quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Maldição

Do meu ser entendo eu. Quem me diz sou eu. Dos cansaços acumulados, nenhum nunca me fez dormir melhor, como se toda a energia tivesse sido gasta no que preste. Dormir cansado de ter que se deitar pra acordar. Não deitar pra descansar, deitar pra manter o cansaço sob controle. Meu mal não é cansaço.

De mim sei eu que nunca me abandonei, ainda que tivesse tentado algumas dezenas de vezes, sem sucesso. Descalço era como eu me sentia quando a inocência era obrigada a andar sozinha. Meu mal não é o descaso. É outro. 

Abri o peito quando pulei a janela e desenho um alvo mentalmente. Descalço, esperando o prego penetrar, o vidro o pinicar e eu ter uma desculpa para não ir. Lá fora, o mundo fazia de mim o que bem entendia. Eu me sentia como um rato na roda. Só que ao invés de avançar, eu ruía.

Fui batizado pela desgraça. Na boca, a maldição que eu não proferi virou as escritas que eu rabiscava. O olhar sempre foi meu cúmplice, pois escondera todas as vezes em que eu disse através deles o que realmente desejava o coração. A culpa eu não carrego. Os poucos choros, quando eram os meus, foram consolados pelo soluço – eu que me assoprei o machucado, eu que me limpei o rosto sujo, eu que me balancei, eu que me consolei, eu que me ensinei que não sabia o que era perdão. No colo, cabia a mim ser refúgio da alma mirrada, filha do sangue e do osso.

Nas minhas danças aleatórias pelo quintal de sempre, o universo parecia se bagunçar. Agitava meus braços de um lado para o outro, girava o corpo devagar, subia uma das pernas, jogava a cabeça para trás, tudo estava fora de órbita, um espirro na escuridão cósmica e pronto: na moleira queimava o sol marcando a minha hora. O momento exato em que passei a existir fosse na luz ou na sombra.
O que chamavam de mal, eu chamava de essencial. O que chamavam de mal eu chamava de atração. O que chamavam de mal eu via razão. O que chamavam de mal eu prestava atenção. Quando me chamavam de mal, eu respondia com voz baixa “já vou” – e não ia. O que chamavam de mal era justamente a versão da história em que eu vencia, sozinho, e ganhava a liberdade para ser meu.

Batia com uma das palmas no chão, acariciava o pescoço com a outra, erguia o corpo, projetava os ombros para trás, passava as mãos pelas costelas como se dedilhasse cordas de violão, trançava os pés, sacudia a cabeça, soltava o ar até o corpo todo formigar inquieto. A saliva banhava os lábios, os olhos piscavam lentamente, o céu fechava, a terra cheirava, seu nome, seu rosto, seu gosto vinham à mente, o estômago reagia, o coração batia depressa pra depois se afundar sob a carne do peito... quase sufocado. Era a boca calada que selava o momento sublime dos quereres, aqueles a dançar comigo, em passos ocultos no tempo, debaixo da poeira do ontem, no caminhar cansado dos meus antepassados, no sorriso de navalha dos meus ancestrais que fazia escorrer o fio da vingança no rosto.

Era no sangue que eu rescrevia o destino de muitas pessoas. Enquanto redigia os versos que iriam atar o nó em volta dos pescoços esticados dos famintos a tentar me abocanhar, lembrava, como se fosse ontem – e, de fato, era – do momento em que me entendi.

Fui direto comigo mesmo, por isso consegui me alcançar. Silenciosamente, ao dar à linha seu último ponto, pude fazer profecia pra mim e maldição para o resto.

"Nós, eu e eu mesmo, fomos feitos um mal para o outro."

Ainda bem. 

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