Queria lembrar do exato momento em que fui quebrado. Não vou dizer que "eu me quebrei" porque não é verdade. Veja, consigo me lembrar, ainda que vagamente, do menino alegre e carinhoso que eu fui. Silencioso também, tímido, mas nada disso mudava a forma pura e sutil de como eu sentia o mundo e as pessoas. A cena - para melhor descrever esse menino todo cheio de benquerer - é aquela em que uma criança dorme toda torta na cama, durante à tarde de sol, e as cortinas sopram ventos frescos pra tirar daquele pequeno corpo o calor de quarta-feira. Quem olha para ele, o menino, entende seu cansaço. É aquele cansaço bom, que só gente boa sente.
Em algum momento isso tudo se lascou. Nunca mais foi o mesmo. Mudou ou foi mudado. Mudou porque fui mudado. Alguma coisa se calou, só que ainda não consigo me recordar do exato momento. Bom, foram tantos. As tentativas de me quebrar começaram cedo. Então, desde manhã eu tive que entender o quão frágil era tudo aquilo que estava dentro de mim e eu sentia como se fosse explodir. Criança é isso... Mesmo sem tamanho, sente-se gigante.
Hoje, eu passei dos trinta anos e ainda não sei quando fui quebrado. O que eu sei mesmo é que a minha cabeça nunca mais foi a mesma. Ela se distanciou demais do corpo. Deitavam na mesma cama, todas as noites, sem se falar ou se tocar. Distantes, nos quilômetros que separam um travesseiro do outro. Ao levantar, diariamente, não conseguem nem se olhar. Quando se esbarram, buscam o desvio. O corpo culpa a mente pelo abandono e constante liberação de desgraças que afetam seu funcionamento. A mente culpa o corpo por dar a ela mais preocupações do que as que já tem. Ela se sente duplamente culpada - por ser quebrada e por quebrar o corpo. Às vezes, quando bebiam, parecia que melhorava a condição dos dois. Exageravam-se, abraçavam-se, tocavam-se, queimavam todas as energias reservas e, quando não sobrava mais nada, capotavam-se na mesma cama que demarcava onde um começava e o outro acabava.
Na manhã seguinte, não se tocava no assunto.
Talvez meu corpo proteja a mente ao não deixar que ela tenha recursos o bastante pra lembrar quando foi quebrada. Só que isso também é a causa de sua angustia. Olha, não é fácil a vida a dois, não. A mente também castiga o corpo quando o impede de sair de casa, do quarto, de si mesma. É como se tivesse o poder de transformar ele numa máquina que apenas repete movimentos. Um tira do outro si mesmo. Assim não dá. Fica impossível.
Pergunto eu para mim: será que foi naquela situação? Não, não foi tudo isso, não me abalaria tanto assim... E aquele outro dia? Aquela frase? A reação dele pode ter desencadeado isso, não? Acredito que não. O que eu não tive? O que me faltou? Será que foi isso que me quebrou? De repente, tiraram algo de mim muito cedo... Mas não lembro... O que me causava mais medo? Bom, eu tinha tantos... Medo de decepcionar as pessoas que eu admirava. Minha mãe, minha vó, meu pai, a primeira professora... Vivia tenso, tentando fazer tudo "certo". Eu me quebrei no momento que errei? Não. E quando eu acertei? Bom, eu ficava feliz, só não sei se era felicidade mesmo ou alívio. Nunca soube a diferença de um para o outro. Alívio só faz a gente trocar uma tensão por outra. Já a felicidade, não sei. Parando pra pensar aqui... Eu não sei o que é felicidade porque toda vez que acredito saber, encontro outro nome pra ela que faz mais sentido. Alívio ao invés de felicidade. Mas o que me quebrou? Será que o que foi quebrado era justamente a felicidade que eu nunca soube que tinha?
Aquilo de tentar rememorar os momentos bons pra combater a tristeza deve funcionar, sim. Não comigo, mas com outras pessoas. Das vezes que tentei, fiz apenas porque calculei ser uma forma de reagir às fissuras que me arranham por dentro. Tática. Racional demais eu - ou minha mente. Nunca deu certo porque quando eu recordava de algum momento "bom", sorria de leve e me dizia de prontidão: mas você vai morrer muito em breve. Esta frase retumbava - e ainda retumba - por todo o corpo, como notícia de separação. Divórcio da mente e do corpo. Cada canto meu se cala e encolhe como os filhos no quarto ao lado, recebendo a notícia pelas paredes. Nenhum criança gigante, nenhum sono tranquilo. As cortinas ainda dançam por causa da ventania da tempestade e parece que ela é a única que me entende mesmo. Acho que ela deve saber quando me quebrei. Quando me quebraram.
Há pouco conversava com um amigo. Parece que minha mente consegue dialogar com a dele. Questionei se existira alguma pessoa no mundo que entendesse o que é deitar ao lado de alguém, na escuridão, que pede apenas presença e silêncio - no máximo, a cabeça sobre o peito pra ouvir o coração batendo. Ele disse que talvez haja. Eu respondi que sinto a certeza de que não. Comecei essa conversa como uma despedida, mas terminei ela dizendo que iria escrever.
Escrever aos meus, que nunca tive.
domingo, 1 de dezembro de 2019
quinta-feira, 7 de novembro de 2019
Poeira e sangue
Quando a lua sangrou e nós dois tocamos a palma da mão um do outro, sabíamos que o pacto era maior do que o corpo poderia suportar. Veia com veia, trançados em vermelho - o traje perfeito para virar a esquina que nunca se quebra -, ouvimos um zunido a chamar, bem baixo e agudo, pelos nossos nomes. Era o chão que esquentava feito brasa e a poeira antes seca e sólida, sozinha nas nossas solas, tornou-se sal.
O que ambos os corações queriam era, na verdade, o suspiro da carne que, aliviada, tremia. Juntos, abrimos as pernas forçando os joelhos a se curvarem diante dos três caminhos que convergiam num só lugar: nossas nucas, as quinas do coco. Era por trás que Ele chegava com seu hálito macio de boca que sabe abocanhar e, ao invés de fazer gritar, obriga a gente a morder os lábios.
Da noite pro dia, dia de novo.
Tingia-se o céu de rubro-negro, amanhecia-se a madrugada com o calor matinal, aquele primeiro a pular as janelas pro mormaço abraçar. Sabíamos dos riscos.
Passamos quatro noites trancados no quarto, relendo cada palavra e sentindo o vibrar pelas cordas vocálicas como acordes sufocados de uma viola desafinada. A garganta seca, os olhos ardem, o corpo pela. Assim foi o tempo contido: um pedaço de vida dividindo o útero em quatro paredes cujo parto era anunciado toda vez que abríamos a porta e ela rangia de dor. Como nascer os dois? Como nascer em dois? A dúvida corroía e azedava a comida no prato. Como se lavar se nem nascemos pro mundo ainda? Era o suor que besuntava os pelos todos, fazia coçar, pedia pra arrancarmos na unha aquele tempero forte. Mas chorar ninguém chorava.
Enquanto lambíamos as feridas um do outro, repassávamos cada verso num ritmo diferente daquele que foi imposto pela escrita nas telhas do teto. Lá no alto, tudo corria. Aqui embaixo, tudo escorria. Quente.
Fora daquele cubículo, já sob o olhar da Lua ruge, nós fomos o vermelho no breu. Ritmados, era chegada a hora de mostrar como se faz. Como nós fizemos.
O estalar das mãos faz arder a pá do toque
Deixa vermelha a carne escondida debaixo da unha
Oferecemos o que temos: poeira e sangue
Oferecemos o que temos: poeira e sangue
Ninguém canta a canção do cavalo de brasa
Ninguém cavalga no lombo da noite
Ninguém dança sob a luz do sol azedo
Ninguém dança quando a lua faz sombra no céu vermelho
Só nós.
Trança os panos, amarra o buxo, corta aqui e ali
até ouvir o rachar da cuca
Não adianta correr, não adiantar apressar o passo
Atrás de nós, perde o fôlego o calcanhar
São três caminhos pro mesmo encalço
Ir. Voltar. Ficar.
A meia volta corrige o relógio que andava com o pé dos outros
Zero horas no par de Ós que juntos não são nada
Eu e você, no marco, na hora marcada, atrasamos o futuro e o passado
Nem mais um segundo presentes, damos ao mundo o que ele merece
Um par de nós.
Amarrados.
O que ambos os corações queriam era, na verdade, o suspiro da carne que, aliviada, tremia. Juntos, abrimos as pernas forçando os joelhos a se curvarem diante dos três caminhos que convergiam num só lugar: nossas nucas, as quinas do coco. Era por trás que Ele chegava com seu hálito macio de boca que sabe abocanhar e, ao invés de fazer gritar, obriga a gente a morder os lábios.
Da noite pro dia, dia de novo.
Tingia-se o céu de rubro-negro, amanhecia-se a madrugada com o calor matinal, aquele primeiro a pular as janelas pro mormaço abraçar. Sabíamos dos riscos.
Passamos quatro noites trancados no quarto, relendo cada palavra e sentindo o vibrar pelas cordas vocálicas como acordes sufocados de uma viola desafinada. A garganta seca, os olhos ardem, o corpo pela. Assim foi o tempo contido: um pedaço de vida dividindo o útero em quatro paredes cujo parto era anunciado toda vez que abríamos a porta e ela rangia de dor. Como nascer os dois? Como nascer em dois? A dúvida corroía e azedava a comida no prato. Como se lavar se nem nascemos pro mundo ainda? Era o suor que besuntava os pelos todos, fazia coçar, pedia pra arrancarmos na unha aquele tempero forte. Mas chorar ninguém chorava.
Enquanto lambíamos as feridas um do outro, repassávamos cada verso num ritmo diferente daquele que foi imposto pela escrita nas telhas do teto. Lá no alto, tudo corria. Aqui embaixo, tudo escorria. Quente.
Fora daquele cubículo, já sob o olhar da Lua ruge, nós fomos o vermelho no breu. Ritmados, era chegada a hora de mostrar como se faz. Como nós fizemos.
O estalar das mãos faz arder a pá do toque
Deixa vermelha a carne escondida debaixo da unha
Oferecemos o que temos: poeira e sangue
Oferecemos o que temos: poeira e sangue
Ninguém canta a canção do cavalo de brasa
Ninguém cavalga no lombo da noite
Ninguém dança sob a luz do sol azedo
Ninguém dança quando a lua faz sombra no céu vermelho
Só nós.
Trança os panos, amarra o buxo, corta aqui e ali
até ouvir o rachar da cuca
Não adianta correr, não adiantar apressar o passo
Atrás de nós, perde o fôlego o calcanhar
São três caminhos pro mesmo encalço
Ir. Voltar. Ficar.
A meia volta corrige o relógio que andava com o pé dos outros
Zero horas no par de Ós que juntos não são nada
Eu e você, no marco, na hora marcada, atrasamos o futuro e o passado
Nem mais um segundo presentes, damos ao mundo o que ele merece
Um par de nós.
Amarrados.
domingo, 27 de outubro de 2019
Como eu te achei
Não sei. De verdade, não sei como te achei ou se fui achado. Se eu sentasse na mesa de um boteco e fosse contar pra quem quisesse ouvir como que te conheci, teria de mentir. Não é falta de memória, muito menos pouca importância. A questão é que eu não sei como te achei porque não fui buscar você lá nos confins de qualquer lugar, muito menos esperar sentado pra confirmar o que minhas amigas sempre disseram - "uma hora, quando você menos esperar, ele vai aparecer pra te conquistar". Eu me sentia como uma terra esperando pelo colono, sem maldade... Não era pra ser assim. Nem foi, viu?
Longe de mim pisar em solo distante com essa intenção. Gosto é do perto, aquele ali, logo ali, na esquina, na beira do quarteirão, da rua com nome de número, que me olha de rabo de olho e parece dizer tudo o que eu quero ouvir, mas quem ouve com os olhos? Eu ouço é com os ouvidos e você, ele, eles, nunca me disseram nada. Ainda que eu tivesse certeza do que escutaria, eles juntos não valem um sozinho - o que dizem por aí, só que o que a gente sente por aqui... é outra fita.
Lá, onde pela escrita eu desejo chegar, é onde você está. No frio da borda do oceano, com margem de dois dedos, é onde vou te procurar. Pode estar com amigas, amigos, ex-maridos, qualquer coisa que venha a te, momentaneamente, complementar. Não é problema meu - mas eu ajo como se fosse. O que é meu é você e o que é nosso não é à toa. Aqui, contigo, nesse espaço vazio, eu não prego a segurança que não tenho. Óbvio que me incomoda ver teu sorriso dando ritmo pra conversa fiada sem nota(r) que tá tentando achar o tom há tempos perdido. Só que você me sabe, você acha que me conhece por inteiro, mas quando eu me dei por completo nos seus lençóis, você que se dobrou pra me dobrar. Se conseguiu ou não, é essa dúvida que nos move um até o outro. Até hoje.
Não vivo de palavras, não sou traça, e se for parar pra te contar tudo o que bate aqui na nave do meu pensar, porra... Sei lá onde a gente vai parar. É engraçado como eu odeio rimas, mas elas vêm sem eu chamar. Quando eu vejo, tão aqui, de parzinho, desenhando qualquer rabisco tosco, sozinho, que quando destacado pela atenção de quem ainda se presta a acompanhar, mente na cara larga que tá dizendo tudinho. Não diz, guarda parte pra depois, quando finalmente um for dois. A maldita rima, inevitável como dois mais dois ainda são: nós pra depois.
