terça-feira, 20 de agosto de 2019

Coral

Finalmente você me aceitou. Eu nunca quis lhe causar desespero, mas entenda... Era o único jeito de abrir seus olhos para dentro e perceber que meu lugar é em ti.

Finalmente, entro sem pedir licença, mas aceito um copo com água.

(...)

Lembro do dia em que doeu o corpo caído no buraco e a indiferença da mão amiga que oferece ajuda pra subida. Eu te chamei sem saber. Sibilei seu nome, mas o fogo se extinguiu antes de tudo virar cinzas.

Também me lembro de quando o corpo foi tocado e a dor escorreu pela carne ainda fresca, o medo, o não saber, os vultos que nada tinham de intangíveis, a sensação do corte rompendo os pontos mais sensíveis do meu ser. Senti medo mais do que dor e te chamei. Você veio, fez tremer as paredes da casa, envenenou o sono dos imundos e apagou os detalhes que formavam a lembrança. Ficou a cicatriz na alma.

Do tapa na cara por ter deixado o bule de café cair, dos gritos por ter deixado a navalha me cortar o dedo, do empurrão por não ter entendido o desejo corpo, do palavrão que me humilhou diante de tanta gente, do prato sem comida, do sono pra alimentar, do amigo sendo incendiado na lata do lixo, do amigo sendo encontrado em pedaços no capô de um carro, do amigo sendo espancado no recreio, do furo de bala no portão, dos sacos de lixo voando em minha direção, do cuspe na nuca, do desrespeito, do desprezo, do sexo pra me usar como experimento, do abandono com ingressos na mão, da porta sendo arrombada no soco, do quarto sendo invadido pela ponta do fuzil, da mordida no braço pra salvar o irmão, da primeira vez traído, da última vez ferido eu me lembro bem.

Em todos esses momentos, recorria ao lugar dentro de minha cabeça onde só eu consigo entrar. Lá, fechava as janelas, apagava as velas, sentava sob a cama, nu, passava as mãos no rosto, nos cabelos, umedecia os lábios, arranhava de leve a pele de todo o corpo, abria os olhos, deixava as trevas inundarem eles e estralava os ossos do pescoço. Por debaixo da porta, conseguia ver sua sombra passando. Você não batia.

Nunca tive medo do vermelho do sangue. Nunca tive medo do preto da escuridão. Nunca tive medo do preto e do vermelho dentro e fora de mim, sob e sobre minha pele. Nunca tive medo do escuro. O medo que eu tive não estava em mim. Ele estava no outro. O outro tinha medo e isso que me assustava. Ser medo.

Quando o coração gritou de dor, quando eu caí de joelhos no quintal onde corri tantas vezes, naquele momento, quando a lua brilhava cheia de si no céu morto, eu te chamei. Você chegou, tirou o lixo de minhas costas, secou a saliva em minha nuca, arrancou as marcas de mãos da minha carne, partiu em direção ao prateado que cobria tudo como véu e eu, finalmente, senti-te em mim. Sem medo.

Finalmente, sós.

Nós. Duas vozes em um mesmo corpo.

Coral.

Nenhum comentário: