quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Nostalgias

Corri pela estrada arranhando céu com meus dentes
de braços largos num sorriso aberto
lancei minha alma ao nada
enquanto pensava em tudo
Zéfiro entrava na cara sem bater
acariciava os caminhos do rosto
como se os lesse com a ponta dos ventos
Desfiz a mim no caminho
rastro, gasto, passado e repassado
Fiz de mim lembrança
Trilha
Tiro.

...

Hoje eu não acordei bem. Mas acordei. Os finais de ano me deixam extremamente nostálgico e nada, nem ninguém, consegue abater a sensação de o que tive no passado só se tornou mais importante do que o que tenho no presente quando, de fato, passou. Que na época em que eu olhava pra você fumando na cozinha, não sentia muito além de comodismo e segurança. Mas depois, quando ficamos ambos no cinzeiro, sua ausência ganhou mais peso do que a presença. Teve que doer pra me fazer sentir. Eu até sentia naquela época, só não sabia o quê. Diria, ontem, que era amor. Hoje, nostalgia.

Na infância, passava grande parte dos meus dias só, comigo mesmo, apenas. Eu achava que solidão era uma condição normal. Pelo menos no meu caso. Assim me criei, literalmente, bem. As conversas eram longas. Dois Vinicius a contar sobre suas vontades, sonhos, etc. Por fora, lábios selados, por dentro, algazarra. Daí cresci e fui obrigado a falar mais - bem mais, inclusive. Mas sempre que podia, calava. Comecei a sentir saudades de ficar quieto e solitário. Comecei e continuei. Continuo. Nostalgia, não é mesmo?

As músicas, as roupas, os cheiros, as cores... Cada época tinha suas marcas que serviam de indexamento para a memória. Porém, nada se comparava aos céus. Eu lembro deles e parece que meu coração deixa na grama com a cara pra cima, rabiscando contorno nas nuvens. Havia céus alaranjados e mornos, como um abraço. Outros eram azuis e roxos, misteriosos e profundos, nos quais o coração se escondia. Mas meus favoritos eram os céus "híbridos", aqueles sem definição exata, mesclados, como imagem criada com pincel sujo. Um resto de cor atrelado a outro resto de cor, estes eram os céus estampados após as tempestades. Era o chumbo empoeirando o azul celeste, o rústico e o suave, uma dança entre opostos que se distraem. Céus que deixam saudade. Céus de nostalgia.

Pessoas que compuseram meus dias também ressurgem nos porta-retratos. Sob poeira da saudade, sob nostalgia cristalina.

...

Nosso abraço durou um terço do meu corpo
Girei sentindo anti-horário pra me atrasar alguns minutos
até que seu peito silenciasse o despertador no meu
Cheguei mais cedo pra sentar perto de ti
tímido, assim, fiquei ali, cronometrando os 4 anos de nós,
tendo tiq-ue ou quase a-tac a cada troca de olhares
Vou derreter esse tempo congelado pra, do seu lado,
reaquecer cada segundo em primeiro no seu amor
meu amor

....

O cheiro de quarto velho. De coberta que trocou o perfume do amaciante pela essência de sono. De me sentir no lugar mais "meu" do mundo. Como é bom chegar em casa e saber exatamente onde me encontrar. Cada prateleira tem um pouco de mim. Um pó de mim. Gosto assim, exatamente assim. Sinto como se as posições de detalhes fossem uma espécie de mapa astral a me definir. Ou lembrar quem eu sou. Quando mudo algo, mudo a mim, a minha percepção e tudo mais. Fica evidente o movimento dos astros sob a pilha de livros e roupas.

Também gosto de abafar bem o som. Aumentar o volume e me jogar no oceano e timbres. A cabeça submerge nas águas sonoras. Debaixo do áudio, canto de sereis, serenata de baleias, conchas nos ouvidos sussurrando mares. Então eu me rendo e danço. No espaço apertado do quarto faço, entre quatro paredes, as profundezas para, então, sentir falta de ar. Sentir falta de respirar meu ar. Encher os pulmões do meu próprio cheiro, impregnado por todos os cantos. Faço isso quando sinto falta de mim. Nostalgia de mim.

Das tantas voltas que dei pra chegar até aqui
o ponto de partida que me rasgou ao me libertar
a porta que tranquei, agora me deixar entrar
Ir e vir, pra lá e pra cá, a gente só caminha porque sabe voltar
E quando chega novamente, faz as pazes com os céus, o tempo e o espaço
Regresso que descansa os joelhos, como é bom chegar
de (a)onde nunca saímos.
De nós.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Quem



Eu sou...

Eu sou aquele que se desconhece em si mesmo,
Pinta a pele de labirinto com as marcas de amores perdidos
Eu sou a voz pra dentro, que cala o peito e ecoa por entre os ossos
Rege as batidas do coração desafinado pelos quereres
Eu sou o fruto caído do galho, machucado demais pra ser doce
Esquecido no chão, esperando ser semente pra se semear
Eu sou a raiva entre nós que distorce o espaço pra que nada caiba certo
Força da minha mãe natureza capaz de devastar a tudo que mais ama
Eu sou o amor que não se concretizou, a promessa sem prometido
Uma lição que ensina a sofrer sorrindo, morrer vivendo, parecer desaparecendo
Eu sou o tempo roubado, ponteiro ímpar a marcar as horas não passadas
Os beijos não dados, as vontades negadas, o desejo não desperto
Eu sou o mal, a nigrosina na ponta da língua, o sabor da traição, o idioma da serpente
Deus da dúvida, deusa da incerteza, maestro da manhã silenciosa, filho sem berço
Eu sou a chave errada na fechadura errada, rachadura na porta rígida
Aquele que entra sem pedir e sai sem se despedir, vulto no corredor, estalo na cozinha, sussurro na janela
Eu sou a montanha intransponível, inacessível, inalcançável, inabitável
Pico da solitude, ponta de rocha a rasgar os céus, segura em si mesma, escondida nas próprias cavernas, abalável
Eu sou o sal despejado em solo fértil, punhado de nada
Aquele que seca a si mesmo e àquilo que toca
Eu sou a ponta da lança entre as costelas que atende à súplica
Instrumento do sacrifício, sou quem perfura e também quem sangra
Eu sou o crepúsculo, sono dos deuses, refúgio do horizonte, vago entre luz e treva
Eterna transição entre céus, a valsa dos opostos, a paz dos odiosos, sou trégua
Eu sou a rua violentada, caída sobre si e coberta pelo véu na noite
Feita para ser pisada, para conduzir os outros aos seus destinos e manter-se parada no seu
Eu sou o beijo na lágrima, o lábio que toca o mar e se salga
Luar que acalma a maré em madrugadas tempestuosas
Eu sou o detalhe que não coube na carta, na fala, na mala, na mesa do bar
Dito não dito, um respiro, um texto lido e não compreendido, uma frase solta

Eu sou o detalhe que você não percebeu.

domingo, 22 de novembro de 2015

Sala para estar



Dez e meia da manhã. Eu havia afastado todos os móveis do centro da sala. No meio do piso gélido, um maço de cigarros fechado, a garrafa inseparável, alguns discos espalhados e o baralho de tarô. Acendi o primeiro, traguei a segunda, toquei o terceiro e li o último. Era um ritual de passagem para me levar de volta ao "eu" perdido no "você". O Enforcado sobre nós.

Livrar-se do vício é uma experiência imensurável. Por mais que digam o quão difícil é passar por esse processo, não consigo detalhar o que seria "duro" e o que seria "suave". Sinto como se você uma mistura, algo amorfo que ocupa espaço dentro de nós, escorre, evapora, às vezes fica sólido como um bloco de pedra, mas nunca permanece o mesmo. Os vícios dançam com nossos sentidos - e isso eu sinto. Faz sorrir quando é para chorar e chorar duas vezes quando é para sofrer. Deixa nos lábios um gosto amargo de despedida e nos olhos uma fome diferente que ronca a cada piscada na espera de uma mensagem ou braços abertos num sorriso. Aparentemente, falo como se estivesse descrevendo uma sensação excitante - ou pelo menos sedutora o bastante para valer o risco de desfrutá-la. Mas então por que preparar toda a sala para o período de "desintoxicação"? Sinceramente, não sei. Apenas faço o que tem que ser feito. Às vezes a gente precisa misturar o "sim" e o "não", o "certo" e o "errado", no intuito de promover uma dança entre a razão e o coração.