Eu te achei. Peguei pela raiz. Você queria carinho, eu queria acariciar. Cominho com almíscar. Quando teu couro cansado pediu cafuné, era eu que tava ali pra dar, tipo daninho, alastrando - onde der, nóis tá. Com as pontas das unhas, semeei na sua cabeça o carinho que eu sempre tive pra lavrar, mas não achei alguém fértil o bastante pra me mostrar o caminho. Daí eu fui, ali, no meio dos seus grisalhos, até que tudo se emaranhou: meu cuidado com seu descaso; seu descaso com meu apreço; meu apreço com seu relaxo; seu relaxo com meu cuidado; meu cuidado com seu abraço; sei abraço com meu tremor; meu tremor com seu mormaço; seu mormaço com meu sabor; meu sabor com seu desejo; seu desejo com meu receio; meu receio com seu compasso; seu compasso com meu amor.
Quando escrevo sobre nós, o que ponho nas linhas é a arte de se trançar, cruzar, atar, plantar, manter na garganta a única nota capaz de desafinar as cordas vocais. Como se fosse aquela noz difícil de descascar e, em seguida, engolir.
Eu entalo, faço caroço do que é nosso, finjo que concordo com a falsa premissa de que nossa semente não dá frutos. Nós, na garganta, somos o caminho que as palavras não ditas fazem para chegar até o chão do peito. Solo pra se criar, mas a dois, é melhor de cultivar.
Foi assim que eu te achei: quando procurei nós, na garganta.
Longe de mim pisar em solo distante com essa intenção. Gosto é do perto, aquele ali, logo ali, na esquina, na beira do quarteirão, da rua com nome de número, que me olha de rabo de olho e parece dizer tudo o que eu quero ouvir, mas quem ouve com os olhos? Eu ouço é com os ouvidos e você, ele, eles, nunca me disseram nada. Ainda que eu tivesse certeza do que escutaria, eles juntos não valem um sozinho - o que dizem por aí, só que o que a gente sente por aqui... é outra fita.
Lá, onde pela escrita eu desejo chegar, é onde você está. No frio da borda do oceano, com margem de dois dedos, é onde vou te procurar. Pode estar com amigas, amigos, ex-maridos, qualquer coisa que venha a te, momentaneamente, complementar. Não é problema meu - mas eu ajo como se fosse. O que é meu é você e o que é nosso não é à toa. Aqui, contigo, nesse espaço vazio, eu não prego a segurança que não tenho. Óbvio que me incomoda ver teu sorriso dando ritmo pra conversa fiada sem nota(r) que tá tentando achar o tom há tempos perdido. Só que você me sabe, você acha que me conhece por inteiro, mas quando eu me dei por completo nos seus lençóis, você que se dobrou pra me dobrar. Se conseguiu ou não, é essa dúvida que nos move um até o outro. Até hoje.
Não vivo de palavras, não sou traça, e se for parar pra te contar tudo o que bate aqui na nave do meu pensar, porra... Sei lá onde a gente vai parar. É engraçado como eu odeio rimas, mas elas vêm sem eu chamar. Quando eu vejo, tão aqui, de parzinho, desenhando qualquer rabisco tosco, sozinho, que quando destacado pela atenção de quem ainda se presta a acompanhar, mente na cara larga que tá dizendo tudinho. Não diz, guarda parte pra depois, quando finalmente um for dois. A maldita rima, inevitável como dois mais dois ainda são: nós pra depois.
Eu te achei. Peguei pela raiz. Você queria carinho, eu queria acariciar. Cominho com almíscar. Quando teu couro cansado pediu cafuné, era eu que tava ali pra dar, tipo daninho, alastrando - onde der, nóis tá. Com as pontas das unhas, semeei na sua cabeça o carinho que eu sempre tive pra lavrar, mas não achei alguém fértil o bastante pra me mostrar o caminho. Daí eu fui, ali, no meio dos seus grisalhos, até que tudo se emaranhou: meu cuidado com seu descaso; seu descaso com meu apreço; meu apreço com seu relaxo; seu relaxo com meu cuidado; meu cuidado com seu abraço; sei abraço com meu tremor; meu tremor com seu mormaço; seu mormaço com meu sabor; meu sabor com seu desejo; seu desejo com meu receio; meu receio com seu compasso; seu compasso com meu amor.
Quando escrevo sobre nós, o que ponho nas linhas é a arte de se trançar, cruzar, atar, plantar, manter na garganta a única nota capaz de desafinar as cordas vocais. Como se fosse aquela noz difícil de descascar e, em seguida, engolir.
Eu entalo, faço caroço do que é nosso, finjo que concordo com a falsa premissa de que nossa semente não dá frutos. Nós, na garganta, somos o caminho que as palavras não ditas fazem para chegar até o chão do peito. Solo pra se criar, mas a dois, é melhor de cultivar.
Foi assim que eu te achei: quando procurei nós, na garganta.
segunda-feira, 21 de outubro de 2019
Linha do tempo
Sente-se ao meu lado, em silêncio. Sinta o peso dos meus ombros. Saiba que são firmes, podem suportar o fardo que avoluma seu coração. Apenas se mantenha em silêncio e sinta, com eu sinto muito, minha presença. É exatamente assim que iremos compor o melhor dos nossos retratos. Ao meu lado, eu e você somos peso e silêncio, as excelências do amor, duas agulhas a costurar o que chamamos de intimidade.
Pelas sutis vias do tempo, pude aprender mais sobre as linhas todas que emaranham meu senso de mundo. Isso nunca foi segredo. Esta minha desconexão com o barulho lá fora não era por acaso. Nasci sem chorar, calado, como já havia lhe contado antes. Meu recado foi pontual: nada aqui me soa novo. Nada aqui me impressiona. Não me emociono porque esperam que eu me emocione. Não havia intimidade alguma nem mesmo com minha mãe. Fio por fio, embaraço por embaraço, aprendi a amar meus nós – seja lá o que amor signifique neste contexto. Talvez, respeito, cuidado, os dois, trançados. É uma relação muito próxima esta de, silenciosamente, tocar as linhas que desenham nossa cabeça, não? Os erros do passado roubaram as minhas, eu preciso confessar. Porém, quando sonho, as vejo novamente no devido lugar, volumosas e secas feito a poeira em minhas veias. Fio por fio, na cabeça.
O tempo e suas vias sutis... sim. Aquele firmamento de linhas, aquele chumaço que pesa e não faz barulho algum. Quando toquei suas raízes, buscava o fruto quente. Lá, acreditei que seria possível tecer a cesta pra sua abundância e deixar os caroços pra nossa terra fértil no fundo do quintal. De fato, encontrei.
Estamos juntos, envelhecendo juntos, aqui, sentados nesta sacada vendo a promessas do amanhã parecer previsível e desinteressante. Não se trata de beleza nesta constatação, nem romantismo, muito menos angústia ou desgosto. Odeio esta mania morna de precisar sentir tudo sob medida. Há espaço para este tipo de interpretação deste momento nosso, sentados um ao lado do outro? Aqui, não.
Estamos envelhecendo juntos e o tempo, vestido de ampulheta, esvazia a laje pra encher o chão. O que há são as linhas marcando nossas expressões todas e cada uma delas conta, secretamente para mim e para você, nossos momentos de intimidade. Momentos em que você se ateve a mim e eu me atei a você.
Por isso te peço, aqui, que fique em silêncio, ao meu lado, e sinta a presença de quem lhe é abrigo, onde as linhas jamais te prenderam, pelo contrário, ensinaram-lhe o caminho de volta - de volta para a intimidade, onde os ombros inabaláveis te aguardam.
Dentro de minha casa, as linhas do tempo formam um círculo, não uma reta. Você volta porque nós ficamos.
Pelas sutis vias do tempo, pude aprender mais sobre as linhas todas que emaranham meu senso de mundo. Isso nunca foi segredo. Esta minha desconexão com o barulho lá fora não era por acaso. Nasci sem chorar, calado, como já havia lhe contado antes. Meu recado foi pontual: nada aqui me soa novo. Nada aqui me impressiona. Não me emociono porque esperam que eu me emocione. Não havia intimidade alguma nem mesmo com minha mãe. Fio por fio, embaraço por embaraço, aprendi a amar meus nós – seja lá o que amor signifique neste contexto. Talvez, respeito, cuidado, os dois, trançados. É uma relação muito próxima esta de, silenciosamente, tocar as linhas que desenham nossa cabeça, não? Os erros do passado roubaram as minhas, eu preciso confessar. Porém, quando sonho, as vejo novamente no devido lugar, volumosas e secas feito a poeira em minhas veias. Fio por fio, na cabeça.
O tempo e suas vias sutis... sim. Aquele firmamento de linhas, aquele chumaço que pesa e não faz barulho algum. Quando toquei suas raízes, buscava o fruto quente. Lá, acreditei que seria possível tecer a cesta pra sua abundância e deixar os caroços pra nossa terra fértil no fundo do quintal. De fato, encontrei.
Estamos juntos, envelhecendo juntos, aqui, sentados nesta sacada vendo a promessas do amanhã parecer previsível e desinteressante. Não se trata de beleza nesta constatação, nem romantismo, muito menos angústia ou desgosto. Odeio esta mania morna de precisar sentir tudo sob medida. Há espaço para este tipo de interpretação deste momento nosso, sentados um ao lado do outro? Aqui, não.
Estamos envelhecendo juntos e o tempo, vestido de ampulheta, esvazia a laje pra encher o chão. O que há são as linhas marcando nossas expressões todas e cada uma delas conta, secretamente para mim e para você, nossos momentos de intimidade. Momentos em que você se ateve a mim e eu me atei a você.
Por isso te peço, aqui, que fique em silêncio, ao meu lado, e sinta a presença de quem lhe é abrigo, onde as linhas jamais te prenderam, pelo contrário, ensinaram-lhe o caminho de volta - de volta para a intimidade, onde os ombros inabaláveis te aguardam.
Dentro de minha casa, as linhas do tempo formam um círculo, não uma reta. Você volta porque nós ficamos.
segunda-feira, 14 de outubro de 2019
É amor, o próprio
Este caminho desconhecido por onde passo tá me custando mais que saúde mental. É físico também, tipo aquele calor gelado, aquele suor que refresca o fogo sobre e sob a pele. Falei pra você dia desses aí que queria tudo, do começo ao fim, do brega ao sofisticado, do comum ao único. Direito meu, tá ligado? Nunca cheguei tão perto disso que geral sempre chamou de amor e agora que tô, dá licença aqui. Vem você, comigo de leve, mostra como que faz que eu faço, por nós dois, mas por mim, principalmente. Não é egoísmo, não, certo?
É amor, o próprio, o certo.
Aquele papo de se complementar, metade do outro, todo nosso, tudo nosso, um no outro, os dois ali, deitados, deixando o tempo livre pra passar... Aquele papo faz todo sentido memo, porque quando você vem de bicão, eu tô suavinho feito sopro no joelho ralado. Não achei que fosse assim, afinal, nunca fui de chaleirar ninguém, mas se eu te tratar como todo mundo, você não será o lugar onde quero ficar - só mais um pico pra colar, fazer a social, dar um salve e nunca mais responder os "e aí, vamo se reencontrar?"
Daí eu te trato de um jeito especial, pra você sempre ter vontade de voltar. Tiro aquele teco de papel, passo a língua de leve e deixo no rastro da saliva a letra pra tu retornar. Endereço é fita séria, porque traça o caminho até onde a gente chama de lar e guarda o doce lá, no pote onde tem que ficar na ponte dos pés pra pegar. Difícil, viu? Por isso que pra chegar tem que saber chegar. Então fica de vez, vai... meu eterno retorno.
Quando a conversa cai no mais do mesmo, eu troco o disco e te mando música nova. Tranquilo, ouço você reclamar de tudo, finjo que não tenho o que dizer pra te fazer enxergar que é tudo fase, que o vai e vem do destino só não é mais evidente que a vontade que eu tenho de beijar sua boca e esparramar os lábios pela cara toda enquanto você fica sem saber se desiste e deixa lambuzar ou insiste e continua a lamentar. Finjo, mas é sem maldade. No fundo, eu gosto de te ver desenrolar comigo sobre os problemas que te atormentam. É nessas horas que eu me sinto remédio, carinho, cuidado, solução pro dia de cão, aquele cafuné de virar as ideias feito lata.
Eu te quero bem, meu bem, mesmo quando tá ruim aí, e não forço a mudar o humor, não. Só te mostro que quando tudo melhorar, já sabe onde comemorar. Se ficar mais pesado, corre aqui e desaba. Pega nada, você já ficou caidinho por mim uma vez, agora é só fechar os olhos de mel que eu vou te segurar. Lá de cima a gente brilha mais forte e você fica tão bonito quando tá altinho, pique estelar. Boto fé que logo mais é a gente junto, dançando de testa colada, seguindo o ritmo um do outro, sem medo de se estatelar.
"Quem diria, hein? Você tá mudado, hein? Ele mexeu contigo mesmo, hein? Tá pego, hein?
É aquele bonito que tava na foto com você?"
É quente, o próprio, o amor.
É amor, o próprio, o certo.
Aquele papo de se complementar, metade do outro, todo nosso, tudo nosso, um no outro, os dois ali, deitados, deixando o tempo livre pra passar... Aquele papo faz todo sentido memo, porque quando você vem de bicão, eu tô suavinho feito sopro no joelho ralado. Não achei que fosse assim, afinal, nunca fui de chaleirar ninguém, mas se eu te tratar como todo mundo, você não será o lugar onde quero ficar - só mais um pico pra colar, fazer a social, dar um salve e nunca mais responder os "e aí, vamo se reencontrar?"
Daí eu te trato de um jeito especial, pra você sempre ter vontade de voltar. Tiro aquele teco de papel, passo a língua de leve e deixo no rastro da saliva a letra pra tu retornar. Endereço é fita séria, porque traça o caminho até onde a gente chama de lar e guarda o doce lá, no pote onde tem que ficar na ponte dos pés pra pegar. Difícil, viu? Por isso que pra chegar tem que saber chegar. Então fica de vez, vai... meu eterno retorno.
Quando a conversa cai no mais do mesmo, eu troco o disco e te mando música nova. Tranquilo, ouço você reclamar de tudo, finjo que não tenho o que dizer pra te fazer enxergar que é tudo fase, que o vai e vem do destino só não é mais evidente que a vontade que eu tenho de beijar sua boca e esparramar os lábios pela cara toda enquanto você fica sem saber se desiste e deixa lambuzar ou insiste e continua a lamentar. Finjo, mas é sem maldade. No fundo, eu gosto de te ver desenrolar comigo sobre os problemas que te atormentam. É nessas horas que eu me sinto remédio, carinho, cuidado, solução pro dia de cão, aquele cafuné de virar as ideias feito lata.
Eu te quero bem, meu bem, mesmo quando tá ruim aí, e não forço a mudar o humor, não. Só te mostro que quando tudo melhorar, já sabe onde comemorar. Se ficar mais pesado, corre aqui e desaba. Pega nada, você já ficou caidinho por mim uma vez, agora é só fechar os olhos de mel que eu vou te segurar. Lá de cima a gente brilha mais forte e você fica tão bonito quando tá altinho, pique estelar. Boto fé que logo mais é a gente junto, dançando de testa colada, seguindo o ritmo um do outro, sem medo de se estatelar.
"Quem diria, hein? Você tá mudado, hein? Ele mexeu contigo mesmo, hein? Tá pego, hein?
É aquele bonito que tava na foto com você?"
É quente, o próprio, o amor.
terça-feira, 1 de outubro de 2019
Odor
Você me usou. Negou por muito tempo, mas sabe, lá no fundo que me usou. Quando nos aproximamos, eu soprei meu desejo levemente para que não irritasse seu nariz, mas ainda assim se fizesse perceber o que queria. Você havia me farejado de longe, eu sei porque seus olhos me viram de longe, bem longe, num lugar onde meu cheiro nem sequer chegava. De lá, observou-me. Daí não teve mais jeito. Usou-me como fragrância nova que parece vestir a gente com um fino véu, daqueles que se desenham pelo ar, num lento ritual de sedução. Pros outros, borrifava meu nome como se este embalsamasse tuas frases curtas e eufóricas.
Atrás das suas orelhas, no pescoço, um pouco perto do rosto, sobre seu peito, raspando nas axilas, por entre os dedos, laçando os pulsos. Quando você me teve, não economizou uma gota do que eu te ofereci. Passou-me por todo o corpo, quis, com a pele, cheirar à flor da minha, macia, prestes a se esparramar pelo ar que vinha da janela aberta. Exalando calor por entre os poros, quando me prendeu com seus braços, perfumou-se de mim, ali, e deixou minha boca cheia de água e a cama de cheiro.
Umas das principais características desse meu querer com notas de negação é a capacidade de confundir o olfato. No fundo, sabia bem como tudo iria acabar, só que quis pagar o preço. Eu me ofereci ao seu olfato, revelei a essência traiçoeira pelo som do chocalho na ponta da língua. Fiz porque quis mesmo. Porque o desafio vale a frustração. queria você e tive. Pequeno, tão pequeno, acostumado com o mesmo odor do seu quarto decadente, bagunçado, jogado às traças. Apertados, eu e você, ficamos os dois pela madrugada, dividindo a cama de solteiro como casal. Nos menores olfatos estão os piores perfumes - os que têm aroma de essência. Cheiram a si mesmos, mas quando tocam a pele do outro revelam uma olência única. Aquela traiçoeira.
Você me usou e aqui, agora, eu sou só dor. Prevista, conhecida, manjada, já de casa, a dor ainda dói, mesmo assim, mesmo abrindo a geladeira sem pedir licença. Ela dói demais e a lembrança, sua amante, vem junto perguntar o que tem pro almoço. As duas, dentro de mim, da minha casa, sufocando o pouco espaço, inodoras, falando de você. Eu não queria saber de você. Há meses não recebia notícia qualquer, mas elas duas vieram, a dor e a lembrança, atrás de mim por causa de você, ou melhor, por causa de nós.
Lavei as mãos com bálsamo, respinguei a água na pia, sem pressa. Virei-me e olhei diretamente para elas. Com seus pratos vazios, sem um farelo pra contar história, a dor e a lembrança me contaram de você. Disseram que estava bem, com uma garota apaixonada, planejando o futuro, sem tocar no meu nome. Perguntei a elas, a dor a e lembrança, se nada de mim havia ficado nele.
- Se nem a dor nem a lembrança estão lá, onde não estou, onde ele está, então, o que restou?
- Odor.
Odor.
Atrás das suas orelhas, no pescoço, um pouco perto do rosto, sobre seu peito, raspando nas axilas, por entre os dedos, laçando os pulsos. Quando você me teve, não economizou uma gota do que eu te ofereci. Passou-me por todo o corpo, quis, com a pele, cheirar à flor da minha, macia, prestes a se esparramar pelo ar que vinha da janela aberta. Exalando calor por entre os poros, quando me prendeu com seus braços, perfumou-se de mim, ali, e deixou minha boca cheia de água e a cama de cheiro.
Umas das principais características desse meu querer com notas de negação é a capacidade de confundir o olfato. No fundo, sabia bem como tudo iria acabar, só que quis pagar o preço. Eu me ofereci ao seu olfato, revelei a essência traiçoeira pelo som do chocalho na ponta da língua. Fiz porque quis mesmo. Porque o desafio vale a frustração. queria você e tive. Pequeno, tão pequeno, acostumado com o mesmo odor do seu quarto decadente, bagunçado, jogado às traças. Apertados, eu e você, ficamos os dois pela madrugada, dividindo a cama de solteiro como casal. Nos menores olfatos estão os piores perfumes - os que têm aroma de essência. Cheiram a si mesmos, mas quando tocam a pele do outro revelam uma olência única. Aquela traiçoeira.
Você me usou e aqui, agora, eu sou só dor. Prevista, conhecida, manjada, já de casa, a dor ainda dói, mesmo assim, mesmo abrindo a geladeira sem pedir licença. Ela dói demais e a lembrança, sua amante, vem junto perguntar o que tem pro almoço. As duas, dentro de mim, da minha casa, sufocando o pouco espaço, inodoras, falando de você. Eu não queria saber de você. Há meses não recebia notícia qualquer, mas elas duas vieram, a dor e a lembrança, atrás de mim por causa de você, ou melhor, por causa de nós.
Lavei as mãos com bálsamo, respinguei a água na pia, sem pressa. Virei-me e olhei diretamente para elas. Com seus pratos vazios, sem um farelo pra contar história, a dor e a lembrança me contaram de você. Disseram que estava bem, com uma garota apaixonada, planejando o futuro, sem tocar no meu nome. Perguntei a elas, a dor a e lembrança, se nada de mim havia ficado nele.
- Se nem a dor nem a lembrança estão lá, onde não estou, onde ele está, então, o que restou?
- Odor.
Odor.
sábado, 14 de setembro de 2019
Lar dos Lugares
Senti, quando meus pés tocaram o solo desconhecido, que já não era mais o mesmo. A decisão de ir para outro canto causou angustia, mas, no final das contas, serviu para que me redescobrisse por uma outra perspectiva. Eu me vi de longe. Confesso, não sou muito o tipo que sai por aí e se lança no desconhecido como Louco. Ainda assim, o que eu buscava não estava perto. Na verdade, para ser mais sincero ainda, eu não buscava nada além da chance de não deixar rastro ou ter que seguir pegadas de um outro qualquer. Havia um endereço, sim. Havia para onde ir, quem encontrar.
O que não havia era um nome pro lugar onde eu queria ficar.
Chegar a um ponto em que não havia passado nem haveria futuro. Este foi o primeiro pensamento a tomar as malas de minha mão quando desembarquei. O meio termo cabia perfeitamente. Era ele, o meio, apenas tempo presente - aquele sentido ao longo dos momentos que se findariam em si. Descompromissado, solto - como eu - o tempo. Era assim que eu interpretava a viagem: como um marco zero. Era o presente. O estar presente.
De volta, enquanto revisito agora as lembranças, consigo observar perfeitamente as nuances dos momentos vividos. Na suavidade da transição entre tons sem bordas, recordo de cada cor sem que uma se misture a outra. Entendo, hoje, que era o lugar. Ainda sem nome, mas era o lugar. Só uma figura permanecia intacta e pendurada em todas as paredes, horizontes, mares, distâncias, lençóis, anoiteceres, amanheceres, olhares meus por através dos dias: a dele.
Lar
Onde eu chego e quero ficar
Duas vezes mais perdido na vastidão
O que não havia era um nome pro lugar onde eu queria ficar.
Chegar a um ponto em que não havia passado nem haveria futuro. Este foi o primeiro pensamento a tomar as malas de minha mão quando desembarquei. O meio termo cabia perfeitamente. Era ele, o meio, apenas tempo presente - aquele sentido ao longo dos momentos que se findariam em si. Descompromissado, solto - como eu - o tempo. Era assim que eu interpretava a viagem: como um marco zero. Era o presente. O estar presente.
De volta, enquanto revisito agora as lembranças, consigo observar perfeitamente as nuances dos momentos vividos. Na suavidade da transição entre tons sem bordas, recordo de cada cor sem que uma se misture a outra. Entendo, hoje, que era o lugar. Ainda sem nome, mas era o lugar. Só uma figura permanecia intacta e pendurada em todas as paredes, horizontes, mares, distâncias, lençóis, anoiteceres, amanheceres, olhares meus por através dos dias: a dele.
Lar
Onde eu chego e quero ficar
onde eu finco e insisto em não deixar
rastro algum, além das marcas em cada curva
que insiste em me dobrar.
Duas vezes mais perdido na vastidão
desse espaço macio sobre o qual largo meu corpo,
alargo meu gosto e degusto o que há de melhor na região:
seu rosto que... dentro da minha boca faz abrigo e brinca comigo
sem me deixar outra opção senão parar, admirar e dizer em alto e bom som
lar, doce lábio.
De manhã me aconchega e diz que eu posso ficar mais tempo na cama
sem me deixar outra opção senão parar, admirar e dizer em alto e bom som
lar, doce lábio.
De manhã me aconchega e diz que eu posso ficar mais tempo na cama
pra só de tarde perguntar se eu saí e vi o mundo lá fora
Quando escurece, é você que aparece vestido de noite
passa um endereço, define o local e marca a hora
desse jeito não tenho outra saída senão chegar na calma
de quem não reconhece as ruas que vê, mas confia no desejo
no desejo de te ter.
no desejo de te ter.
quarta-feira, 11 de setembro de 2019
Fogo e Vento na moleira do menino
No céu vermelho, quente feito o chão da pele, corta com luz o raio da ordem. Retumbo acha abrigo dentro dos corpos curvados esperando a chuva quente pra limpar. Sobe pro céu suspiro do desespero e o choro engasgado vira grito nos tambores do trovão. Vem à guerra os filhos da terra escura, filhos do sol e do ferro, banhados pelo ouro que adorna a memória dos ancestrais. Saúda o mensageiro que abre os caminhos, povo dos povos, e deixa passar o senhor da justiça.
O sangue que ferve também escorre e lava o espírito. Banho de vida, legado, enrolado nos panos do destino, paga hoje aquele que ontem se omitiu – e amanhã vai cobrar. Enxague bem a nuca, a moleira, o peito, porque passado, futuro e presente são um só, ao mesmo tempo, como nome e sobrenome. Então revele pra eles, senhor dos raios rubros, do vento quente, quem levará o nome da mãe e do pai. Quem é a fruta que amadurece no calor, seca o caroço antes de virar semente. Peça à bênção das mães das águas, dos filhos do solo, pra fazer berço às crianças que estão por vir. Aquece os corações, dono das tempestades, pra batucar o soluço das crias pelos tantos cantos do mundo.
Chamo pra cabeça o peso do machado que corta a mentira. Chamo o trançar dos raios que desenham os caminhos pro espírito passar. Chamo o fogo, queimo os ossos, entrego os joelhos, dou-me pra incendiar a dor e, mais uma vez, erguer a cabeça como filho de reis e rainhas. A pedreira não rolará em cima de mim.
Sou filho da tempestade, parido na madrugada de uma quarta-feira.
Pai e mãe fecharam os braços em volta de mim, como o tempo acima de nós.
Pai e mãe fecharam os braços em volta de mim, como o tempo acima de nós.
sexta-feira, 30 de agosto de 2019
Capítulos sobre nós
Enquanto eu acariciava as páginas dos livros, ela cantava ao fundo. Sua voz suave não deixava de me perturbar, tal qual fragrância forte que não sabe ser contida - em certa medida, por conta da tristeza sutil que eriçava a angústia em mim. Ainda assim, eu precisava daquele arranhar de discos com as cordas da garganta, feito nós, a atar o grito de desgosto. Debaixo da cama, encontrei a garrafa de gin, mas não consegui achar cigarro algum nos bolsos. Pensei por segundos onde estariam e lembrei que me obriguei a parar de fumar. Mais angústia, só que sem gelo, por favor.
Ele se segurava pra não conversar comigo. Sabia que era meu momento - e só meu - no qual mergulhava já sem fôlego por entre as águas desconhecidas do meu ainda "não-saber". Cada capítulo era um convite para entrar e ficar mais um pouco, sentar, à vontade, e dizer o que eu gostaria de beber. Depois, quando as páginas me viravam as costas, eu, abandonado, podia olhar para o cabeçalho e relaxar. No caso, os músculos do corpo, não os da mente. Porque era impossível acalmar aquelas pequenas explosões elétricas a descarrilharem feito trens debaixo do meu crânio. A leitura me deixava inquieto, só que o saber... ah, o saber contido nela... Ele não me deixava ficar quieto, capitava-me. Eu queria falar, queria compartilhar tudo aquilo apresentado a mim, mas o barulho era ele, ali, com sua música, com a voz dela abrindo levemente a cortina e soprando seus versos de véu. Agora, eu que me segurava e ele... Ele era a trilha da noite. Eu, só capítulo. Eu só captava.
