domingo, 5 de maio de 2019

Coisa

O sossego do desapego finalmente encontrou um espaço em minha cama. Dorme ao meu lado, calado, confortável. Assim, consigo sonhar com algo real, de fato. Vejo os rostos para os quais disse "adeus" e não fiz questão alguma de mentir pra mim, pensando que, no fundo, tratava-se de um "até breve". Ainda que eu lembre como era bom ser um em dois, não vejo sentido em acordar para viver o mesmo dia - a dois. Toda manhã é um novo fim em nós. Em mim.

Enquanto conto o tempo nas pontas dos dedos, pergunto-me: "mas você não sente falta?". Oras, como não sentir? Se é falta ou alívio, não sei dizer, mas eu sinto, sim. Algo aqui dentro infiltra as paredes que defendem meu coração do mundo lá fora. Aos poucos, vejo elas descascarem, esfarelarem, virarem areia, novamente, do pó ao pó, no tijolo. É uma sensação sorrateira. Talvez por isso que eu a deixe fluir. Gosto de quem vem silenciosamente e faz barulho mesmo assim. Esta sensação - que rasteja feito a serpente que me habita - vem com o tempo. Assim como você foi, com ele, o tempo.

Estes diálogos silenciosos - que, inclusive, são as conversas que não tivemos, mas estão aqui - basta vir pegá-las - só aconteceram porque eu sabia que você me ouviria daí, de longe. Há sempre uma música de fundo dizendo o que a boca se recusa a dizer, porque ela quer falar e não cantar. Quando ela cala, quem fala são os ouvidos, donos de si, trovejantes como meu espírito. São os ouvidos que falam o que eles mesmos precisam ouvir. Ensimesmados, parecem-se como nós - dois pares de calçados perdidos no caminhar ao longo do longo chão duro, pela estrada seca que só se molha no momento em que o sal cai do céu e finge ser chuva, faz a gente perder a mão e errar no gosto, despencar, virar toró. Corta a cara erodida e nos engana fazendo tropeçar os pés d'água.

Parece chuva, mas não é.

Trata-se de outra... outra... outra... coisa. Odeio essa palavra... "coisa". Só que eu separá-la bem, do jeito que eu separo o que eu sinto do que eu sou e de como eu ajo, bem, parece, então, que há aí um outro convite pra ser sem saber onde se está. Para ser "coisa alguma".

Quando a gente sabe o que quer, mas não consegue se convencer do contrário, ao nos perguntarem "Mas o que você quer?", respondemos: "Qualquer coisa". 

"Coisa" é justamente o que não queremos tanto quanto não queremos explicar o porquê de não querer.

É o sossego do desapego.

Enquanto as teclas do piando competem com meus dedos para ver quem chega primeiro ao topo da razão a envenena no intuito de deixar que meus os músculos dos ombros relaxarem, eu lhe digo:

Você não sabe de coisa alguma.

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