Dancemos, então...

Depois do primeiro gole, senti confiança. Fechei os olhos, uni as mãos e estralei os dedos. Daí em diante, revirei as fotos na gaveta da memória e fui rasgando uma a uma, mesmo sem querer e sem acreditar que sumiriam para sempre. A tentativa já valia bastante. Todos os pequenos momentos que eu fiz questão de amplificar com minhas lentes começaram a revelar suas falhas e real (in)significância. O primeiro vício, então, revelou-se: meu apreço por detalhes. Aqueles pequenos pontos que atraem a visão por si só. São como palavras minúsculas ditas durante grandes declarações. Por que gostar tanto de criaturas efêmeras e tímidas? De fonemas sussurrados em meio à enxurrada de outros dizeres? Porque quando você percebe um detalhe, ali, escondido, despercebido, ele - por outro lado - só percebe você. Ele só vê você e só tem significado para você. Passa então a ser seu e te adorar como deus. Aquele que, diante do invisível, brilha feito constelação e traça o destino de quem nunca antes integrou história alguma. Os detalhes me fazem sentir único, privilegiado por tê-los encontrado e ter sido encontrado por eles. Sim, isso cria dentro de nós - ou pelo menos de mim - um desejo recorrente de ouvir só o que me parece fora do comum, porém dentro do meu infinito particular. Foi assim que eu criei em sete dias um universo lexical capaz de colocar em ordem os astros debaixo do peito. O primeiro vício estava no céu, no alto, no silêncio e na escuridão do cosmos. Abrir mão dele pedia que eu fosse capaz de tratar tais detalhes como estrelas... Brilham solitárias, já mortas, distantes, numa outra ponta do "para sempre" no qual eu também já não existo mais. 

O primeiro cigarro se foi e deixou um pouco de sobriedade. Acredito que esse seja sua principal função. Desta vez, busquei, de olhos fechados, o toque, o beijo e o jeito de falar. Do barro do desejo, modelei aquele que seria, à imagem de mim mesmo, meu amor maior. Meu melhor trabalho. O outro, em contato comigo, fazia-me sentir a vida à flor da pele. Chegava lentamente como a primeira brisa quente de verão e arrepiava meus pelos. Pressionada os braços, encurralava meus ossos e então deixava que o magnetismo fundisse as vontades. Foi assim que mais um vício nasceu: do parto que não nos separava, pelo contrário, paria nosso querer a cada manhã amanhecida sobre a cama de casal sem histórias românticas para contar. Havia apelas aquele calor do "não toque" que me lembrava do quão insone é tentar lutar contra a vontade dormindo ao lado dela. Quase como lamber os lábios pra fingir que não está salivando. E tudo isso a troco de quê? De uma promessa vaga soprada durante a noite... Ou de um despertar, no meio da madrugada, daqueles que buscam saciar a sede nos meus lábios. Eu me viciei na tensão. Na proximidade - ainda que distante - e abri mão de sonhar adormecido para sonhar acorrentado e desperto entre as cobertas. Afundando no colchão até que as profundezas me recebem de mar aberto. O corpo dele naufragava no oceano agitado do meu. Este segundo vício, tão material e real, era fruto das ondas impacientes da minha carne que o puxavam para dentro de mim. Na maré alta, cobriam seu rosto de beijos e na baixa deixavam apenas o rastro de feridas não curadas pelas águas salgadas. Desapegar do que era possível de ser pego trouxe-me a chance de, mais uma vez, entender que não há desejo que resista a outro desejo. Se um quer, dois, ainda assim, não fazem.

Naquele momento, eu já ansiava pelo que achava ter superado. As fotos, o corpo, tudo parecia lutar pra resistir ao esquecimento - ou indiferença. "E se...", "De repente eu posso...", "Será que se eu...", "Lutei o bastante?"... As armadilhas foram postas estrategicamente e parecem não se intimidar com toda a capacidade que minha mente tem de desarmá-las. Há sempre um fator surpresa e é aí que elas me pegam de jeito. Pois bem: eis que começou a tocar aquela música. Aquela música. Olhei em direção à janela e foi como ver uma macieira brotar instantaneamente. Seu tronco entrelaçava as curvas amadeiradas e no topo um volumoso verde preenchia boa parte do espaço. Encarando-me, silenciosa, apenas deixou revelar-se aquele pequeno fruto. Vermelho, lustroso, simples e solitário. Era detalhe e matéria ao mesmo tempo. Era bonito de se ver e desejável de se comer. Enquanto eu permanecia paralisado, a música continuava a tocar sutilmente. Percebi, assim, que ela se apresentava como um sibilo no pé do ouvido. Dizia-me: "permita-se fazer a diferença, quebre suas próprias regras, supere-se e vá ser feliz. Você foi criado para isso.". Os ombros relaxaram e a angústia parecia ter ficado em segundo plano. As folhas da macieira sacudiram um pouco e pude sentir a corrente de ar passando pelo meu rosto, rodopiando em volta da nuca e então apagando as poucas velas que havia acendido para deixar o clima da sala mais intimista. Como se tal espaço fosse o recinto da minha essência, senti que haviam apagado as luzes dentro de mim. Deixe-me levar... Fui até o telefone, disquei o número dele, ensaiei algumas palavras - todas repletas de metáforas e detalhes que - ao meu ver - levariam-o até mim mais uma vez... E quando ouvi sua voz, senti o peso. 

No instante perdido entre o encher de pulmões para então preparar o fôlego para a palavra que viria em seguida, tive uma acesso de raiva e ansiedade. Mais uma vez, tudo misturado, tudo impossível de se mensurar. Lembrei de quantas vezes liguei, das muitas vezes em que quis ligar, esperei e não tive a chance de ser a pessoa a dizer "alô". Do quanto me custou aguentar sozinho a solidão e não a solitude. Dias e mais dias arrastado como grilhões nos calcanhares, tudo porque eu simplesmente estava viciado em ter alguém, mesmo que esse alguém não me tivesse. Os nomes, os endereços, os títulos, nada me interessava. Só a presença e a resposta para meus estímulos e desejos. Só. E só eu fiquei. Porque não me entreguei ao outro, de fato, entreguei-me à situação em si. Ele era o caminho a ser percorrido, por isso que não suportava desvios. Muito menos me sentir perdido. Eu sabia onde queria chegar. O problema era descobrir como. E achei, por muitos anos, que a resposta estava fora de mim, nos gestos dele. 

Voltei a atenção para a sala, joguei o olhar para o canto esquerdo e lá estava a carta do Enforcado, esperando para entrar em cena. Talvez, o principal remédio contra essa pequena recaída. Sua simbologia era rica, mas apenas uma palavra me bastava para compreender a mensagem que queria passar: sacrifício. Dor, abstinência, falta, sofrimento, angústia, tudo isso num nível alto, constante e inevitável. Tudo isso para que, no final das contas, algo de positivo surgisse. Pois sofrimento só consegue massacrar as pequenas felicidades quando não se sabe se o que virá depois dele será mais tempestade ou alguma gota de bonança. Ele nos obriga a pensar apenas no seu fim, quando na verdade o importante é entender o seu presente, o meio, o pesar do agora. Acabei me sacrificando em prol dos meus vícios e da promessa de que eles bastariam pra preencher lacunas ancestrais da minha história. Percebi então que não preciso me livrar deles, dar um fim repentino e pronto, pois novos surgirão. Eu precisava de me recuperar, reabilitar minha capacidade de me destruir e me reconstruir. Eu precisava morrer pra renascer, fechar um círculo e, assim, iniciar outro. Precisava do sacrifício e ele viria com a permanência dos meus vícios e o controle dos mesmos. 