Nas costas de minha nuca eu sabia que alguém me observava. Fosse com um olho ou os dois, ele me observava ler, e ler, e ler sem se contentar com pontos finais. A provocação vinha do fato de seu corpo não se retirar, muito menos retirar o copo. Eu era gin, você, vinho. Ficava, fumava ao fundo sem me oferecer trago qualquer e, mesmo assim, preenchia as paredes já que as páginas não lhe cabiam ou os goles lhe saciavam. Aquelas páginas, vale ressaltar, é que não lhe cabiam, porque as outras - as tantas que escrevi - estavam perfumadas com sua inoportuna e indispensável presença. Aquelas páginas eram outra história. Já aquele, logo atrás de mim, repousado no sofá, era quem, paradoxalmente, atrapalhava meus estudos enquanto me fazia a massagem perfeita no ego ao me instigar a continuar.
Não era sobre habitar o mesmo cômodo, muito menos sobre incomodar. Quando eu terminava mais uma parte do livro, a vírgula para o fôlego estava justamente na procura pela digressão que me levava até lá longe, onde ele estava, divagando vagarosamente sobre qualquer assunto que não o diante dos meus olhos, diagramado e editado.
Mal sabia ele que eu nada lia. Apenas escrevia mais um capítulo sobre nós.
Bastava olhar para trás pra ver que eu...
Capitulo você.
quarta-feira, 28 de agosto de 2019
Maldição
Do meu ser entendo eu. Quem me diz sou eu. Dos cansaços acumulados, nenhum nunca me fez dormir melhor, como se toda a energia tivesse sido gasta no que preste. Dormir cansado de ter que se deitar pra acordar. Não deitar pra descansar, deitar pra manter o cansaço sob controle. Meu mal não é cansaço.
De mim sei eu que nunca me abandonei, ainda que tivesse tentado algumas dezenas de vezes, sem sucesso. Descalço era como eu me sentia quando a inocência era obrigada a andar sozinha. Meu mal não é o descaso. É outro.
Abri o peito quando pulei a janela e desenho um alvo mentalmente. Descalço, esperando o prego penetrar, o vidro o pinicar e eu ter uma desculpa para não ir. Lá fora, o mundo fazia de mim o que bem entendia. Eu me sentia como um rato na roda. Só que ao invés de avançar, eu ruía.
Fui batizado pela desgraça. Na boca, a maldição que eu não proferi virou as escritas que eu rabiscava. O olhar sempre foi meu cúmplice, pois escondera todas as vezes em que eu disse através deles o que realmente desejava o coração. A culpa eu não carrego. Os poucos choros, quando eram os meus, foram consolados pelo soluço – eu que me assoprei o machucado, eu que me limpei o rosto sujo, eu que me balancei, eu que me consolei, eu que me ensinei que não sabia o que era perdão. No colo, cabia a mim ser refúgio da alma mirrada, filha do sangue e do osso.
Nas minhas danças aleatórias pelo quintal de sempre, o universo parecia se bagunçar. Agitava meus braços de um lado para o outro, girava o corpo devagar, subia uma das pernas, jogava a cabeça para trás, tudo estava fora de órbita, um espirro na escuridão cósmica e pronto: na moleira queimava o sol marcando a minha hora. O momento exato em que passei a existir fosse na luz ou na sombra.
O que chamavam de mal, eu chamava de essencial. O que chamavam de mal eu chamava de atração. O que chamavam de mal eu via razão. O que chamavam de mal eu prestava atenção. Quando me chamavam de mal, eu respondia com voz baixa “já vou” – e não ia. O que chamavam de mal era justamente a versão da história em que eu vencia, sozinho, e ganhava a liberdade para ser meu.
Batia com uma das palmas no chão, acariciava o pescoço com a outra, erguia o corpo, projetava os ombros para trás, passava as mãos pelas costelas como se dedilhasse cordas de violão, trançava os pés, sacudia a cabeça, soltava o ar até o corpo todo formigar inquieto. A saliva banhava os lábios, os olhos piscavam lentamente, o céu fechava, a terra cheirava, seu nome, seu rosto, seu gosto vinham à mente, o estômago reagia, o coração batia depressa pra depois se afundar sob a carne do peito... quase sufocado. Era a boca calada que selava o momento sublime dos quereres, aqueles a dançar comigo, em passos ocultos no tempo, debaixo da poeira do ontem, no caminhar cansado dos meus antepassados, no sorriso de navalha dos meus ancestrais que fazia escorrer o fio da vingança no rosto.
Era no sangue que eu rescrevia o destino de muitas pessoas. Enquanto redigia os versos que iriam atar o nó em volta dos pescoços esticados dos famintos a tentar me abocanhar, lembrava, como se fosse ontem – e, de fato, era – do momento em que me entendi.
Fui direto comigo mesmo, por isso consegui me alcançar. Silenciosamente, ao dar à linha seu último ponto, pude fazer profecia pra mim e maldição para o resto.
"Nós, eu e eu mesmo, fomos feitos um mal para o outro."
Ainda bem.
De mim sei eu que nunca me abandonei, ainda que tivesse tentado algumas dezenas de vezes, sem sucesso. Descalço era como eu me sentia quando a inocência era obrigada a andar sozinha. Meu mal não é o descaso. É outro.
Abri o peito quando pulei a janela e desenho um alvo mentalmente. Descalço, esperando o prego penetrar, o vidro o pinicar e eu ter uma desculpa para não ir. Lá fora, o mundo fazia de mim o que bem entendia. Eu me sentia como um rato na roda. Só que ao invés de avançar, eu ruía.
Fui batizado pela desgraça. Na boca, a maldição que eu não proferi virou as escritas que eu rabiscava. O olhar sempre foi meu cúmplice, pois escondera todas as vezes em que eu disse através deles o que realmente desejava o coração. A culpa eu não carrego. Os poucos choros, quando eram os meus, foram consolados pelo soluço – eu que me assoprei o machucado, eu que me limpei o rosto sujo, eu que me balancei, eu que me consolei, eu que me ensinei que não sabia o que era perdão. No colo, cabia a mim ser refúgio da alma mirrada, filha do sangue e do osso.
Nas minhas danças aleatórias pelo quintal de sempre, o universo parecia se bagunçar. Agitava meus braços de um lado para o outro, girava o corpo devagar, subia uma das pernas, jogava a cabeça para trás, tudo estava fora de órbita, um espirro na escuridão cósmica e pronto: na moleira queimava o sol marcando a minha hora. O momento exato em que passei a existir fosse na luz ou na sombra.
O que chamavam de mal, eu chamava de essencial. O que chamavam de mal eu chamava de atração. O que chamavam de mal eu via razão. O que chamavam de mal eu prestava atenção. Quando me chamavam de mal, eu respondia com voz baixa “já vou” – e não ia. O que chamavam de mal era justamente a versão da história em que eu vencia, sozinho, e ganhava a liberdade para ser meu.
Batia com uma das palmas no chão, acariciava o pescoço com a outra, erguia o corpo, projetava os ombros para trás, passava as mãos pelas costelas como se dedilhasse cordas de violão, trançava os pés, sacudia a cabeça, soltava o ar até o corpo todo formigar inquieto. A saliva banhava os lábios, os olhos piscavam lentamente, o céu fechava, a terra cheirava, seu nome, seu rosto, seu gosto vinham à mente, o estômago reagia, o coração batia depressa pra depois se afundar sob a carne do peito... quase sufocado. Era a boca calada que selava o momento sublime dos quereres, aqueles a dançar comigo, em passos ocultos no tempo, debaixo da poeira do ontem, no caminhar cansado dos meus antepassados, no sorriso de navalha dos meus ancestrais que fazia escorrer o fio da vingança no rosto.
Era no sangue que eu rescrevia o destino de muitas pessoas. Enquanto redigia os versos que iriam atar o nó em volta dos pescoços esticados dos famintos a tentar me abocanhar, lembrava, como se fosse ontem – e, de fato, era – do momento em que me entendi.
Fui direto comigo mesmo, por isso consegui me alcançar. Silenciosamente, ao dar à linha seu último ponto, pude fazer profecia pra mim e maldição para o resto.
"Nós, eu e eu mesmo, fomos feitos um mal para o outro."
Ainda bem.
terça-feira, 20 de agosto de 2019
Coral
Finalmente você me aceitou. Eu nunca quis lhe causar desespero, mas entenda... Era o único jeito de abrir seus olhos para dentro e perceber que meu lugar é em ti.
Finalmente, entro sem pedir licença, mas aceito um copo com água.
(...)
Lembro do dia em que doeu o corpo caído no buraco e a indiferença da mão amiga que oferece ajuda pra subida. Eu te chamei sem saber. Sibilei seu nome, mas o fogo se extinguiu antes de tudo virar cinzas.
Também me lembro de quando o corpo foi tocado e a dor escorreu pela carne ainda fresca, o medo, o não saber, os vultos que nada tinham de intangíveis, a sensação do corte rompendo os pontos mais sensíveis do meu ser. Senti medo mais do que dor e te chamei. Você veio, fez tremer as paredes da casa, envenenou o sono dos imundos e apagou os detalhes que formavam a lembrança. Ficou a cicatriz na alma.
Do tapa na cara por ter deixado o bule de café cair, dos gritos por ter deixado a navalha me cortar o dedo, do empurrão por não ter entendido o desejo corpo, do palavrão que me humilhou diante de tanta gente, do prato sem comida, do sono pra alimentar, do amigo sendo incendiado na lata do lixo, do amigo sendo encontrado em pedaços no capô de um carro, do amigo sendo espancado no recreio, do furo de bala no portão, dos sacos de lixo voando em minha direção, do cuspe na nuca, do desrespeito, do desprezo, do sexo pra me usar como experimento, do abandono com ingressos na mão, da porta sendo arrombada no soco, do quarto sendo invadido pela ponta do fuzil, da mordida no braço pra salvar o irmão, da primeira vez traído, da última vez ferido eu me lembro bem.
Em todos esses momentos, recorria ao lugar dentro de minha cabeça onde só eu consigo entrar. Lá, fechava as janelas, apagava as velas, sentava sob a cama, nu, passava as mãos no rosto, nos cabelos, umedecia os lábios, arranhava de leve a pele de todo o corpo, abria os olhos, deixava as trevas inundarem eles e estralava os ossos do pescoço. Por debaixo da porta, conseguia ver sua sombra passando. Você não batia.
Nunca tive medo do vermelho do sangue. Nunca tive medo do preto da escuridão. Nunca tive medo do preto e do vermelho dentro e fora de mim, sob e sobre minha pele. Nunca tive medo do escuro. O medo que eu tive não estava em mim. Ele estava no outro. O outro tinha medo e isso que me assustava. Ser medo.
Quando o coração gritou de dor, quando eu caí de joelhos no quintal onde corri tantas vezes, naquele momento, quando a lua brilhava cheia de si no céu morto, eu te chamei. Você chegou, tirou o lixo de minhas costas, secou a saliva em minha nuca, arrancou as marcas de mãos da minha carne, partiu em direção ao prateado que cobria tudo como véu e eu, finalmente, senti-te em mim. Sem medo.
Finalmente, sós.
Nós. Duas vozes em um mesmo corpo.
Coral.
Finalmente, entro sem pedir licença, mas aceito um copo com água.
(...)
Lembro do dia em que doeu o corpo caído no buraco e a indiferença da mão amiga que oferece ajuda pra subida. Eu te chamei sem saber. Sibilei seu nome, mas o fogo se extinguiu antes de tudo virar cinzas.
Também me lembro de quando o corpo foi tocado e a dor escorreu pela carne ainda fresca, o medo, o não saber, os vultos que nada tinham de intangíveis, a sensação do corte rompendo os pontos mais sensíveis do meu ser. Senti medo mais do que dor e te chamei. Você veio, fez tremer as paredes da casa, envenenou o sono dos imundos e apagou os detalhes que formavam a lembrança. Ficou a cicatriz na alma.
Do tapa na cara por ter deixado o bule de café cair, dos gritos por ter deixado a navalha me cortar o dedo, do empurrão por não ter entendido o desejo corpo, do palavrão que me humilhou diante de tanta gente, do prato sem comida, do sono pra alimentar, do amigo sendo incendiado na lata do lixo, do amigo sendo encontrado em pedaços no capô de um carro, do amigo sendo espancado no recreio, do furo de bala no portão, dos sacos de lixo voando em minha direção, do cuspe na nuca, do desrespeito, do desprezo, do sexo pra me usar como experimento, do abandono com ingressos na mão, da porta sendo arrombada no soco, do quarto sendo invadido pela ponta do fuzil, da mordida no braço pra salvar o irmão, da primeira vez traído, da última vez ferido eu me lembro bem.
Em todos esses momentos, recorria ao lugar dentro de minha cabeça onde só eu consigo entrar. Lá, fechava as janelas, apagava as velas, sentava sob a cama, nu, passava as mãos no rosto, nos cabelos, umedecia os lábios, arranhava de leve a pele de todo o corpo, abria os olhos, deixava as trevas inundarem eles e estralava os ossos do pescoço. Por debaixo da porta, conseguia ver sua sombra passando. Você não batia.
Nunca tive medo do vermelho do sangue. Nunca tive medo do preto da escuridão. Nunca tive medo do preto e do vermelho dentro e fora de mim, sob e sobre minha pele. Nunca tive medo do escuro. O medo que eu tive não estava em mim. Ele estava no outro. O outro tinha medo e isso que me assustava. Ser medo.
Quando o coração gritou de dor, quando eu caí de joelhos no quintal onde corri tantas vezes, naquele momento, quando a lua brilhava cheia de si no céu morto, eu te chamei. Você chegou, tirou o lixo de minhas costas, secou a saliva em minha nuca, arrancou as marcas de mãos da minha carne, partiu em direção ao prateado que cobria tudo como véu e eu, finalmente, senti-te em mim. Sem medo.
Finalmente, sós.
Nós. Duas vozes em um mesmo corpo.
