sexta-feira, 31 de maio de 2019

Coser

- Vá comprar pão!
- Quantos?
- Uns cinco. E traz o troco, hein!?
- Tá bom.

O caminho até o portão durava anos. Anos e mais anos descruzando as pernas, usando as joias de minha vó quando, à noite, as pedras já não reluziam tanto a ponto de chamar a atenção. O calor que salgava as juntas do corpo todo não era maior do que o temor que envolvia meu jeito de se vestir e de andar. Queria a bermuda mais curta, tão curta que mudava de nome, virava "shorts" aos olhos dos outros - aos meus, alívio. Deixava de andar agilmente nas pontas dos pés. Fincava a sola no solo e fazia tremer o chão todo com cada passada mentirosa e desajeitada que tirava de mim o rastro da desconfiança. Bastava olhar ali, aquele corpo mirrado, cor de barro: olhe lá - nada de "errado", parece mais um de nós. Vários nós, na garganta.

Abria com as mãos.
Girava lentamente.
Empurrava com força.
Rangia os dizeres.
Reclamava fazendo um ruído abafado com os dentes e, então, passava pelo portão mais velho do que meu sobrenome.

Odiava ele, pois chamava a atenção e fazia com que todo mundo visse minha casa aos pedaços. Ao passar da calçada, porém, algo acontecia dentro de mim.

Eu saía de verdade.

Como se uma costureira chamada Nalva decidisse arrumar o que, em mim, ainda não estava corretamente arrematado, sentia as puxadas da agulha na coluna que me faziam subir a cabeça como se subissem as mangas de uma camiseta. Olhava pro meu corpo e dizia, com a linha entre os dentes: "Preciso soltar aqui e apertar aqui, tá tudo muito enforcado, a gola tá degolando, não é pra ser assim, ele precisa respirar enquanto anda!".

Fazia, cosia, tecia, voltava, reclamava, acertava. Entregava a mima melhor confecção de mim - aquela cujo caminho até o pão não mais seria uma peregrinação. Com a coluna alinhada de tanta linha, eu andava sobre o asfalto seguro de que, na ponta dos pés, rumava ascendido. Alta costura.

Os dedos, ao invés de contar os olhares e taparem o meu para não ver tanto desdém, desenhavam o ritmo do corpo que ia sincronizadamente em comunhão com a roupa. Se alguém ainda não sabe para que servem as pálpebras, pois bem, eu lhes digo: elas protegem os globos oculares dos olhos alheios que tentam queimar a retina da autoestima.

Veja, eu não os via. De cima pra pra baixo, lentamente, conferia seus sapatos, seus pés,descalços, sem desdém, tentando achar algum final para aquele começo de desprezo tão aquém de mim. Quando chegava ao chão, sumia o peso e eu entendia que todo aquele desprezo era medo.

Nalva não costurou apenas meu eu, ela me disse ao devolver os panos: "O ver me fez pensar que Locou pra sempre um lugar entre minhas linhas". Uma linguagem que só nós tínhamos, entre o ponto e a cruz.

Uma das maiores aflições era pedir o pão e não saber se as moedas iam dar. Ficava tenso, suando nas bordas da testa, imaginando a vergonha que seria dizer "Moço, vou deixar o pão aqui e volto com o resto do dinheiro" porque sabia que não tinha"resto". Minha mãe só vivia com o contado. O alívio vinha quando eu pegava algum troco que não fosse bala e, mesmo sem saber fazer as contas pra conferir, eu sabia que algo seria devolvido à Mã. Se estivesse errado, beleza, a vergonha não seria minha. Cobrava mesmo e, de repente, pedia metade do engano em 7Belo.

Eu voltava como dia, radiante, depois da calçada: costurado a mim mesmo, modelado e impecável. Sem culpa, a gente serve no número que é o nosso. Nem apertado, nem largo, nem sobrando, nem faltando. Quando eu saía, saía de verdade.

Coser é fazer a gente caber perfeitamente em nós mesmos.

Um comentário:

Danê disse...

Quando escreve, também escreve de verdade.
Não pare jamais, por mim.