Coloquei a corda em volta do pescoço e pulei. O último vício - aquele que me sufoca porque me faz sofrer o que precisa ser sofrido - estava entre o céu e as profundezas do mar. Ele transitava pelos meus dias, pela casa desarrumada, pela saudade que sinto dele, pelos passos na rua, pelos cheiros que me enfeitiçam... Ele existia no hoje e dizia toda vez que me encontrava:

"Permita-se fazer falta".     


terça-feira, 6 de outubro de 2015

Páginas pretas I

Minha boca está seca
Eu sinto como se algo devorasse minhas entranhas
Algo gélido
Apagaram as luzes dentro de mim
Mas eu não posso simplesmente deitar e ficar parado, em silêncio
o mundo me invoca, ele exige minha presença
mas eu não vou, mando qualquer coisa de mim, mas não eu
Só penso em morrer, sumir, qualquer ação que me tire daqui e daí, de lá e de cá
De qualquer lugar
Penso nas pessoas queridas, não as quero mais
Penso nas pessoas que quis - mas não as tive - e sinto ânsia de vômito
Lembro da minha família e vem um vazio que era pra ser sempre preenchido com amor
Eu não consigo me conectar a ninguém, só a mim mesmo
Falar está me custando muito
O carinho de quem sabe da minha situação dói feito espinho de peixe descendo pela garganta
Sou obrigado a engolir esse sentimento bom que só me estraga
Há nigrosina na minha visão, na minha saliva escassa, em tudo que cai para dentro
Eu não quero viver, mas morrer seria ruim também
Estou num ponto de intersecção entre a glória de existir e a vitória de morrer
Nem glória, nem vitória, eu me arrasto pelas linhas do destino
Tudo que contruí não passou de reflexo das expectativas alheias
Eu nunca quis muito, mas alargaram meu desejo
Fizeram de mim um adicto
Não me importo
Queria sentir algo além dessa angústia profunda
Mas não dá, não consigo
Só penso em partir
Romper com vários vínculos
Só penso, porque não consigo me mover
Não assim, com grilhões a me prender
Imagine chegar no trabalho, só que sem ter saído do quarto... Quase isso
Odeio me sentir vulnerável e a bala não vir pra acabar com tudo
É difícil explicar
Digo apenas que é ruim, que consome tudo e que te faz ter aversão às pessoas
Ao mundo, aos sons que não são aqueles que você escolheu ouvir
Os olhos tentam se esconder e só se fixam em objetos mortos, inanimados
A cabeça fica mais baixa
E o principal: evitar olhar diretamente para os olhos dos outros
É pior do que levar uma facada
Há uma imagem constante em minha mente - cidades ruindo
Tudo desmoronando num fim de tarde crepuscular cujo tom alaranjado lembra algo em sépia
Lentamente, tudo rui
Eu não queria sair do meu quarto hoje
Fui obrigado a nascer, então essa vida não é só minha
Ela também é de outros e outras
Isso me tortura lentamente
Não ter a mim mesmo por completo
Se eu tivesse, o que faria?

Não seria.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Dos Nadas




"Não tira a terra debaixo dos pés, menino. Continue sua subida até o pico mais alto e lá faça seu voo para bem longe de si. Sozinho, encha os pulmões com a brisa crepuscular, vamos, espreguice estas costelas, engula a própria barriga, brinque-se. Faça o céu sorrir com sua imagem infantil, disfarce toda a tristeza que te corrói por entre as veias, feche os olhos e abandone o cheiro do outro. Tudo acabou quando o abraço se tornou apenas um, solitário, entre braços. Acabou no exato momento em que os laços atados a nós invisíveis já não mais conseguiam manter tempo e espaço como aliados do amor de vocês. Mantenha a terra debaixo dos pés, menino. Você precisa de bases."

- Dizia a serpente com seu jeito único de sibilar.

_________

O nada. O grau absoluto da ausência. O luto da existência. O vácuo. O estado etéreo da angústia. A pressão baixa da líbido que vai até o pé e lá fica, no fundo do osso, beirando o calcanhar, penhasco das pegadas invertidas. Nada, absolutamente nada. O único desejo pleno e verdadeiro. Querer nada e no nada ficar. Passar despercebido pelo tempo e espaço, como uma vírgula na regência cósmica. Permanecer sem ser. 

Lentamente, o corpo inclina rumo à superfície gélida do chão. O ombro se retraí, sustando o peso de seu gêmeo - agora totalmente entregue ao nada. A respiração desacelera, os olhos perdem o ponto focal e transformam cores e formas em fumaça de realidade em pó. E a boca seca. E as mãos se unem, sem força. E os pés se cruzam, sem aperto. E os joelhos... Os joelhos doem, mas o resto do corpo já não sente mais nada. 

Nesta posição, a pressão da vida parece se inverter como ampulheta e ao invés de areia, escorrem os grãos de felicidade. Eles passam, um a um, despedindo-se. Nada pode tirar a criatura ruída dali, afinal, foi o Nada que ali a colocou. O eterno adeus parece fazer todo sentido, afinal, toda despedida não anuncia mais Nada além da partida. 

As vozes no cômodo inferir, o ranger da casa, as árvores que ainda balançam inquietas anunciando a tempestade por vir já não conseguem mais encostar na pele. Nada toca, Nada chega até o chão, Nada incomoda a existência desistente. 

Uma das orelhas beija o chão e como concha reproduz um barulho único - oceânico. Dentro do quarto escuro, parece com o roncar retumbante dos trovões agitando o céu, esse som subterrâneo soa como canção de ninar para a alma exausta e faz daquele piso duro a cama perfeita - fria, dura e lisa. Suavemente, a lua vem desejar "boa noite" e, com seu véu, cobre quem Nada queria além do Nada.

Envolver-se numa dança silenciosa entre o desapego e a melancolia profunda - segurando, sem medo ou arrependimento, a cintura da depressão com as palmas da mão - é algo ritualístico. Momento em que as memórias alegres tornam-se moeda de troca, dinheiro de aposta de quem só quer perder de vez e não ser mais obrigado a encher os bolsos com falsas expectativas. Esse flerte com quem não se flerta, no caso, as três entidades raquíticas - desapego, melancolia e depressão -, assemelha-se às vezes em que mãos conduzem o desejo para lugares impróprios, deixando na pele cinzas e marcas a lembrar que de Nada se lembrava.  

Nos minutos seguintes, as gotas que brotam no vidro da janela sangravam lentamente. Lá fora, alguém precisa chorar. Aqui dentro, sobre o peito precisa chover. Mas quando se está diante do Nada, lágrima pinga no caminho inverso e só o Nada é capaz de tirar do rosto a inexpressão. Ali ficam, intactos, corpo e desalma. Chuva que deságua. 

Ficar. Apenas ficar. Ficar. Desistir. Ficar. Fincar as unhas no braço para tentar sentir algo. Nada. Sente nada. Sente muito por não sentir nada. De repente, algo parece se retorcer no âmago. Algo pulsa com o pouco de força que lhe resta... uma serpente se desenrola e estica sua carcaça para fora do ninho. Ela desliza aos poucos, desenhando horizontes pelas montanhas do corpo, acariciando curvas, caindo em abismos e beijando imperfeições. A serpente sibila e vai em direção à janela. Enrola-se à trinca, abre ambas as abas e deixa os sopros revoltosos da tormenta entrarem. 

O corpo se ergue. 
Caminha sem andar. 
Vê sem olhar. 
Senta-se na beira da janela, ao lado da serpete e de costas para a tempestade. Sente uma leveza incomum, como se finalmente Nada lhe fizesse falta. Nada lhe cobrasse. Nada lhe consumisse e tentasse ter dele mais do que ele mesmo tinha.

- Obrigado pela janela. 
- De Nada.

O Nada. O degrau absoluto da decadência.

"Você não precisa mais de bases".

- Dizia a serpente com seu jeito único de sibilar. 

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Quando molhamos os pés, encolhemos

Antes mesmo de sair da cama, já sabia que a terça-feira não seria fácil. Muita burocracia para resolver, trabalho para entregar e faculdade para comparecer. Saí de casa e segui meu rumo. Percebi que o dia seria de chuva, então optei pelo par de botas. A sola me deixou um dedo maior e ajustou o andar para algo mais imponente. Parece besteira, mas eu vivo minhas vestimentas também.

Já sentado diante do computador, dei início às tarefas cotidianas. Tudo sob controle, como bem gosto. Da janela do escritório era possível ver o céu carregado em chumbo, pesado, pronto pra desabar. Passei alguns segundos contemplando aquela paisagem, sem imaginar que horas depois ela me engoliria e cuspiria de volta.

Eu meio aos muitos textos que leio, surgia tempo para resolver questões pessoais. No meu caso, o que havia de mais "pessoal" era a transferência de dinheiro para uma conta corrente em meu nome. O sistema online estava bloqueado e eu precisava ir até uma agência bancária para solicitar a liberação dos serviços que meu contrato possuía. Sem chances de sair durante o expediente, contive-me e procurei por alguma unidade que ficasse próxima ou no caminho da faculdade. Achei.

As horas faziam seu trabalho e eu ou meu. Focado, conseguia desviar a mente das emoções de engano. Lembrava do ótimo final de semana que havia tido e de o quão triste era o seu término. Na boca, nenhum gosto de beijo - só bebida e cigarro. No corpo, nenhuma marca - só saudade mesmo. Intacto, sobrevivi ao desejo fulminante que devastou apenas aquilo que não se toca: o sentimento. Aos poucos, uma angustia foi me invadindo como névoa e quando percebi já estava perdido dentro da própria consciência. Fui entristecendo, caindo num branco absoluto e denso. Fim de expediente. Hora de ir para a faculdade.

Gosto muito de caminhar. Se pudesse, iria a todos os meus compromissos andando. Enquanto trocava os pés pelas mãos e deixava que carimbassem o chão com passadas, aproveitava para refletir sobre centenas de situações. Este processo é essencial para mim. Converso comigo, pergunto como estou - mesmo sabendo a resposta, respondo - ainda que não saiba o motivo, escuto-me, como sempre fiz, desde os três anos de idade.

Já fora do prédio, pude sentir a força da tempestade. Tudo encharcado, trânsito berrante, pessoas desesperadas com seus guarda-chuvas retaliadores de cabeças e as calçadas idênticas à beira do mar. Destreza é uma de minhas qualidades. Cuidadosamente, garanti que pouco fosse atingido pela água torrencial. Então, quando saí da estação de metrô para me dirigir até o banco, tudo desabou dentro e fora de minha pessoa.

Passei a avaliar como tinha sido minha terça-feira e as últimas energias que me restavam apenas durariam tempo suficiente para sentar na carteira da sala de aula e encarar mais de três horas de teoria pesada. Como se a vida fosse tirando lascas de si mesma, cada pedaço daquele dia se desfazia no asfalto ensopado e o vigor atingira a espessura de um fio de água. Fui percebendo o tamanho das dificuldades que se arrastavam junto aos meus calcanhares e, num pingar de gotas, perdi a motivação dos olhos.

Apressado, andei pelas ruas do centro da cidade na busca da agência. Mesmo com o guarda-chuva em mãos, não consegui evitar o aguaceiro. Mas os pés ainda estavam intactos. A cada esquina, pedia informação para alguém até que avistei o logo do banco na fachada de um prédio e a dose mínima de alívio correu pelas veias. Como toda droga, dura tempo o bastante para gerar dependência - depois some. Diante da porta de entrada, o aviso: aberto somente até às 18h. Diante do relógio, os ponteiros: 18h48.

Precisava correr para a aula. Cansado, com fome, com frio, com a visão embaçada, com a mochila pesada, com o maço quase acabando... Assim eu fui, escorrendo silencioso pelas vias da cidade. Quando cheguei diante do prédio da instituição, pude olhar para meus pés. Eles estavam molhados. Finalmente, eu havia sido derrotado.

Difícil descrever o que senti. Na verdade não é difícil, é cansativo. Sentir os dedos esfriando, as botas grudando desesperadas nos peitos dos pés e o barulho da água se infiltrando cada vez mais pelos cadarços foi como olhar para meu reflexo e me ver sendo humilhado pela vida. Como se ela estivesse mostrando quem manda e não me desse autonomia alguma diante do destino. A sensação de pequenez dominou. Pensei em todo o sacrifício feito ao longo da terça de chuva... Pensei e entendi que ele pouco valeu. Quis chorar, mas já havia chovido demais.

Tratava-se de aperto. Eu sentia como se estivesse suprimido em mim. Afogado na frustração daquele dia tempestuoso. Meu rosto se distorcia no fundo da poça, mascarando a vergonha na cara. Fluvial era meu peito que transbordava a cada puxada profunda de ar. Tudo o que eu queria era ir para casa recompor o que jorrou de mim.

Minha mãe dizia que tanto as roupas quanto os tênis encolhiam quando eram molhados e depois secavam.  Na verdade, não eram só eles. Eu também. Quando molhei meus pés, senti-me menor. "Parece besteira, mas eu vivo minhas vestimentas também."

Eu que encolhi.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Ensine-me a nadar



Parecia sintoma de alguma doença séria - e rara. No entanto, de rara não tinha nada. Mas de doença…

Passei muitos anos no mesmo quarto embolorado, cercado de folhas soltas cheias de ideias presas - pensamentos e mais pensamentos, lamentos e confissões que a ninguém interessavam. Eu, escritor, na miséria da minha profissão, tinha não apenas um ofício, como também um vício.

Gostava do meu canto. Pequeno, mas confortável. Subexposto como minhas fotos favoritas. Bastavamo-nos. Contudo, eu sabia que o cigarro envolto naquela atmosfera sufocante com janelas servindo apenas de cinzeiro iria me tragar. A cada dia a mais, menos capacidade de encher os pulmões. Começava a perder o fôlego enquanto pensava. A exaustão desenhou no meu rosto um quadro daqueles bem antigos no qual o verde musgo é, de fato, musgo. Só que essa condição insalubre combinava perfeitamente com a angústia e melancolia que me acompanham desde sempre. Tudo entrava numa harmonia destrutiva e lamento nenhum conseguiria quebrar o pacto entre vida e morte. Pelo menos, foi o que pensei…

Desci para comprar um maço novo e senti que o som, ao poucos, deixava meus ouvidos. Como se algo expirasse de dentro da cabeça, o tempo espreguiçou-se diante dos meus olhos e então a lentidão passou a guiar meus passos. A cada degrau que eu descia, meu sangue parecia perder seu fervor. Foi então que ouvi meu coração suspirar. A cada batida que eu perdia, meu ar parecia perder seu frescor. Foi então que senti meu corpo despencar. A cada sensação que eu pedia, meus pensamentos pareciam perder sua cor. Foi então que não me senti.

O quarto era diferente. Tinha luz, livros ordenados - e não cobertos de poeria numa desordem completa - e uma janela enorme, recortando um pedaço de céu sem fios. O cheiro também era atípico. Espantou-me o fato de eu conseguir ter olfato algum naquele lugar. Porque na minha casa era impossível. A vida era inodora. Sem perfumes. De repente, a porta se abre e eu sinto meu peito pesar como se uma pedra estivesse posta sobre ele. Quando tentei mover minhas mãos na direção da caixa torácica instintivamente, perdi as poucas energias que haviam sido recuperadas nas horas de inconsciência. O pacto entre a vida e a morte estava abalado. Havia guerra. Tormento. E eu estava no meio.

- Oi, você acordou…
- Desculpe, quem é você?
- Sou seu vizinho. Quando você caiu das escadas, eu estava subindo.
- Eu caí? Por isso que estou todo quebrado…
- Sim. Você desmaiou. Mas deu tudo certo, porque sua cabeça bateu no meu ombro e eu consegui segurar seu corpo.
- Obrigado.
- De nada. Descanse. Eu chamei um médico, então fique aí até que ele chegue.
- Eu preciso voltar para casa.
- Quer que eu avise alguém de lá?
- Moro sozinho.
- Então vai ficar aqui. E fim de conversa. Você não está em condições de me contrariar (risos).
- Aproveite, é por pouco tempo.
- Quer alguma coisa?
- Cigarro.

O médico disse que se eu não mudasse minha rotina de fumante, morreria nos próximos dois meses. Parar com o vício estava fora de cogitação. Cair da escada também. Aproveitei que ainda estava debilitado e na cama fiquei. Olhava para o teto, branco feito uma folha de papel, e imaginei minhas palavras manchando a superfície… Formava um texto mental cujo início se resumia a uma pergunta.

- Qual é o seu nome?
- Bruno.
- Felipe.
- Está melhor, Felipe?
- Sim. Obrigado viu, Bruno.
- Tranquilo. Só saia quando estiver bem.
- Então vou ficar aqui pra sempre.
- Pode ficar.
- Estou brincando.
- Eu não. Falo sério, fique o tempo que precisar. Eu também moro sozinho. Na verdade, eu tenho uma companheira.
- Não quero incomodar a privacidade de vocês.
- Minha companheira é uma sucuri filhote (risos).
- Você tem uma cobra em casa?
- Ela foi deixada no meu consultório. Foi resgatada, na verdade. Traficantes de animais, sabe? Sou veterinário.
- Que triste. E que bom.
- Pois é. Bem, vou sair para comprar algumas coisas. Você quer algo.
- Papel, caneta e…
- Cigarros?

Só conseguia pensar na cobra. Levantei-me e devagar e fui até o aquário onde ela estava. Ao perceber minha presença, olhou para o vidro dos meus olhos e congelou. Silenciosamente, dissemos juntos a mesma coisa: “estou com fome”. Ela, de mim, eu… Dele.

À noite, resolvi conversar com Bruno e dizer que não precisava mais me hospedar em sua casa. Quando entrei na cozinha, senti um cheiro forte de páprica e pimenta do reino. Ele estava terminando de desligar o fogo da panela e me olhou como se eu tivesse estragado um aniversário surpresa. - Eu ia te levar o jantar no quarto, tudo bem bonito, poxa! Comemos, estava muito bom. Trocamos poucas palavras, pois não havia muito o que dizer mesmo. Mas naquele silêncio todo, uma tensão evidente puxava a cadeira e colocava os cotovelos sobre a mesa. Terminei, prato vazio, boca avermelhada, cheirando à fartura, mas ainda com fome. Fome dele.

- Bom, volte sempre, mas sem cair das escadas!
- Tentarei. Prometo.
- Tentará voltar ou não cair da escada?
- Os dois. E você tente me segurar se acontecer novamente.
- Fique tranquilo, já provei que sou bom nisso.
- (sorriso)
- Olha só, você sorri!
- Às vezes.
- Tente isso também.
- Boa n...

Dentro, novamente. Agora não por baixo, nem sozinho, nem pálido ou indisposto. Dentro. Eu estava vivo, vermelho, pulsando, transpirando pelo hálito quente, suando minha alma pelos poros. O que antes não passava de uma cama magra e preguiçosa, agora se desfazia em dunas de lençóis nos quais os corpos corriam um ao encontro do outro, por entre as capas finas e brancas dançando um balé único. Eu já não tinha mais controle algum e matava a fome ali mesmo, enrolado no corpo de Bruno - como uma serpente vidrando meus olhos em seus movimentos e sibilando em seus ouvidos feitiços, poesias malditas, segredos...

De repente, o peito sobe e eu sinto meu coração tropeçar como se uma pedra estivesse em seu caminho.  A cada gemido que eu continha, meu rosto parecia perder sua cor. Foi então que eu não ouvi meu coração retumbar. A cada trovoada de energia que os corpos soltavam, meus arrepios desapareciam. Foi então que senti meu espírito despencar. Caía do topo do céu a estrela da manhã. A sinfonia de desejos se tornou um barulho no fundo da cabeça - cortante feito navalha. Foi então que ele não mais me sentiu. Só seu ombro.

Quando tentei mover minhas mãos na direção das de Bruno, instintivamente, perdi as poucas energias que haviam sido recuperadas nas horas a dois. O pacto entre a vida e a morte estava rompido. Havia guerra. Tormento. Tempestade. E eu estava no meio - agora com ele. Mais uma vez, caído. Samael ferido.

- Consegue me ouvir?
- Sim… O que aconteceu dessa vez?
- Você caiu, novamente.
- Da escada?
- Não necessariamente (sorri).
- Olha, eu nem sei como me desculpar por todo esse trabalho que estou dando.
- Magina, acontece. E eu gosto. Estamos fazendo companhia um pro outro.
- Eu estou bem. Consigo ir pra casa agora.
- O médico disse para você repousar pelo menos mais três dias.
- Eu estou aqui há quanto tempo?
- Dois.
- Preciso dar um jeito nisso… Viver cansa.
- Já sei o que vou fazer.
- O quê? Por favor, não quero dar mais trabalho.
- Vou te ensinar a nadar.
- Hã?

Sufocamento. Toda minha dificuldade de respirar sendo potencializada. Agonia, desgaste, frustração. Água não era para mim. Mas lá estávamos nós. Bruno me segurava enquanto me debatia feito criança. Não conseguia me acalmar, muito menos confiar no corpo submerso. Mas ele não desistia. Ele, no caso, Bruno. Quando percebeu que eu não estava prestando atenção nas dicas que estava me dando, resolveu ser pontual:

- Olha, apenas escute o que vou dizer… Escute pra valer, ok?
- Que seja.

“Pense que você não irá afundar. Agora vá soltando o corpo levemente e inclíne-o. Isso… Respire…. Mais… Tá indo bem. Mexa os braços e pernas… Imagine que está voando. Agora aproveite… E voe.”

Nunca mais caí da escada. Mas desde o último tombo, minha cabeça não abandonou seu ombro. É nele que eu me descanso da existência. É para ele que eu sussurro - sem dizer uma palavra - como foi meu dia. Nele que minha mente se acalma e o coração acha abrigo. Mesmo que ainda haja muitos cigarros no meu maço e tantos outros entre os pulmões, respirar já não é tão difícil assim. Alguém surgiu para abrir as janelas do meu peito. Agora, o ar entra vagarosamente como brisa em fim de tarde. Enfim.

Toda vez que o peso do mundo passa de seus limites, Bruno me leva pra nadar. Com braços abertos e olhos bem apertados, eu voo. Eu vou.

(...)
Parecia sintoma de alguma doença séria - e rara. No entanto, de rara não tinha nada. Mas de doença… Tinha o nome de paixão.

E a cobra, "Esperança".

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Foi quando me encontrei...

A primeira vez que me vi e me senti, existi. Caí da cama e dei com a cara na realidade, marquei o rostro com o estrado amadeirado das estradas percorridos antes sem rumo, agora guiadas pelas vias do tempo. Vi e vivi uma vida que não era a minha, mas a que foi talhada na carne. Da beliche de cima, meus sonhos, expectavas, desejos, minha voz projetada no silêncio de uma oração, o teto de madeira, a lua dentro da lâmpada e as estrelas voando ao seu redor, matando-se incansavelmente. Na de baixo, o peso, o uniforme da escola, os afazeres, as broncas, a rua sempre agitada e cheia de confusão, eu dormindo comigo mesmo. Dois em um. Eu em nenhum.

As vontades eram tantas que sempre me faziam correr em busca do meu pico. Eu subia, subia, e subia em olhar pra trás, na sensação de que estava me aproximando  do alto. Só que nunca chegava. Era como achar que seria possível se cobrir com nuvens ou se amarrar em correntes de ar. Foi aí que me desequilibrei e tombei. Lá de cima  - que não era topo - eu despenquei. Foi difícil reaprender a andar com os pés e não mais com as ideias. Ainda assim, consegui. Ícaro de mim mesmo, não morri, trouxe lembranças de momentos que nem cheguei a viver, mas quis tanto, tanto que até meus olhos se esforçaram para pintar uma bela imagem do que seria se eu fosse só eu. E era a hora de ser mesmo. Eu.

Foi quando me encontrei... Quando a hora mais doída já não feria mais. Quando o que queimava era meu corpo a desejar o dos outros - iguais em formato, diferentes em sentimentos. Sem toque, sem beijo e troca de olhares, tudo se fez no silêncio da minha boca e barulho da mente. Se por fora eu era uma montanha, calada e paciente, por dentro era vulcão, sempre a reclamar, implodir, lambuzando-me do mais puro magma. Mais uma vez, estava eu em dois - na base e no alto. No pé do vulcão e no alto do morro. Subindo pra depois cair. Elevando e me levando só pelo prazer de então escorrer por entre minhas próprias pernas. Morno.

Foi quando eu me encontrei que descobri o que era se perder. O que era existir em lugar nenhum, só em si mesmo. Ser meio termo que não mais teme nem altura nem profundidade. Que não reclama se pegar a cama de baixo ao invés da de cima. Aprender que é possível transitar e não apenas residir. Que a escada na beliche servia tanto para subir quanto para descer. Que só tomba aquilo que voa e só voa aquilo que levantou do tombo. Eu queria flutuar, não ser mais montanha nem vulcão, ou ser os dois ao mesmo tempo. Eu queria aquilo que tinha acabado de encontrar: um garoto com pele de rocha e coração de lava.

Foi quando eu me encontrei no meio da beliche que pude ficar em paz e desfrutar do sono. Foi quando eu me encontrei dentro da montanha, pulsando como vulcão, que adormeci com meu próprio calor.

Meu próprio calor...

sexta-feira, 12 de junho de 2015

No fundo - entre o céu e a terra



No fundo de um táxi estavam os dois garotos. Os dois Vinicius. Um com acento, outro sem assento, espremido entre a timidez e a curiosidade. Envolvidos pela esfera misteriosa e convidativa da noite, trocaram poucas palavras - mas das poucas, muitas viriam a ser sentidas, ainda que mal ditas, entre elas, a "distância", à distância.

Castanhos

Ele não era daqui, nem de lá, era de longe mesmo. Magro, pequeno, mas com aparência de ter a carne dura. Olhava para baixo, para os lados e às vezes para mim. Captei por alguns segundos seus olhos escuros, profundos como o universo - uma janela para o que havia debaixo do seu peito. Chamou-me a atenção pela forma silenciosa em que sussurrou qualquer coisa nos meus ouvidos e, aos poucos, ressonou dentre de mim como música boa. Eu sabia que duraria tempo insuficiente para que a vida tomasse qualquer gole de rumo e nos juntasse de vez. Eu sabia que era só detalhe, que era rápido demais, que não deveria funcionar assim. E não funcionou, de fato. Mas os melhores momentos que tivemos foram justamente os que não estivemos. Em locais diferentes, achamos um em comum: o do bem-querer. Do meu me quer, tanto quando bem te quero. Eu virei carta, avião de papel, desejo, sorriso sem som, virei letra e então silêncio. Virei tanto que dei uma volta na minha própria vida e reencontrei ele novamente. Ainda com olhos castanhos. Ainda profundo como no fundo do táxi.

Azuis

Antes mesmo de entrar no carro, havia percebido uma movimentação que fazia vibrar as camadas superficiais da pele. Parecia que Zéfiro soprava meus pelos e os deixava em estado de alerta. Captaram, então, a fonte das ondas atraentes: um garoto. Camiseta com desenho egípcio, pele diamantística, sorriso largo e um par de pedaços de céu ocupando o lugar dos olhos. Não sei se ele me viu, mas eu me vi com ele. Entretanto, sou terra, sou pé no chão e acostumado a caminhar pela realidade sem procurar no alto das ideias alguma abstração - alguma vontade atendida. Desviei meus pensamentos e desejos daquele moço rodeado de amigos. Não foi o bastante. Mesmo o atalho que levava direto à racionalidade não conseguiu me tirar da estrada labiríntica pela qual escorrem os quereres. Lá estava eu, apertado no banco do táxi, ao lado dele, antes longe e impossível, agora trocando perfumes comigo. Depois disso, um laço delicado foi atado. Frágil, mas resistente. Eu quis, dessa vez, abstrair da realidade, sim. Quis esquecer da distância, do outro dia, da volta, da passagem comprada, dos dias que seguiriam nublados, sem dois céus pra me perder nas ideias que mais pareciam roteiros de filme... Quis fingir que a música seria a mesma coisa ouvida no "mono" de mim mesmo. Mas não foi, eu que fui. Voltei, virei letra, lembrança, coração no fundo da caneca... Tentei encurtar o tempo, cultivar o desejo sob controle, mas sou terra. Fico firme, estático e pronto pra não ser nada além do chão de mim mesmo. Onde caio, quebro a cara e recolho os próprios cacos.

No fundo, ficamos. Mas eu volto, prometo que volto, pra mostrar que há muito mais entre o céu e a terra do que uma noite de (des)encontros.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Segundo perdido

Viver é percepção daquilo que se sente. Dos muitos quilos de sentimentos que pesam. Mas o que eu senti? Quanto eu peso?

(...)

A sensação? A sensação é aquela que vem logo depois de você ouvir "quero me separar de você". É o segundo perdido no espaço de tempo entre o "eu te amo" e o "eu não te amo mais". Um lapso existencial que encurta distância entre passado e presente. Entre 3 anos juntos e 1 segundo separados.

O segundo perdido, aquele que fica pra sempre no vácuo das intenções... flutuante... E daí você vira as costas e sai andando sem rumo, tentando flutuar também... Caminha pra qualquer direção, perseguido pelos novos segundos que, agora gigantes feito minutos, tornaram-te único, sozinho, separado, solto, mas não flutuante, solto, mas não leve. Pesado e arrastado.

Andando, andando, andando, com as palavras correndo na cabeça. "Não quero mais... não posso mais", "Não sinto mais, mas sinto muito", e por aí vai - você sozinho, perdido.

Enfim... Andando pra fugir do segundo perdido. Primeiro, você.

No escorrego do rosto corado

Bebo goles com sede
de engordar a desesperadas goladas
essa garganta há tempos vazia
desce quente pela traqueia
enquanto a barriga, fria, cozia

Bebo sem parar
consumo a seco o suco
sem dar paz à boca alheia
quem sente o gosto é o corpo
e a pele que, de repente, arrepia acesa

Bebo sem hesitar
vejo no fundo do copo
meus olhos marejados de saudade
Incapaz de pensar duas vezes
tomo três pra molhar as vontades

Bebo goles sem arrependimento
trançando os pensamentos gingados
Caio pelas ruas entre as pernas
ainda com choradas não lagrimadas
no escorrego do rosto corado, em si mesmo vingado

segunda-feira, 18 de maio de 2015

É preciso sujar os sapatos

Elas saíram da caixa como duas pepitas de ouro. Eram amareladas, as botas, e me lembravam mel. Seja como for, nada melhor do que ter nos pés os sapatos que escolheu. Não foi presente, não foi prêmio nem doação - foi vontade atendida. A sensação era ótima. Escolher e ser escolhido.

O primeiro dia foi estranho. Eu andei tordo, sem saber como dar as passadas, mas ainda assim sentindo o mundo a admirar meu desfilar. Botas novas que ensinavam a andar, trilhando caminhos desconhecidos, fazendo minha postura se adaptar... endireitava a coluna às custas da rendição dos joelhos. Doía, só que valia a pena. Valia o pesar. Surgiu, então, a chance de estreá-las numa festa - lugar onde somos (só) praticamente aquilo que aparentamos ser. Eu estava seguro quanto minha imagem, o que era raro. Decidi aceitar o convite. Convite esse que veio daquele que, ao te olhar, congelava o tempo e aquecia o coração. Decidi aceitar duas vezes. E as botas já se mostravam ansiosas.