Coral.
segunda-feira, 5 de agosto de 2019
Solstício
Declínio, quando metade do meu rosto não consegue se enxergar devido à intensa luz. O auge, quando uma das metades se descola da imagem e imerge na escuridão. Metade do todo, parte para ninguém, eu sem saber se agradecia pelo lado quente ou lamentava pelo frio. Eu odeio a sensação morna. Talvez também odeie a ideia romântica de equilíbrio, balanço e afins. O meio é o fio que divide, não o que une.
Prefiro falar de metades.
Metade de mim acorda e quer se deitar; levanta pra despencar alguns segundos depois por conta do pesado desânimo que é ter que viver mais um dia comum. A outra metade respira fundo, sacode os músculos e ossos, procura os óculos, olha o relógio e berra sem abrir a boca "faça o que tem que ser feito". Declínio e Auge.
Metade de mim precisa andar para pensar nos problemas, soluções, vontades, perdas e ganhos. A outra metade para no meio do caminho para escrever a quem quer ver ao longo da semana, estipula data, horário e local. Frio ou quente. Nunca frio e quente.
Metade de mim pensa no que vai beber para sentir aquela sensação amaciadora do álcool descendo pelas veias e inundando a cabeça, afrouxando os nervos enquanto acidula o estômago. A outra metade pensa sobre o que irá escrever enquanto está sob efeito do álcool, ou o que irá escutar, ou o que irá dançar, ou o que irá me fazer movimentar. Pôr-se e nascer-se, corpo a copo.
Metade de mim odeia repetição. A outra às vezes repete pra provocar.
Enquanto sento para terminar o almoço no quintal de casa, o sol bate em metade do meu rosto. Sinto a pele sendo levemente acariciada por ele. Aos poucos, ela começa a arder, pelar e, consequentemente, a endurecer. Ela resiste à intensidade. A outra metade também esquenta, mas não demonstra. Ela desiste da claridade.
Longe, do outro lado, onde os raios não chegam. Perto, aqui ao lado, onde o auge do declínio acende metade.
- Estava pensando aqui, nesta distância toda, quanta coisa entre o chão que eu piso e o que você anda...
- Verdade, né? Louco isso, a gente não percebe tanta distância mesmo quando olha pra um horizonte desconhecido.
- Parece que eu tô logo ali e você logo aqui.
-Sim, parece.
- Eu te sinto quando sento no quintal para almoçar e tomar sol.
- Eu sei que sim. Também te sinto quando olho pro céu e vejo o tempo fechado, escondendo o sol pra quando estivermos juntos novamente.
Solstício.
Prefiro falar de metades.
Metade de mim acorda e quer se deitar; levanta pra despencar alguns segundos depois por conta do pesado desânimo que é ter que viver mais um dia comum. A outra metade respira fundo, sacode os músculos e ossos, procura os óculos, olha o relógio e berra sem abrir a boca "faça o que tem que ser feito". Declínio e Auge.
Metade de mim precisa andar para pensar nos problemas, soluções, vontades, perdas e ganhos. A outra metade para no meio do caminho para escrever a quem quer ver ao longo da semana, estipula data, horário e local. Frio ou quente. Nunca frio e quente.
Metade de mim pensa no que vai beber para sentir aquela sensação amaciadora do álcool descendo pelas veias e inundando a cabeça, afrouxando os nervos enquanto acidula o estômago. A outra metade pensa sobre o que irá escrever enquanto está sob efeito do álcool, ou o que irá escutar, ou o que irá dançar, ou o que irá me fazer movimentar. Pôr-se e nascer-se, corpo a copo.
Metade de mim odeia repetição. A outra às vezes repete pra provocar.
Enquanto sento para terminar o almoço no quintal de casa, o sol bate em metade do meu rosto. Sinto a pele sendo levemente acariciada por ele. Aos poucos, ela começa a arder, pelar e, consequentemente, a endurecer. Ela resiste à intensidade. A outra metade também esquenta, mas não demonstra. Ela desiste da claridade.
Longe, do outro lado, onde os raios não chegam. Perto, aqui ao lado, onde o auge do declínio acende metade.
- Estava pensando aqui, nesta distância toda, quanta coisa entre o chão que eu piso e o que você anda...
- Verdade, né? Louco isso, a gente não percebe tanta distância mesmo quando olha pra um horizonte desconhecido.
- Parece que eu tô logo ali e você logo aqui.
-Sim, parece.
- Eu te sinto quando sento no quintal para almoçar e tomar sol.
- Eu sei que sim. Também te sinto quando olho pro céu e vejo o tempo fechado, escondendo o sol pra quando estivermos juntos novamente.
Solstício.
segunda-feira, 8 de julho de 2019
Três céus
Clareou o azul. Eu amanheci e fui pra fora procurar o mundo. Olhei para o alto e admirei a imensidão daquela cor que me causava alegria sem motivo. Dominava a língua dos pipas, sabia o que era mandado, na mão, sabia o que era cortar, também sabia o que era buscar, desbicar, aparar. Tudo isso ensinado pelo céu cor de azul. Modelava nuvens também, gostava de redesenhá-las com a ponta da imaginação, vendo o que ninguém via - aquele canto que ninguém vê, mas está ali. Aquela cor azul, perfeita, sem defeito algum, profunda, sem começo nem fim... O teto do infinito tinha tudo para ser uma criança feliz, mas não era - ainda que sorrisse como tal.
A inocência é uma força da natureza que aguenta firme até mesmo quando ao seu redor existem apenas catástrofes. Sua vantagem é não saber o que é ruim e, por isso, livrar-se inconscientemente dos cosedores de malvadeza a lhe agulhar. Entretanto, basta um simples espetar para que ela se vá, a inocência, sozinha. Quando cai em si, não consegue mais se levantar, ela. O azul do céu aberto se mancha pra sempre com uma cor que não é sua. Passado.
Ele se nubla tentando resolver no embranquecer absoluto os conflitos que agora são seu céu. De inocente a consciente, o céu agora é dois em um. Nenhum.
Quando quer dizer algo, não diz; quando diz algo, fala baixo demais e só escuta a si mesmo; quando quer algo, espera; quando não quer, disfarça. Ninguém decifra algo que é justamente porque se faz "nada". Ele é nada porque, agora, está confuso sobre tudo.
Não pensar, não ver, não sentir, não viver. Suportar. Dias pálidos que não trazem nada além da fumaça misteriosa e surda que não retumba com os tambores a trovejar, nem se abre feito céu cor de céu. Fica lá, sem dizer se está indo ou voltando - aquele céu cheio de nuvem - nem fechado, nem aberto. Presente.
Só que o ar muda antes do céu colorido de nada perceber. Fica denso, pesado, morno, começa a fazer poeira subir, pega papel com suas mãos invisíveis e faz rodopiar pro alto. Os pássaros percebem primeiro. Depois as formigas e, em seguida, os siriris. Um pingo grosso beija com lábios macios de boca dura feita a da mãe. É um beijo na testa, firme, que fez com que eu desse dois passos para trás - onde minha nuca tinha ficado descoberta e desprotegida. Olho pro alto e tudo ao meu redor anuncia o que virá pela frente. Futuro.
A dança é dela. Escura feito o início de tudo e todos, traz a noite para o dia. Faz os movimentos que quer e balança as copas das árvores junto de seus cabelos grisalhos. Ela é o céu que vai desabar, o toró, o tempo fechado, sem branco nem azul, sem meio termo, sem morno. Agora é quente a gota que explode no chão feito pedrada no coco. Um trovão baixo, outro mais alto, um que estoura os ouvidos, outro que arrepia os pelos do braço. O céu da tempestade é a morada da ordem, o olhar sobre a bagunça que deixamos e confusão que causamos. Olhar de furacão, olho de mãe.
Este céu, agora que é três, olha para os outros e faz seu serviço: lava as feridas do azul inocente e devolve sua pureza sem levar sua esperteza. Olha no fundo opaco dos olhos nublados do perdido em si mesmo e tinge de luz com um raio cortante o vácuo solitário, agora duas partes, agora metade de si mesmo - agora, partido. Presente, Passado e Futuro. Curado, Partido e Seguro.
O céu preto, abençoado pela chuva cheia do que dizer, anda. Não para, vai, não fica, é sempre amanhã, é sempre depois, é sempre um olá seguido de adeus. Vem pra se impor e colocar no ponto final mais dois céus, mais dois pontos.
Assim, renda no teto do infinito as reticências destes três pedaços do mesmo caminho.
Nós.
A inocência é uma força da natureza que aguenta firme até mesmo quando ao seu redor existem apenas catástrofes. Sua vantagem é não saber o que é ruim e, por isso, livrar-se inconscientemente dos cosedores de malvadeza a lhe agulhar. Entretanto, basta um simples espetar para que ela se vá, a inocência, sozinha. Quando cai em si, não consegue mais se levantar, ela. O azul do céu aberto se mancha pra sempre com uma cor que não é sua. Passado.
Ele se nubla tentando resolver no embranquecer absoluto os conflitos que agora são seu céu. De inocente a consciente, o céu agora é dois em um. Nenhum.
Quando quer dizer algo, não diz; quando diz algo, fala baixo demais e só escuta a si mesmo; quando quer algo, espera; quando não quer, disfarça. Ninguém decifra algo que é justamente porque se faz "nada". Ele é nada porque, agora, está confuso sobre tudo.
Não pensar, não ver, não sentir, não viver. Suportar. Dias pálidos que não trazem nada além da fumaça misteriosa e surda que não retumba com os tambores a trovejar, nem se abre feito céu cor de céu. Fica lá, sem dizer se está indo ou voltando - aquele céu cheio de nuvem - nem fechado, nem aberto. Presente.
Só que o ar muda antes do céu colorido de nada perceber. Fica denso, pesado, morno, começa a fazer poeira subir, pega papel com suas mãos invisíveis e faz rodopiar pro alto. Os pássaros percebem primeiro. Depois as formigas e, em seguida, os siriris. Um pingo grosso beija com lábios macios de boca dura feita a da mãe. É um beijo na testa, firme, que fez com que eu desse dois passos para trás - onde minha nuca tinha ficado descoberta e desprotegida. Olho pro alto e tudo ao meu redor anuncia o que virá pela frente. Futuro.
A dança é dela. Escura feito o início de tudo e todos, traz a noite para o dia. Faz os movimentos que quer e balança as copas das árvores junto de seus cabelos grisalhos. Ela é o céu que vai desabar, o toró, o tempo fechado, sem branco nem azul, sem meio termo, sem morno. Agora é quente a gota que explode no chão feito pedrada no coco. Um trovão baixo, outro mais alto, um que estoura os ouvidos, outro que arrepia os pelos do braço. O céu da tempestade é a morada da ordem, o olhar sobre a bagunça que deixamos e confusão que causamos. Olhar de furacão, olho de mãe.
Este céu, agora que é três, olha para os outros e faz seu serviço: lava as feridas do azul inocente e devolve sua pureza sem levar sua esperteza. Olha no fundo opaco dos olhos nublados do perdido em si mesmo e tinge de luz com um raio cortante o vácuo solitário, agora duas partes, agora metade de si mesmo - agora, partido. Presente, Passado e Futuro. Curado, Partido e Seguro.
O céu preto, abençoado pela chuva cheia do que dizer, anda. Não para, vai, não fica, é sempre amanhã, é sempre depois, é sempre um olá seguido de adeus. Vem pra se impor e colocar no ponto final mais dois céus, mais dois pontos.
Assim, renda no teto do infinito as reticências destes três pedaços do mesmo caminho.
Nós.
domingo, 23 de junho de 2019
O hífen entre querer e dizer
Chega de remeter ao título, de fazer malabarismos pra caber na narrativa. É ridículo, frustrantemente previsível. Por favor, sejamos sinceros... É perda de tempo e palavras.
Incluir pessoas nos textos e achar que são inteligentes o bastante para captarem as entrelinhas só comprova o quanto somos, nós, os escritores e escritoras, autores e autoras, seja lá o como queiram chamar, limitados. Oras, escrever sempre foi a forma mais informal de transgredir ainda que dentro de toda uma regra linguístico-gramatical - como diriam os caucasoides europeus que me obrigaram a grafar assim - insípida. Então, o que eu faço com ela, a tal escrita? Carta de amor? Declaração? Homenagem? Conto cujo personagem não vale a figura de linguagem? Francamente...
Perco linhas e mais linhas tentando reaquecer o sentimento petrificado que tenho por pessoas viventemente finadas no cotidiano e irrequietas apenas no memorial insuportável de quem ainda não chegou à linha neural do oblívio? Por favor, olhemo-nos com o mínimo de autoestima - e não vaidade. O que nos resta além de nós, na garganta da caneca? Gengibre puro pra limpá-la e forçar o fim da frescura "resfrial". Infelizmente, carrego um léxico que não permite a vasta capacidade que tenho de expandir seu acervo e incluir o adjetivo resfrial sem a necessidade de aspas.
Mas voltando...
Viu? Mais uma vez remetendo ao título. Olha, sinceramente, se fosse uma maldição untada no tabu do sangue eu até aceitaria em silêncio. Apenas tacaria pedras e desferiria socos em mim mesmo, sem furar nada, sem jorrar, mas me lendo, aqui, agora, a vontade que tenho é de dizer: "frustrantemente previsível".
Entretanto - como dito anteriormente a esta vírgula ortograficamente duvidosa tanto quanto a crase facultativa -, pior é sentir excitação em esperar que aqui apareçam eles e elas, eternos aguardantes, citados num texto amargo e de auto-ódio. Inclusive, a quem dê muita monta para o ódio, como se ele fosse realmente autossuficiente, não o é, viu?. Preciso dizer que apenas queria matar o hífen visualmente horrível e consegui. Linguístico-gramaticalmente virginiano - se é que há espaço pros astros.
Leu? Isto aqui, este espaço, este tempo, este mundo, esta vida que pulsa, este vai e volta sem ter endereço anotado nada mais é do que o famoso "perdido" que a gente - tipo eu e você - aplicamos quando queremos dar a letra sem semântica, pra ver se alguém finalmente se manca.
Sem hífen pra forçar nós dois juntos num "chateou-me você": hoje você me chateou.
Era só isso que eu queria dizer.
Só que escrevi.
Incluir pessoas nos textos e achar que são inteligentes o bastante para captarem as entrelinhas só comprova o quanto somos, nós, os escritores e escritoras, autores e autoras, seja lá o como queiram chamar, limitados. Oras, escrever sempre foi a forma mais informal de transgredir ainda que dentro de toda uma regra linguístico-gramatical - como diriam os caucasoides europeus que me obrigaram a grafar assim - insípida. Então, o que eu faço com ela, a tal escrita? Carta de amor? Declaração? Homenagem? Conto cujo personagem não vale a figura de linguagem? Francamente...
Perco linhas e mais linhas tentando reaquecer o sentimento petrificado que tenho por pessoas viventemente finadas no cotidiano e irrequietas apenas no memorial insuportável de quem ainda não chegou à linha neural do oblívio? Por favor, olhemo-nos com o mínimo de autoestima - e não vaidade. O que nos resta além de nós, na garganta da caneca? Gengibre puro pra limpá-la e forçar o fim da frescura "resfrial". Infelizmente, carrego um léxico que não permite a vasta capacidade que tenho de expandir seu acervo e incluir o adjetivo resfrial sem a necessidade de aspas.
Mas voltando...
Viu? Mais uma vez remetendo ao título. Olha, sinceramente, se fosse uma maldição untada no tabu do sangue eu até aceitaria em silêncio. Apenas tacaria pedras e desferiria socos em mim mesmo, sem furar nada, sem jorrar, mas me lendo, aqui, agora, a vontade que tenho é de dizer: "frustrantemente previsível".
Entretanto - como dito anteriormente a esta vírgula ortograficamente duvidosa tanto quanto a crase facultativa -, pior é sentir excitação em esperar que aqui apareçam eles e elas, eternos aguardantes, citados num texto amargo e de auto-ódio. Inclusive, a quem dê muita monta para o ódio, como se ele fosse realmente autossuficiente, não o é, viu?. Preciso dizer que apenas queria matar o hífen visualmente horrível e consegui. Linguístico-gramaticalmente virginiano - se é que há espaço pros astros.
Leu? Isto aqui, este espaço, este tempo, este mundo, esta vida que pulsa, este vai e volta sem ter endereço anotado nada mais é do que o famoso "perdido" que a gente - tipo eu e você - aplicamos quando queremos dar a letra sem semântica, pra ver se alguém finalmente se manca.
Sem hífen pra forçar nós dois juntos num "chateou-me você": hoje você me chateou.
Era só isso que eu queria dizer.
Só que escrevi.
quinta-feira, 20 de junho de 2019
VocÊu
Da última vez que nos encontramos, você disse que passava em frente a minha casa e se perguntava se eu estava - e se o atenderia caso me chamasse. Disse, também, que me amava e que não deixara de pensar em mim um dia sequer. Você estava incrédulo. Parecia não acreditar que eu estivesse vivo, ou melhor, que nós dois estivéssemos. Abraçou-me, ofereceu-me de sua cerveja, chamou-me para fumar. Sua sorte é que eu ainda tinha meio maço de Lucky Strike vermelho.
Fez exatamente como eu queria. Nossa vantagem - e, ao mesmo tempo, desvantagem - é que um lia a mente do outro como bula de remédio. O que não entendíamos, imaginávamos e acertávamos, no final das contas, achando que faria bem e curaria.
Voc sabia que eu queria aquele momento contigo. Digo isso porque sei que você só sabia porque também queria. Há um idioma não dito que é sabido só por aqueles que se atam nos laços invisíveis e, desprovidos de audição e visão, farejam no ar o que está sendo dito, saboreado e sentido. A gente se olhou e não se ouviu. Ainda assim, entendemo-nos. Faz sentido pra você? Faz.
Êu confesso que não sei explicar porque ainda sonho conosco. Não tivemos nosso estúdio, nossa banda, nossa casa, nossa mesa pra arrumar - não tivemos nossa família pra criar. Eu queria que você lesse esse texto pra sentir - como eu sinto - nós, na garganta. Só isso. Queria, não. Quero.
Sei que ainda pensa em mim. Sei que me busca quando ninguém está olhando. Também sei que você sobrevive do seu orgulho e, ao meu ver, está tudo bem. É o que nos resta, não?
Eu só sei porque eu te sinto tanto quanto você me sente, hoje, sem precisar passar diante da minha casa e imaginar se eu estou e seu eu te atenderia caso chamasse. Você continua me chamando.
Eu continuo te respondendo.
Está tudo bem porque está entre nós.
VocÊu.
Fez exatamente como eu queria. Nossa vantagem - e, ao mesmo tempo, desvantagem - é que um lia a mente do outro como bula de remédio. O que não entendíamos, imaginávamos e acertávamos, no final das contas, achando que faria bem e curaria.
Voc sabia que eu queria aquele momento contigo. Digo isso porque sei que você só sabia porque também queria. Há um idioma não dito que é sabido só por aqueles que se atam nos laços invisíveis e, desprovidos de audição e visão, farejam no ar o que está sendo dito, saboreado e sentido. A gente se olhou e não se ouviu. Ainda assim, entendemo-nos. Faz sentido pra você? Faz.
Êu confesso que não sei explicar porque ainda sonho conosco. Não tivemos nosso estúdio, nossa banda, nossa casa, nossa mesa pra arrumar - não tivemos nossa família pra criar. Eu queria que você lesse esse texto pra sentir - como eu sinto - nós, na garganta. Só isso. Queria, não. Quero.
Sei que ainda pensa em mim. Sei que me busca quando ninguém está olhando. Também sei que você sobrevive do seu orgulho e, ao meu ver, está tudo bem. É o que nos resta, não?
Eu só sei porque eu te sinto tanto quanto você me sente, hoje, sem precisar passar diante da minha casa e imaginar se eu estou e seu eu te atenderia caso chamasse. Você continua me chamando.
Eu continuo te respondendo.
Está tudo bem porque está entre nós.
VocÊu.
sexta-feira, 31 de maio de 2019
Sotaque
Há como descrever alguém em silêncio. Assim como é possível soprar o escândalo do desejo na certeza de que você sabe guardar segredo. Dois reinos, mudos, onde cala quem consente. E sente muito.
Eu não acredito em homenagem. Acredito em história. Se eu conto, é porque, mesmo dizendo, só você vai entender. Há um rastro, pegada, origem, que mostra de onde partiu e pra onde pretende ir. Começo, meio, em mim. Há um jeito de falar que se mistura à canção do saber, numa partitura que - ao invés de romper -, não parte ao meio tudo o que tenho a dizer. Este jeito é como o sotaque que eu tenho. Sotaque que só você consegue compreender.
Sua voz baixa foi o que tocou minha garganta áspera. Tentei, por anos, cuidar dos calos que me fazem tropeçar - ainda hoje - quando tento dizer, sem vírgula, na urgência de desabafar. Enquanto eu falava alto, você respondia baixo, pra dentro, atraindo-me tanto que eu ia descalço buscar nas profundezas do seu mar um pé pra não me afogar. Sua fala é das de tombo. Começam rasas pra, logo em seguia, afogar.
Sempre gostei do silêncio, do volume baixo, das discussões entre pai e mãe mais baixas ainda. Mais até do que o tom das trocas de ofensas. Lá, no nível último, eu conseguia ouvir nitidamente o que precisava ouvir. Era minha própria voz a dizer que tudo iria passar. Depois do barulho, nenhum pio. A sensação era de que o par de mãos pretas acariciavam minha cabeça e eu voltava a ser apenas uma criança esperando mimo. Não me importava mais com o adulto que me tornei. Era a criança esperando mimo e só. Sua voz era o silêncio que sempre gostei. Um afago, um não dizer, uma ausência que preenchia - e ainda preenche - meu não ser.
Do fundo do quarto, no canto que ninguém vê, estamos nós. Eu aqui, você lá.
Nós aqui, a voz, lá.
Quando pensei nunca ser capaz de entender o que eu mesmo disse a mim durante todos estes textos, eis que surge seu timbre cinza com o agudo de uma lança cuja ponta vermelha aponta nosso sangue misturado. Ele diz:
"Você tem sotaque quando escreve". Sim.
E que venha a voz ao nosso reino.
É um jeito de dizer que eu só calo quando é para cuidar da escrita.
Do nós, na garganta.
Eu não acredito em homenagem. Acredito em história. Se eu conto, é porque, mesmo dizendo, só você vai entender. Há um rastro, pegada, origem, que mostra de onde partiu e pra onde pretende ir. Começo, meio, em mim. Há um jeito de falar que se mistura à canção do saber, numa partitura que - ao invés de romper -, não parte ao meio tudo o que tenho a dizer. Este jeito é como o sotaque que eu tenho. Sotaque que só você consegue compreender.
Sua voz baixa foi o que tocou minha garganta áspera. Tentei, por anos, cuidar dos calos que me fazem tropeçar - ainda hoje - quando tento dizer, sem vírgula, na urgência de desabafar. Enquanto eu falava alto, você respondia baixo, pra dentro, atraindo-me tanto que eu ia descalço buscar nas profundezas do seu mar um pé pra não me afogar. Sua fala é das de tombo. Começam rasas pra, logo em seguia, afogar.
Sempre gostei do silêncio, do volume baixo, das discussões entre pai e mãe mais baixas ainda. Mais até do que o tom das trocas de ofensas. Lá, no nível último, eu conseguia ouvir nitidamente o que precisava ouvir. Era minha própria voz a dizer que tudo iria passar. Depois do barulho, nenhum pio. A sensação era de que o par de mãos pretas acariciavam minha cabeça e eu voltava a ser apenas uma criança esperando mimo. Não me importava mais com o adulto que me tornei. Era a criança esperando mimo e só. Sua voz era o silêncio que sempre gostei. Um afago, um não dizer, uma ausência que preenchia - e ainda preenche - meu não ser.
Do fundo do quarto, no canto que ninguém vê, estamos nós. Eu aqui, você lá.
Nós aqui, a voz, lá.
Quando pensei nunca ser capaz de entender o que eu mesmo disse a mim durante todos estes textos, eis que surge seu timbre cinza com o agudo de uma lança cuja ponta vermelha aponta nosso sangue misturado. Ele diz:
"Você tem sotaque quando escreve". Sim.
E que venha a voz ao nosso reino.
É um jeito de dizer que eu só calo quando é para cuidar da escrita.
Do nós, na garganta.
Coser
- Vá comprar pão!
- Quantos?
- Uns cinco. E traz o troco, hein!?
- Tá bom.
O caminho até o portão durava anos. Anos e mais anos descruzando as pernas, usando as joias de minha vó quando, à noite, as pedras já não reluziam tanto a ponto de chamar a atenção. O calor que salgava as juntas do corpo todo não era maior do que o temor que envolvia meu jeito de se vestir e de andar. Queria a bermuda mais curta, tão curta que mudava de nome, virava "shorts" aos olhos dos outros - aos meus, alívio. Deixava de andar agilmente nas pontas dos pés. Fincava a sola no solo e fazia tremer o chão todo com cada passada mentirosa e desajeitada que tirava de mim o rastro da desconfiança. Bastava olhar ali, aquele corpo mirrado, cor de barro: olhe lá - nada de "errado", parece mais um de nós. Vários nós, na garganta.
Abria com as mãos.
Girava lentamente.
Empurrava com força.
Rangia os dizeres.
Reclamava fazendo um ruído abafado com os dentes e, então, passava pelo portão mais velho do que meu sobrenome.
Odiava ele, pois chamava a atenção e fazia com que todo mundo visse minha casa aos pedaços. Ao passar da calçada, porém, algo acontecia dentro de mim.
Eu saía de verdade.
Como se uma costureira chamada Nalva decidisse arrumar o que, em mim, ainda não estava corretamente arrematado, sentia as puxadas da agulha na coluna que me faziam subir a cabeça como se subissem as mangas de uma camiseta. Olhava pro meu corpo e dizia, com a linha entre os dentes: "Preciso soltar aqui e apertar aqui, tá tudo muito enforcado, a gola tá degolando, não é pra ser assim, ele precisa respirar enquanto anda!".
Fazia, cosia, tecia, voltava, reclamava, acertava. Entregava a mima melhor confecção de mim - aquela cujo caminho até o pão não mais seria uma peregrinação. Com a coluna alinhada de tanta linha, eu andava sobre o asfalto seguro de que, na ponta dos pés, rumava ascendido. Alta costura.
Os dedos, ao invés de contar os olhares e taparem o meu para não ver tanto desdém, desenhavam o ritmo do corpo que ia sincronizadamente em comunhão com a roupa. Se alguém ainda não sabe para que servem as pálpebras, pois bem, eu lhes digo: elas protegem os globos oculares dos olhos alheios que tentam queimar a retina da autoestima.
Veja, eu não os via. De cima pra pra baixo, lentamente, conferia seus sapatos, seus pés,descalços, sem desdém, tentando achar algum final para aquele começo de desprezo tão aquém de mim. Quando chegava ao chão, sumia o peso e eu entendia que todo aquele desprezo era medo.
Nalva não costurou apenas meu eu, ela me disse ao devolver os panos: "O ver me fez pensar que Locou pra sempre um lugar entre minhas linhas". Uma linguagem que só nós tínhamos, entre o ponto e a cruz.
Uma das maiores aflições era pedir o pão e não saber se as moedas iam dar. Ficava tenso, suando nas bordas da testa, imaginando a vergonha que seria dizer "Moço, vou deixar o pão aqui e volto com o resto do dinheiro" porque sabia que não tinha"resto". Minha mãe só vivia com o contado. O alívio vinha quando eu pegava algum troco que não fosse bala e, mesmo sem saber fazer as contas pra conferir, eu sabia que algo seria devolvido à Mã. Se estivesse errado, beleza, a vergonha não seria minha. Cobrava mesmo e, de repente, pedia metade do engano em 7Belo.
Eu voltava como dia, radiante, depois da calçada: costurado a mim mesmo, modelado e impecável. Sem culpa, a gente serve no número que é o nosso. Nem apertado, nem largo, nem sobrando, nem faltando. Quando eu saía, saía de verdade.
Coser é fazer a gente caber perfeitamente em nós mesmos.
- Quantos?
- Uns cinco. E traz o troco, hein!?
- Tá bom.
O caminho até o portão durava anos. Anos e mais anos descruzando as pernas, usando as joias de minha vó quando, à noite, as pedras já não reluziam tanto a ponto de chamar a atenção. O calor que salgava as juntas do corpo todo não era maior do que o temor que envolvia meu jeito de se vestir e de andar. Queria a bermuda mais curta, tão curta que mudava de nome, virava "shorts" aos olhos dos outros - aos meus, alívio. Deixava de andar agilmente nas pontas dos pés. Fincava a sola no solo e fazia tremer o chão todo com cada passada mentirosa e desajeitada que tirava de mim o rastro da desconfiança. Bastava olhar ali, aquele corpo mirrado, cor de barro: olhe lá - nada de "errado", parece mais um de nós. Vários nós, na garganta.
Abria com as mãos.
Girava lentamente.
Empurrava com força.
Rangia os dizeres.
Reclamava fazendo um ruído abafado com os dentes e, então, passava pelo portão mais velho do que meu sobrenome.
Odiava ele, pois chamava a atenção e fazia com que todo mundo visse minha casa aos pedaços. Ao passar da calçada, porém, algo acontecia dentro de mim.
Eu saía de verdade.
Como se uma costureira chamada Nalva decidisse arrumar o que, em mim, ainda não estava corretamente arrematado, sentia as puxadas da agulha na coluna que me faziam subir a cabeça como se subissem as mangas de uma camiseta. Olhava pro meu corpo e dizia, com a linha entre os dentes: "Preciso soltar aqui e apertar aqui, tá tudo muito enforcado, a gola tá degolando, não é pra ser assim, ele precisa respirar enquanto anda!".
Fazia, cosia, tecia, voltava, reclamava, acertava. Entregava a mima melhor confecção de mim - aquela cujo caminho até o pão não mais seria uma peregrinação. Com a coluna alinhada de tanta linha, eu andava sobre o asfalto seguro de que, na ponta dos pés, rumava ascendido. Alta costura.
Os dedos, ao invés de contar os olhares e taparem o meu para não ver tanto desdém, desenhavam o ritmo do corpo que ia sincronizadamente em comunhão com a roupa. Se alguém ainda não sabe para que servem as pálpebras, pois bem, eu lhes digo: elas protegem os globos oculares dos olhos alheios que tentam queimar a retina da autoestima.
Veja, eu não os via. De cima pra pra baixo, lentamente, conferia seus sapatos, seus pés,descalços, sem desdém, tentando achar algum final para aquele começo de desprezo tão aquém de mim. Quando chegava ao chão, sumia o peso e eu entendia que todo aquele desprezo era medo.
Nalva não costurou apenas meu eu, ela me disse ao devolver os panos: "O ver me fez pensar que Locou pra sempre um lugar entre minhas linhas". Uma linguagem que só nós tínhamos, entre o ponto e a cruz.
Uma das maiores aflições era pedir o pão e não saber se as moedas iam dar. Ficava tenso, suando nas bordas da testa, imaginando a vergonha que seria dizer "Moço, vou deixar o pão aqui e volto com o resto do dinheiro" porque sabia que não tinha"resto". Minha mãe só vivia com o contado. O alívio vinha quando eu pegava algum troco que não fosse bala e, mesmo sem saber fazer as contas pra conferir, eu sabia que algo seria devolvido à Mã. Se estivesse errado, beleza, a vergonha não seria minha. Cobrava mesmo e, de repente, pedia metade do engano em 7Belo.
Eu voltava como dia, radiante, depois da calçada: costurado a mim mesmo, modelado e impecável. Sem culpa, a gente serve no número que é o nosso. Nem apertado, nem largo, nem sobrando, nem faltando. Quando eu saía, saía de verdade.
Coser é fazer a gente caber perfeitamente em nós mesmos.
quinta-feira, 30 de maio de 2019
Profecia
Lanço ao fogo o que ontem foi a profecia dos nossos dias. Giro feito o sopro dos gênios pelas areias ditas do destino. Clamo, peço, busco no fundo da ampulheta algum grão que ainda não tenha passado pela garganta e que me dê mais tempo contigo na lembrança. O sangue ferve sob o banho da Lua. Eu me ofereço mais uma vez à desgraça desse querer que não dorme. É com a voz abafada debaixo do peito que te peço para voltar.
Os temperos, espalho pela mesa. Sinto seus perfumes se misturarem ao de minha pele. Já salguei demais minha visão e agora é hora de preparar um banquete para celebrar seu retorno. O fio da lâmina cai sobre meu rosto, sopro, ele sobe e corta levemente um sorriso. Dos vermelhos, tiro o calor, dos verdes, a consistência, dos amarelos, o peso, do azeite, o toque e das olivas negras, a saudade de teus olhos. Um beijo na boca da garrafa e a bebida traga a tensão dos músculos. Ponho-me à mesa para que coma com as mãos. Farto de mim só posso eu mesmo ficar. Você, não. Você tem que se saciar e sempre querer mais. Porque eu nunca me sirvo por inteiro.
Enquanto a água acaricia minha pele, sussurro algumas poucas palavras. Desejo que o espírito esfrie a cabeça que não para de te invocar. Velas acesas, uma luz fraca e alaranjada, cansaço, passos molhados pelo chão de madeira e a porta do quarto entreaberta. Na transição da tarde para a noite eu encerro mais um dia de nossa história. Deixo que o corpo seque sozinho com a última brisa morna antes que a penumbra arrepiasse os pelos.
Com a coluna a rodopiar, entrego a nuca desnuda às vozes que cantam sem parar. Roubo cada verso que elas me lançam, envio-os a você, busco-te de longe, encaro-te como se estivesse diante de mim, os braços penteiam o vento e as velas se apagam. Coberto pela prata minguante, estico os dedos e alcanço – no criado mudo – as cartas que enviei e que retornaram em silêncio. Não as reli, não foi preciso. O cheiro das minhas mãos ainda estava ali, forte, como pimentão. Ponho-me na cama para que durma por inteiro, da cabeça ao peito. Cansado de mim, talvez só você mesmo. Eu, não. Eu me basto. Porque nunca me descrevo por inteiro.
Eu sempre te escrevi mais. Porque você nunca me serviu por inteiro.
Os temperos, espalho pela mesa. Sinto seus perfumes se misturarem ao de minha pele. Já salguei demais minha visão e agora é hora de preparar um banquete para celebrar seu retorno. O fio da lâmina cai sobre meu rosto, sopro, ele sobe e corta levemente um sorriso. Dos vermelhos, tiro o calor, dos verdes, a consistência, dos amarelos, o peso, do azeite, o toque e das olivas negras, a saudade de teus olhos. Um beijo na boca da garrafa e a bebida traga a tensão dos músculos. Ponho-me à mesa para que coma com as mãos. Farto de mim só posso eu mesmo ficar. Você, não. Você tem que se saciar e sempre querer mais. Porque eu nunca me sirvo por inteiro.
Enquanto a água acaricia minha pele, sussurro algumas poucas palavras. Desejo que o espírito esfrie a cabeça que não para de te invocar. Velas acesas, uma luz fraca e alaranjada, cansaço, passos molhados pelo chão de madeira e a porta do quarto entreaberta. Na transição da tarde para a noite eu encerro mais um dia de nossa história. Deixo que o corpo seque sozinho com a última brisa morna antes que a penumbra arrepiasse os pelos.
Com a coluna a rodopiar, entrego a nuca desnuda às vozes que cantam sem parar. Roubo cada verso que elas me lançam, envio-os a você, busco-te de longe, encaro-te como se estivesse diante de mim, os braços penteiam o vento e as velas se apagam. Coberto pela prata minguante, estico os dedos e alcanço – no criado mudo – as cartas que enviei e que retornaram em silêncio. Não as reli, não foi preciso. O cheiro das minhas mãos ainda estava ali, forte, como pimentão. Ponho-me na cama para que durma por inteiro, da cabeça ao peito. Cansado de mim, talvez só você mesmo. Eu, não. Eu me basto. Porque nunca me descrevo por inteiro.
Eu sempre te escrevi mais. Porque você nunca me serviu por inteiro.
domingo, 5 de maio de 2019
Coisa
O sossego do desapego finalmente encontrou um espaço em minha cama. Dorme ao meu lado, calado, confortável. Assim, consigo sonhar com algo real, de fato. Vejo os rostos para os quais disse "adeus" e não fiz questão alguma de mentir pra mim, pensando que, no fundo, tratava-se de um "até breve". Ainda que eu lembre como era bom ser um em dois, não vejo sentido em acordar para viver o mesmo dia - a dois. Toda manhã é um novo fim em nós. Em mim.
Enquanto conto o tempo nas pontas dos dedos, pergunto-me: "mas você não sente falta?". Oras, como não sentir? Se é falta ou alívio, não sei dizer, mas eu sinto, sim. Algo aqui dentro infiltra as paredes que defendem meu coração do mundo lá fora. Aos poucos, vejo elas descascarem, esfarelarem, virarem areia, novamente, do pó ao pó, no tijolo. É uma sensação sorrateira. Talvez por isso que eu a deixe fluir. Gosto de quem vem silenciosamente e faz barulho mesmo assim. Esta sensação - que rasteja feito a serpente que me habita - vem com o tempo. Assim como você foi, com ele, o tempo.
Estes diálogos silenciosos - que, inclusive, são as conversas que não tivemos, mas estão aqui - basta vir pegá-las - só aconteceram porque eu sabia que você me ouviria daí, de longe. Há sempre uma música de fundo dizendo o que a boca se recusa a dizer, porque ela quer falar e não cantar. Quando ela cala, quem fala são os ouvidos, donos de si, trovejantes como meu espírito. São os ouvidos que falam o que eles mesmos precisam ouvir. Ensimesmados, parecem-se como nós - dois pares de calçados perdidos no caminhar ao longo do longo chão duro, pela estrada seca que só se molha no momento em que o sal cai do céu e finge ser chuva, faz a gente perder a mão e errar no gosto, despencar, virar toró. Corta a cara erodida e nos engana fazendo tropeçar os pés d'água.
Parece chuva, mas não é.
Trata-se de outra... outra... outra... coisa. Odeio essa palavra... "coisa". Só que eu separá-la bem, do jeito que eu separo o que eu sinto do que eu sou e de como eu ajo, bem, parece, então, que há aí um outro convite pra ser sem saber onde se está. Para ser "coisa alguma".
Quando a gente sabe o que quer, mas não consegue se convencer do contrário, ao nos perguntarem "Mas o que você quer?", respondemos: "Qualquer coisa".
"Coisa" é justamente o que não queremos tanto quanto não queremos explicar o porquê de não querer.
É o sossego do desapego.
Enquanto as teclas do piando competem com meus dedos para ver quem chega primeiro ao topo da razão a envenena no intuito de deixar que meus os músculos dos ombros relaxarem, eu lhe digo:
Você não sabe de coisa alguma.
Enquanto conto o tempo nas pontas dos dedos, pergunto-me: "mas você não sente falta?". Oras, como não sentir? Se é falta ou alívio, não sei dizer, mas eu sinto, sim. Algo aqui dentro infiltra as paredes que defendem meu coração do mundo lá fora. Aos poucos, vejo elas descascarem, esfarelarem, virarem areia, novamente, do pó ao pó, no tijolo. É uma sensação sorrateira. Talvez por isso que eu a deixe fluir. Gosto de quem vem silenciosamente e faz barulho mesmo assim. Esta sensação - que rasteja feito a serpente que me habita - vem com o tempo. Assim como você foi, com ele, o tempo.
Estes diálogos silenciosos - que, inclusive, são as conversas que não tivemos, mas estão aqui - basta vir pegá-las - só aconteceram porque eu sabia que você me ouviria daí, de longe. Há sempre uma música de fundo dizendo o que a boca se recusa a dizer, porque ela quer falar e não cantar. Quando ela cala, quem fala são os ouvidos, donos de si, trovejantes como meu espírito. São os ouvidos que falam o que eles mesmos precisam ouvir. Ensimesmados, parecem-se como nós - dois pares de calçados perdidos no caminhar ao longo do longo chão duro, pela estrada seca que só se molha no momento em que o sal cai do céu e finge ser chuva, faz a gente perder a mão e errar no gosto, despencar, virar toró. Corta a cara erodida e nos engana fazendo tropeçar os pés d'água.
Parece chuva, mas não é.
Trata-se de outra... outra... outra... coisa. Odeio essa palavra... "coisa". Só que eu separá-la bem, do jeito que eu separo o que eu sinto do que eu sou e de como eu ajo, bem, parece, então, que há aí um outro convite pra ser sem saber onde se está. Para ser "coisa alguma".
Quando a gente sabe o que quer, mas não consegue se convencer do contrário, ao nos perguntarem "Mas o que você quer?", respondemos: "Qualquer coisa".
"Coisa" é justamente o que não queremos tanto quanto não queremos explicar o porquê de não querer.
É o sossego do desapego.
Enquanto as teclas do piando competem com meus dedos para ver quem chega primeiro ao topo da razão a envenena no intuito de deixar que meus os músculos dos ombros relaxarem, eu lhe digo:
Você não sabe de coisa alguma.
terça-feira, 2 de abril de 2019
Dhoruba
Quando me calo, faço retumbar o recado no silêncio dos relâmpagos.
Quando falo, elevo o tom do dizer e digo o que tem para ser dito, não recuo, não pisco, de olho fixo, miro o chão e corto o horizonte com meu raio.
Digo uma vez, porque não caio duas vezes no mesmo dizer.
Se eu falo, não é porque sei tudo. É porque carrego muito.
