrine? Abordar as pessoas como se fossem animais de circo condenados à eterna alegria que causa loucura? Fazer chorar? fazer rir? Fazer ter medo? Não.

O que é escrever bem? E quem vai me dizer - com toda a certeza e experiência - que o que eu escrevi está realmente belo? Não tenho compromisso com o leitor. Ou melhor, não espero que este se torne um devoto fiel dependente das minhas palavras. Não há nada aqui para ninguém. E o motivo que me leva a escrever não precisa da compreensão dos outros.

Exatamente por isso que a escrita me intriga. É por isso que escrevo. Escrevo por não haver nada definido. Nem felicidade nem tristeza, nem esperança e nem revolta. Aqui estão palavras mudas, sem o tom de voz para ajudar na interpretação. Já não é mais meu texto, agora é seu, então julgue-o como seu e não meu.

Não quero esse fardo. Foda-se. Textos e mais textos que só se tornaram "obras" após alguém ter se apropriado de tais palavras e - oportunamente - "interpretou" seus significados. O seu texto depende de quem você aparenta ser para as pessoas. Depende de quem você conhece e dos olhos que vão se impressionar (ou se frustrar).

Eu não sei escrever e tenho consciência disso. Parei de me enganar, mas não posso parar as pessoas que querer ser enganadas. Elas buscam sentido no vazio que transbordou de mim. Querem me salvar valorizando o seco. Mas fazem isso por elas mesmas.

Nada como ser capaz de despejar o corpo imundo na cama e pensar "ajudei uma pessoa querida". De fato, ajudou. Injetou uma dose de heroína no próprio ego, este, por sua vez, imortal. Não há ruptura nem aprendizado, há um vício continuo que só gera gozo e vaidade. Para uns, o essencial.

Chego a ponto de admitir que a escrita é uma forma de expressão. Isso pode aniquilar tudo o que foi dito aqui. Ótimo. Há contradição. E também não há como negar o fato de que temos a necessidade de não nos expressarmos em determinados momentos. Passar o "nada" adiante. Um recipiente vazio que é acolhido por qualquer pessoa que precise encarcerar aquela velha Esperança, desgraça maior que escapou da caixa de Pandora. Faça o que quiser com meu texto, só não diga que eu sei escrever.

Não me conte nada sobre ele. Enquanto eu falar dos meus textos será assim. Todas os outros agrupamentos de orações e parágrafos são restos de exigências que devem ser atendidas. A liberdade não tem cheiro de grama molhada ou maresia. A liberdade é inodora. Assim como a morte.

E eu não sei escrever.