Cada dia era um ano. Demorava, arrastava-se, custava a acabar, mas acabaria em festa. Tomei todo o cuidado para que o par de botinas não sofresse nenhum dano até o fatídico evento. Caminhava - agora acostumado com o gingado própria delas - prestando atenção no chão, sem baixar a cabeça, claro. Era preciso ver onde pisava, literalmente. Tropeçar estava fora de cogitação. Um dia antes, fiz questão de me vestir com a roupa que pretendia usar e pensei: eu me escolheria. A sensação era ótima. Escolher e por mim ser escolhido.

Acredito que seja importante reproduzir não só os detalhes do momento como também todos os sentimentos que nele se resvalavam. Você para na frente da porta, respirando fundo, olha para o teto como se alguém superior lhe observasse e sorrisse de leve, então mira a visão adiante e vê a pessoa que lhe acompanharia até a festa. Ela se aproxima e cresce, cresce demais, vai ficando gigante do lado de fora da sua casa, e maior ainda do ladro de dentro do seu peito. Um beijo no rosto de rachar qualquer expressão sólida, você sorri entregue. Acha que escolheu e foi escolhido. Ele não percebe suas botas, mesmo elas percebendo ele, aproximando-se de seus pés na tentativa de - já no caminho - irem formando pares. Fomos.

Quando pisei no salão, senti-me cheio. As pessoas ali, ocupando todo o espaço, preenchiam-me. A música era animada, convidativa, boa para dançar a dois. Foi então que eu fiquei preocupado com uma coisa: vão pisotear minhas botas e ele ainda nem as viu! Eu queria estar perfeito para quando fosse reparado, apresentasse a imagem que escolhi ter - e que tinha. Fiquei no meu canto, enquanto ele passava de pessoa em pessoa sorrindo e se deixando sorrir. Sentia que a hora da minha dança estava para chegar, então acalmei-me e aguardei. Em poucos segundos, já olhando para os próprios pés sem ver as botas, eu vi pequenos respingos a chovê-las... Caíam timidamente e ainda assim escureciam a superfície dos calçados. Eu estava chorando... Chorava porque já sabia o que estava para acontecer. E aconteceu.

Subi a visão e lá estava ele aos beijos, feliz, completo, com seu novo par a dançar. A imagem era bonita em sua essência, mas triste na minha. As botas estavam manchadas, eu estava machado, manchei-me com o sal do desgosto. Então, já com os sapatos sujos - batizados pela realidade dura, prontos para o mundo -, convidei-me para dançar. Escolhi-me e fui escolhido.

Girava a cabeça, soltava os braços, sincronizava os ombros com a cintura, libertava-me, divertia-me, rodava, aproximava-me dos outros corpos frenéticos, sorria, pisavam-me os pés, esmagavam-me as pernas, colavam-me, pressionavam-me e assim o salão ganhava vida. Doía, só que valia a pena.

Eu queria ele ao mesmo tempo que me mantinha longe. Eu era escolhido por outros enquanto não saía de perto de mim... Assim foi, assim aconteceu. Tristeza e alegria num samba único. Unidas, escolhidas uma pela outra.

Às vezes, é preciso sujar os sapatos.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Três doses de corpos vazios



Nova

Volta descalça pela estrada de barro, após uma noite de dança no sertão. Ela vem rodando de leve, sorrindo, descabelada, despreocupada. Suave como nunca. Vê-se aos poucos conforme o dia amanhece, rosado. Lembra-se de que não lembra mais o caminho de casa. Que anda pra não ficar parada, mas sem correr, pra não competir com as horas - aquelas também perdidas.

Cada passo adiante é um pulo para longe do passado carcereiro. Um pulo da ponte que a levava a lugar nenhum - justamente para o nada em que gostaria de estar. Um salto dos ponteiros do relógio no pulso alheio - pontualmente a lhe obrigar a levantar e ir fazer café.

Ela, então, sente seu corpo sendo seu novamente e não mais dos outros. Beija os próprios braços, aprecia o perfume de gente impregnado na pele. O corpo dela. O corpo é dela, banhado dos suores de outros senhores no cangote, do cansaço da dança no cangaço da vida seca. Devolve-se num abraço cheio de si. Finalmente, nova em si.

Cheia

Todos tinham ido embora. Quase todos. O próprio bar já não estava mais lá. Ele vagava parado, em torno de si mesmo, cheio de rastros e restos dos muitos e muitas que ali se desfizeram em embriaguez. Chão salgado, do qual nada brota senão a saudade. Mas eles ficaram. Os dois ali, juntos, colados num eterno e perdido espaço entre o "oi" e o adeus".

Ele chegou tropeçando nas próprias vontades. Queria dançar, mas não sabia. Queria olhar, mas não a via. Quando a viu, quis beijá-la, mas não a conhecia. Quando finalmente a conheceu, entre uma dança torta e outra, fechou os olhos, esqueceu de perguntar seu nome, selou seus lábios e colou no seu colo. Ali ficou, fincado no entre braços da garota mais linda que nunca viu na vida.

Ela, por usa vez, vazia permanecia. Dava-se a ele porque não sabia como não ser mulher. Foi doutrinada a servir, mesmo que para isso não servisse a si mesma. Abraçou o jovem de pele incandescente. Mas vazia permanecia. Pois já não acreditava mais na dança dos homens, muito menos em seu toque suplicante, sempre em busca da mãe perdida ou da mão da amante escondida.

Ela era, para ele, santuário e jardim forrado de rosas. Para si, contudo, era refúgio, como um bar vazio e cansado no meio do deserto. Sempre a abraçar os outros, sempre cheia de gente. Sempre cheia de tanta gente.

Minguante

Na calçada, o beiço da rua, ele senta e figura a fossa da própria existência. A cena é típica: cabeça entre as pernas, mãos sobre os joelhos, lágrimas pingando no chão seco, tragadas pela sede do solo.

Esforça-se para erguer a muleira novamente, mas o peso da mágoa não deixa. Carrega em sua nuca o nunca mais, o fim, a separação, a rachadura no melhor dos retratos - aquele que pinta o amor intenso até ontem seu. Homem que foi abandonado pelo seu homem. Lobo abandonado pelo seu próprio lobo - o homem do homem.

Deseja entender como pode o amor acabar repentinamente se, para nascer, custa tanto ao ser.  Grita pra dentro da boca, num murmurar animalesco, toda a dor da ferida recém-aberta e empurra goela abaixo cada palavra não dita. Cada frase maldita. Acaba o querer, vai-se a paixão, resta nada além dele mesmo, meio cheio, meio vazio. Minguado.

 Corpos como botes vazios, navegando à deriva sob os luares.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Nascer do dia



O seu medo de sair e ver o dia nascer era grande demais. Por isso passava a maior parte do tempo escondido na penumbra do quarto. Queria luz, mas que ela viesse do olhar dos outros. Queria arejar o ambiente, mas com a presença de quem um dia foi sua. Foi e não voltou. Só você ficou.

A angústia lhe fazia rolar sobre os lençóis. Pedia para voltar no tempo, resgatar o que a vida transformou em memória e sentir novamente o sabor da alegria a temperar teus lábios. Perdia-se pelos mesmos quereres, sem se perceber. Abandonou-se com facilidade, afinal, difícil mesmo era cuidar de si, sozinho. Um mimo colossal embalou os dias vestidos de noites e as noites vestidas de lua brilhante. Era só soluço sem solução. Ficava paralisado, mirando o céu ainda mais apagado que seu semblante. Olhava para o forro estrelado, mastigava algumas palavras tristes e praguejava contra o presente - que de presente só tinha aquele belo embrulho a esconder frustração. Você queria ganhar o que perdeu, mas presente nenhum lhe daria isso, muito menos lhe traria isso. Era você que se traía ao ansiar por algo que seu estômago embrulhado já havia devolvido para o mundo. Um amor indigesto. Uma úlcera de regalo.

Mas, de repente, você me achou no silêncio. Eu era um monte de palavras a desfilarem diante dos seus olhos, travestindo a tristeza com fantasias literárias. Transformando a realidade seca numa chuva de possibilidades. Entrei pela porta do seu canto, respeitei as trevas que lhe envolviam, abri a janela e pedi para que colocasse a cabeça para fora. O mundo, o céu e todos os seus mistérios são bem maiores do que o abismo na alma, meu caro.

