domingo, 1 de dezembro de 2019

Aos meus, que nunca tive

Queria lembrar do exato momento em que fui quebrado. Não vou dizer que "eu me quebrei" porque não é verdade. Veja, consigo me lembrar, ainda que vagamente, do menino alegre e carinhoso que eu fui. Silencioso também, tímido, mas nada disso mudava a forma pura e sutil  de como eu sentia o mundo e as pessoas. A cena - para melhor descrever esse menino todo cheio de benquerer - é aquela em que uma criança dorme toda torta na cama, durante à tarde de sol, e as cortinas sopram ventos frescos pra tirar daquele pequeno corpo o calor de quarta-feira. Quem olha para ele, o menino, entende seu cansaço. É aquele cansaço bom, que só gente boa sente.

Em algum momento isso tudo se lascou. Nunca mais foi o mesmo. Mudou ou foi mudado. Mudou porque fui mudado. Alguma coisa se calou, só que ainda não consigo me recordar do exato momento. Bom, foram tantos. As tentativas de me quebrar começaram cedo. Então, desde manhã eu tive que entender o quão frágil era tudo aquilo que estava dentro de mim e eu sentia como se fosse explodir. Criança é isso... Mesmo sem tamanho, sente-se gigante.

Hoje, eu passei dos trinta anos e ainda não sei quando fui quebrado. O que eu sei mesmo é que a minha cabeça nunca mais foi a mesma. Ela se distanciou demais do corpo. Deitavam na mesma cama, todas as noites, sem se falar ou se tocar. Distantes, nos quilômetros que separam um travesseiro do outro. Ao levantar, diariamente, não conseguem nem se olhar. Quando se esbarram, buscam o desvio. O corpo culpa a mente pelo abandono e constante liberação de desgraças que afetam seu funcionamento. A mente culpa o corpo por dar a ela mais preocupações do que as que já tem. Ela se sente duplamente culpada - por ser quebrada e por quebrar o corpo. Às vezes, quando bebiam, parecia que melhorava a condição dos dois. Exageravam-se, abraçavam-se, tocavam-se, queimavam todas as energias reservas e, quando não sobrava mais nada, capotavam-se na mesma cama que demarcava onde um começava e o outro acabava.

Na manhã seguinte, não se tocava no assunto.

Talvez meu corpo proteja a mente ao não deixar que ela tenha recursos o bastante pra lembrar quando foi quebrada. Só que isso também é a causa de sua angustia. Olha, não é fácil a vida a dois, não. A mente também castiga o corpo quando o impede de sair de casa, do quarto, de si mesma. É como se tivesse o poder de transformar ele numa máquina que apenas repete movimentos. Um tira do outro si mesmo. Assim não dá. Fica impossível.

Pergunto eu para mim: será que foi naquela situação? Não, não foi tudo isso, não me abalaria tanto assim... E aquele outro dia? Aquela frase? A reação dele pode ter desencadeado isso, não? Acredito que não. O que eu não tive? O que me faltou? Será que foi isso que me quebrou? De repente, tiraram algo de mim muito cedo... Mas não lembro... O que me causava mais medo? Bom, eu tinha tantos... Medo de decepcionar as pessoas que eu admirava. Minha mãe, minha vó, meu pai, a primeira professora... Vivia tenso, tentando fazer tudo "certo". Eu me quebrei no momento que errei? Não. E quando eu acertei? Bom, eu ficava feliz, só não sei se era felicidade mesmo ou alívio. Nunca soube a diferença de um para o outro. Alívio só faz a gente trocar uma tensão por outra. Já a felicidade, não sei. Parando pra pensar aqui... Eu não sei o que é felicidade  porque toda vez que acredito saber, encontro outro nome pra ela que faz mais sentido. Alívio ao invés de felicidade. Mas o que me quebrou? Será que o que foi quebrado era justamente a felicidade que eu nunca soube que tinha?

Aquilo de tentar rememorar os momentos bons pra combater a tristeza deve funcionar, sim. Não comigo, mas com outras pessoas. Das vezes que tentei, fiz apenas porque calculei ser uma forma de reagir às fissuras que me arranham por dentro. Tática. Racional demais eu - ou minha mente. Nunca deu certo porque quando eu recordava de algum momento "bom", sorria de leve e me dizia de prontidão: mas você vai morrer muito em breve. Esta frase retumbava - e ainda retumba - por todo o corpo, como notícia de separação. Divórcio da mente e do corpo. Cada canto meu se cala e encolhe como os filhos no quarto ao lado, recebendo a notícia pelas paredes. Nenhum criança gigante, nenhum sono tranquilo. As cortinas ainda dançam por causa da ventania da tempestade e parece que ela é a única que me entende mesmo. Acho que ela deve saber quando me quebrei. Quando me quebraram.

Há pouco conversava com um amigo. Parece que minha mente consegue dialogar com a dele. Questionei se existira alguma pessoa no mundo que entendesse o que é deitar ao lado de alguém, na escuridão, que pede apenas presença e silêncio - no máximo, a cabeça sobre o peito pra ouvir o coração batendo. Ele disse que talvez haja. Eu respondi que sinto a certeza de que não. Comecei essa conversa como uma despedida, mas terminei ela dizendo que iria escrever.

Escrever aos meus, que nunca tive.

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