Parto do topo, racho o céu, mostro que nem alto nem baixo vão me dizer como trovejar.
Quem não aprende pelos pés descalços a andar, eu parto o topo e racho o coco até entender que o tempo fecha quando o espírito se deita na birra.
Cheguei não foi à toa! Quero as nucas diante da mim, assim, pedindo um lampejo de bênção, uma quentura pra fechar o corpo quando ele está com ferida aberta e ardida.
De um lado pro outro, os ventos acompanham meu respirar profundo, escuro, sem pressa, que faz tremer até mesmo quem nesta terra não caminha mais.
Poeira não me cega, madeira não me atinge.
Enquanto rodopio, presto atenção nos que enganaram o próprio andar.
Anuncio minha fúria sem nublar o recado:
Hoje eu vou cair. Cair não, despencar.
Endireite seus passos! Ande direito, olhe pro chão, não abaixe a cabeça, abaixe os olhos!
Seus ancestrais estão atrás de você, menino! Ande que nem eles, mas ande hoje, agora – quando chegar, conte a eles o que o amanhã trará.
Eu já terei passado, mas até lá não há ginga que se esquive do meu soprar.
Eu sou a tempestade!
Sou aquele que se anuncia e fica até se esgotar.
A ordem chama, o caos inflama, o pé de água se torna e com o toró aplico minha didática -
Mude quem tiver que mudar, mude o que tiver que mudar, senão eu sopro pros confins do esquecimento aquele que achou que podia se criar no cimento.
Semente nenhuma brota da casca! Vem de dentro o novo, a essência que não morre, mas renasce transformada.
Eu sou a tempestade!
Vim pra varrer, não pra sujar! Vim pra espalhar, não pra bagunçar! Vim pra semear, não pra colher!
Procure por mim na tempestade e não se assuste...
Quando me encontrar, eu já terei a tudo limpado.
Quando falo, elevo o tom do dizer e digo o que tem para ser dito, não recuo, não pisco, de olho fixo, miro o chão e corto o horizonte com meu raio.
Digo uma vez, porque não caio duas vezes no mesmo dizer.
Se eu falo, não é porque sei tudo. É porque carrego muito.
Parto do topo, racho o céu, mostro que nem alto nem baixo vão me dizer como trovejar.
Quem não aprende pelos pés descalços a andar, eu parto o topo e racho o coco até entender que o tempo fecha quando o espírito se deita na birra.
Cheguei não foi à toa! Quero as nucas diante da mim, assim, pedindo um lampejo de bênção, uma quentura pra fechar o corpo quando ele está com ferida aberta e ardida.
De um lado pro outro, os ventos acompanham meu respirar profundo, escuro, sem pressa, que faz tremer até mesmo quem nesta terra não caminha mais.
Poeira não me cega, madeira não me atinge.
Enquanto rodopio, presto atenção nos que enganaram o próprio andar.
Anuncio minha fúria sem nublar o recado:
Hoje eu vou cair. Cair não, despencar.
Endireite seus passos! Ande direito, olhe pro chão, não abaixe a cabeça, abaixe os olhos!
Seus ancestrais estão atrás de você, menino! Ande que nem eles, mas ande hoje, agora – quando chegar, conte a eles o que o amanhã trará.
Eu já terei passado, mas até lá não há ginga que se esquive do meu soprar.
Eu sou a tempestade!
Sou aquele que se anuncia e fica até se esgotar.
A ordem chama, o caos inflama, o pé de água se torna e com o toró aplico minha didática -
Mude quem tiver que mudar, mude o que tiver que mudar, senão eu sopro pros confins do esquecimento aquele que achou que podia se criar no cimento.
Semente nenhuma brota da casca! Vem de dentro o novo, a essência que não morre, mas renasce transformada.
Eu sou a tempestade!
Vim pra varrer, não pra sujar! Vim pra espalhar, não pra bagunçar! Vim pra semear, não pra colher!
Procure por mim na tempestade e não se assuste...
Quando me encontrar, eu já terei a tudo limpado.
quinta-feira, 28 de março de 2019
Orbito-me
Hoje preciso passar as mãos pela minha cabeça raspada e me sentir. Usar as pontas dos dedos para reforçar os traços sobre meu rosto. Quero despertar e me olhar profundamente nos olhos... Buscar nestas duas pedras escuras o infinito breu que me preencheu todos estes anos e do qual nunca tive medo. Sentir-me. Há tempos não me sinto e o corpo cobra. Nos dias mais escuros, eu permaneço noite sem fim em mim.
Quero olhar para as minhas mãos e reconhecer minhas mães, bisavós, avós. O torto dos dedos indicando a direção que o tempo tem tomado e para onde tem me levado. Os lábios, o nariz, a altura, o peso, todos eles e elas me compondo como música de letra decorada de coração. Hoje eu preciso de “eu”, mais do que sempre, pra lembrar onde escondo as melhores partes de mim. Preciso daquele encontro marcado pelos passos silenciosos de quem nunca teve dificuldade em andar nas pontas dos pés, como se um salto invisível lhe projetasse para o mundo afora - para outra dimensão.
Nas baixas criadas pela depressão que muitas vezes lembra à leveza que nem ela está livre da gravidade de sua existência, levantar é uma luta pela sobrevivência. Deixar que a água caia sobre cada parte do estilhaçado espírito vestido de gente deixa de ser algo cotidiano para se tornar uma exceção à regra básica de segurança: não sair do vácuo que “protege” minha vida de si mesma. A caminhada de menos de 6 segundos até o banheiro transforma-se numa estrada cheia de armadilhas prontas para ceifar o pouco de vontade que ainda resta no fundo do poço. Puxo a corda, sobe o balde, vazio, e eu não posso me saciar. Então, é neste momento que eu me lavo pra longe da sujeira que levei um tempo para enxergar. Luta, água... renovação. No escuro, depois de ter me enxugado, volto a sentir o aperto no peito, mas ele já não faz tanta pressão.
Não abro a janela. Não deixo a luz entrar. Não permito que o som quebre o silêncio. Assim fico, em órbita, pairando pela massa negra do espaço entre um querer e outro. Permaneço coberto com a colcha de estrelas que o universo deixou gravadas na memória. Brilham rostos, sorrisos, vozes distantes, cheiros, gostos, toques... As memórias me cobrem e o aconchego da solitude invoca um bocejo de exaustão do espírito. Um sono diferente desperta meus sentidos para outra esfera da não-consciência. É nesta hora que acordo pra vida – aquela que pesa, dói, angustia e só alivia quando eu, encolhido feito um planeta ensimesmado no próprio eixo, sussurro de meu universo particular...
Hoje eu preciso de mim aqui. Só de mim... como poeira no cosmos, dançando sem música.
segunda-feira, 11 de março de 2019
Procure por mim dentro de nós
Senti você chegando quando as janelas arrebentaram. Invadiu a casa, passou pelos corredores e trombou em minha porta. Batia, batia, sacudia a maçaneta e eu não levantei para de deixar entrar. Tinha medo dos seus trovões, mas desejava, secretamente, enquanto cobria a cabeça com os lençóis, que você conseguisse me alcançar. Era bom quando eu me deitava sobre suas nuvens carregadas. Pequenos raios ouriçavam os pelos do meu corpo enquanto você suspirava em minha nuca seu desejo por mim. Agora, não consigo mais permitir você chover no teto sobre minha cama. Não consigo porque sei que isso te machuca. Toda vez que te deixo ser o vendaval sob meu peito, sinto que nos perdemos um pouco mais. Eu te deixo. Você vai embora resmungando baixinho, pingando aos poucos, sabendo que eu preciso amanhecer mais um dia e me secar ao sol. Eu preciso, sim, do calafrio que me causa seu olhar, não há como negar... Eu preciso dançar contigo na ponta dos pés e te conduzir ao ser conduzido, mas eu também preciso que você precise de mim. E você não precisa. O que você quer, não sou eu, mas o que eu posso te dar - um lugar pra tempestear.
Eu não posso me dar a você. O que eu te dou é o nós, entende?
Quando você me disse “Procure por mim na tempestade”, pensei que estava brincando. A verdade é que você não estava brincado. Você realmente estava na tempestade. Eu te vi, nu, completamente suspenso no meio do turbilhão, banhado da prata cintilante que escoria dos raios, com os braços acompanhando o descompasso das ventanias... Você, tão lindo, tão pesado sem nem sequer encostar os pés no chão. Eu sabia que jamais conseguiria te alcançar, de fato. Não se pega a tormenta com as mãos muito menos com o coração. Eu te vi e quando você me viu, sumiu. Envolveu-se numa neblina densa.
Não entendi, afinal, se mandou que eu te procurasse, por que se escondeu quando te achei?
Enquanto trancava a porta do quarto, já aguardando sua chegada, eu entendi tudo. Eu senti tudo. Eu entendi nós. Você não me pediu para te achar, mas sim para que procurar. Bastava eu seguir a tempestade sem medo dela, pois era você que a condizia. Você queria me ver caminhando, seguindo adiante mesmo quando suas fúrias traziam ruína pras alturas. Você queria me ver mudando, transformando-me a cada passo. Queria me ver mundano, por aí, adiante, andarilho cujos olhos não mais se espantam com o constante desconhecido. Você queria, mas eu ainda não. Não sabia o quanto viria a precisar de forças pra andar sozinho. Por isso eu voltei pra casa, sem você, com nós guardados em algum cômodo.
Quando eu parei de caminhar e me escondi nesta casa, achando que você simplesmente não me queria mais, veio a chuva forte cair sobre o telhado, avisando-me sobre sua chegada. Nunca pedi para você me procurar neste lugar. Não disse que você deveria vir atrás de mim. Eu quis parar e ficar, eu quis me tornar poça de água. Quis porque precisava me recolher e entender o que tinha para ser sentido. Sentir que eu havia entendido o porquê do seu olhar ter escapado do meu. Tenho medo de te deixar entrar e nunca mais querer que saia. No fundo, nunca deixei de ansiar pela sua brisa firme e cortante que passava pelo meus rosto como um respirar ofegante. Eu sempre te procurei na tempestade, só não imaginei que seria um problema te encontrar. Não entendi, à época, que era sobre a busca e não sobre o encontro.
Estou aqui, trancado, porque eu não quero viver perseguindo seus rastros, caçando seus redemoinhos em cada esquina. Desta casa para fora, você pode existir e ser como é. Pode continuar sendo a tempestade que lava o chão, que sopra a poeira do ontem e fecha o topo do mundo toda vez que precisa desabafar suas mágoas e raiva. Aqui dentro, não há espaço para tanta força. Sinto saudades de quando você só chovia e me enchia. Hoje, sei que você irá me sacudir e eu não mais poderei evitar o que já evito todos estes anos: segurar meu corpo para que ele não se perca nos ares da liberdade que aprisionou meu espírito num eterno labirinto onde não consigo me apegar a nada e sigo solto, como se eu não tivesse acontecido. Nem você.
Tenho medo de como você me força a ter força e pisar firme. Como me faz proteger os olhos da forte geada e enxergar para além do branco infinito e frio. O medo... o medo que eu tenho dos seus trovões que ensinam aos meus ouvidos como ouvir o retumbar do coração... Eu tenho medo da tempestade que você causa em minha vida porque ela me obriga a querer sobreviver e sentir, todos os dias... que eu preciso te procurar dentro de mim, onde nem mesmo a porta trancada pode nos separar.
Você é a tempestade de habita em mim e toda vez que eu te busco, é a mim que eu encontro. Aquele que me ensinou a dançar com os ventos nervosos , descalço, enquanto choviam os raios e caíam sobre meu rosto os pingos grossos, quentes e salgados.
Agora é você que procure por mim dentro de casa.
Dentro de nós.
terça-feira, 12 de fevereiro de 2019
Eu te busco | Você me leva
Das coisas bonitas que você faz sem mim, fico imaginando se
são todas elas lascas de saudade. O dia não passa, ele se estica até alcançar o
auge da minha vontade de te ver. Aos poucos, entardece e o sol se acomoda atrás
do longe, lá, distante, onde eu sinto você aquecendo os ombros montanhosos do
horizonte. Metade do seu rosto está ensolarado, a outra, coberta pela sombra de
si mesmo. Neste momento, eu te vejo por completo. Então me aperte contra seu
corpo ainda pelando, ainda distante, crepuscular. Esta é a hora do dia em que a
gente se busca depois do trabalho.
Eu te busco.
Não estou bem, para falar a verdade. Você aqui, ao meu lado, é das coisas mais bonitas que imagino sem ter. Um "querer" porque faz bem imaginar. Quase como passar açúcar nos lábios e deixar que eles sequem. Assim, aos poucos, o doce do veneno unta a boca e enche a garganta de sede. Um "querer" porque é gostoso, mesmo não me fazendo bem, pra falar a verdade.
E se você me perguntar o que estou fazendo de bom enquanto estamos longe, direi sem demora: me preparando para a sua volta. Pra ser sua volta. Pra amanhecer aqui, comigo, amornando de leve minha pele, com um beijo seco perfumado de café. Esta é a hora do dia em que a gente se leva antes do trabalho.
Você me leva.
Eu te anoiteço, você me amanhece.
Eu te busco.
Não estou bem, para falar a verdade. Você aqui, ao meu lado, é das coisas mais bonitas que imagino sem ter. Um "querer" porque faz bem imaginar. Quase como passar açúcar nos lábios e deixar que eles sequem. Assim, aos poucos, o doce do veneno unta a boca e enche a garganta de sede. Um "querer" porque é gostoso, mesmo não me fazendo bem, pra falar a verdade.
E se você me perguntar o que estou fazendo de bom enquanto estamos longe, direi sem demora: me preparando para a sua volta. Pra ser sua volta. Pra amanhecer aqui, comigo, amornando de leve minha pele, com um beijo seco perfumado de café. Esta é a hora do dia em que a gente se leva antes do trabalho.
Você me leva.
Eu te anoiteço, você me amanhece.
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