Seu sorriso riu pro meu peito. Seu rosto deitou no meu coração. Seus olhos pegaram nas minhas mãos e elas olharam para seus cachos. Desenharam dunas de areia escura com a ponta dos dedos enquanto eu - texto, escrita, letras, frases, começo, meio e fim - sussurrava repetidamente "Agora só falta você" dentro da sua boca. Ambos ouvimos o sangue correndo pelos músculos, irrigando nervos e os pulmões batiam aceleradamente. Corpos babilônicos trocando as funções e se desencontrando no labirinto de novos desejos. Mas corpos iguais. Entropicamente iguais.

Finalmente você aprendeu a querer mais do que queria. A querer o que não conhecia. Na manha - e manso -, despertou-me com um beijo quente, espreguiçando-nos. O sol nos paria sob o ouro matinal e a escuridão, escondida, fugia para dentro das nossas bocarras e seus bocejos recém-nascidos.

Você venceu o medo de ver o dia nascer. Pegou-me pelas manhãs e me levou pra ver o mundo.

Foi e não voltamos.

domingo, 5 de abril de 2015

Retorno à distância

Escrevi algo breve que desse apenas uma dica sobre o que estava sentindo. Mesmo com todos os aparatos tecnológicos de hoje, hoje eu quis ser mais substancial, orgânico, quis colocar o peso da minha mão na caneta e fazê-la dançar pelas linhas. Tudo isso para dizer que te escrevi um bilhete.

A luz era baixa, convite perfeito para os mais diversos tipos de cegueira. Eu tive a sentimental. Enquanto dançava com a música - e não com as pessoas - via pouca coisa. Apenas vultos, meus pés se entendo e as cores do ácido decorando o lugar. Em meio a tantas sombras, um sorriso. Não era pra mim e por isso tive vontade de tê-lo. Os olhos puxados me rasgavam para perto de você. Metade de mim ia, a outra dançava. Comecei a enxergar.

Magnetismo e gravidade. Inércia, insistência e distanciamento estratégico. Corpo a postos, desejo na ponta da língua, sem sair - apenas estando. Pele pedindo toque; toque clamando por aperto, aperto procurando carne; carne exalando suor; suor perfumando as vontades; vontades enrijecendo os músculos; músculos dando peso aos corpos; corpos a postos, apostando - quem vai beijar primeiro? Perdi pra mim mesmo. Ganhei seus lábios. Paguei pela língua.

Quando a música acaba, também acabam os motivos para ser mais do que um. Não há necessidade de se dividir novamente, de compartilhar os quereres ou se doar sem dor. O silêncio coloca todo mundo nos eixos. Ele vem para educar e tirar do rosto o sorriso de final de festa. Mas nós voltamos conversando, rindo, imaginando, sem querer, querendo-se novamente... e novamente... e novamente, até que chega a hora do adeus. E que "adeus" mais "a mim". Só eu ali, pra você, pra ser seu, e fui - sem saber que não voltaria mais.

O dia seguinte não existiu. Nem o outro. Tive que escrever um bilhete pra você. Sei que nunca será entregue. Que você nunca irá lê-lo, mas foi preciso. Nele, uma simples palavra do tamanho das maiores distâncias já percorridas por alguém:

"Volte".

Vela



Quando o filho chega em casa, a mãe apaga a vela.

Toda saída é um mistério quando se vive em terras incertas. Ruas arbitrárias que desenham um mapa torto e tortuoso nas regiões periféricas da cidade. Fios que de concreto só têm o asfalto. O laranja-mercúrio banha as carcaças cansadas e feridas que, em meio à meia noite, caminham de volta para os lares, refúgios, quartinhos de empregada ou qualquer canto que as valha - e as valide.

Sob a cômoda, a vela acesa, firme e fiel à fé que segura o coração de mãe sempre preocupado. Ao sair, ela despeja sobre sua cria bênçãos ancestrais, como se a cobrisse com seu véu matriarcal, protegendo-a de todos os males e todos os outros por aí vagando.

Os ponteiros do sofrimento começam a correr, a garganta fica seca feito a de uma ampulheta e cada grão de areia se faz sentir gole a baixo. A mãe reza, acende sua vela e deseja mais um dia de vida. Fora de casa, o mundo se faz mundano e não há mais útero para envolver aquilo que é frágil. Fora de casa, nascemos e o que vem primeiro é o choro - o nosso. O da mãe, ela segura. Guarda junto com a preocupação, ao lado da vela, acesa, desfazendo-se em lamento. Gotas e mais gotas de si mesma, vela e mãe se confundem. Uma chama pela vida do filho, outra chama pela própria morte. Unidas, mantêm-se aquecidas na mesa da cozinha e no pires de porcelana. Encaram-se, trocam brilhos no olhar e lágrimas de sal e cera. Permanecem na vigília.

As tarefas cotidianas são cumpridas. Longas, mas terminadas antes mesmo da memória resgatar o sentimento de aflição. Tudo em seu devido lugar, menos o sossego que demora a deitar no peito. Menos a escuridão que não vem cobrir a luz bucólica oscilando a cada corrente de ar - a cada suspiro da mulher protetora que ora, ora firme, ora, ora soluçando. Será que ele vem hoje? Será que ele vem bem, o meu bem?

Dói ser mãe. Dói ser filho. Dói ser filha. Dói ser. Causa medo, incerteza, tremedeira e febre interna. Entretanto, é o que faz a vida pulsar. É o que a desafia, deixando-a à beira da sorte. Apegada à rotina, torce para que ele chegue sempre no mesmo horário e com ele a tranquilidade. Tudo pronto para recebê-lo, menos o sorriso no rosto. Esse não sai, recusa-se a aparecer para cumprimentar os demais ao redor. A vela, pela metade, começa a desistir. Mas não diz nada. Para que mais sofrimento?

O portão range. Os passos acelerados aumentam de volume e profundidade. Não estão se arrastando, estão marchando em ritmo de manada rumo ao abrigo. A chave gira dentro da fechadura e então morrem os ponteiros da angústia. Para de correr o tempo metálico que não admitia pausas para a velha mãe respirar e conferir se ainda lhe restava alguma força. Eles se olham, ela chora aliviada por trás do abraço titânico. Ele não entendo o porquê de tanta preocupação, afinal já é crescido e sabe se defender. Contudo, compreende que, tratando-se do lugar onde nasceu, das cenas violentas que presenciou e por muitas vezes passou, não há como se defender do desconhecido - e cada dia se faz como uma bala no bulbo da pistola. Cada passo é um tiro às cegas contra a cabeça de alguém na sacada, na calçada ou na sala de casa. Compreende e se entrega aos braços da matriarca. Sente que conforto maior que esse não há. Sob a luz fraca do fogo exausto, ele aquece as mãos, abre as panelas e larga os ombros nas costas da cadeira. Ela some por alguns segundos.

Silenciosa e discreta, celebra consigo mesma a chegada do seu eterno bebê. Canta os parabéns - nessa data tão querida - por mais um dia de vida. Olha para a pobre dama vestida de branco, caída e exausta e então sente que o desejo que fez ao acendê-la se realizou como o prometido. Mais um dia de (re)nascimento. Aniversário diário. Comemoração incessante. Todos os dias, ela, ritualística, pari sua criança e regojiza ao vê-la retornar para o seu aconchego. Agora sim, agora ela pode fazer o que veio fazer ao entrar em seu quarto.

Quando o filho chega em casa, a mãe apaga a vela.

terça-feira, 31 de março de 2015

Qualquer canto

Um canto. Aquele que nunca ninguém olhou. Perdido na poeria que cobre meus dias. Um canto qualquer, mas que possa ser meu. Introspectividade. Se eu rezasse, pediria por isso. Pelo vácuo, útero invisível da mãe cósmica. Um lenda, um mito, um canto qualquer.

Passos para trás, corrida invertida, "desavanço", desavença sentimental e todas as estruturas dentro de mim ruindo. Uma dança lenta rumo ao chão. Mais poeira. Lembranças, alegrias guardadas em porta-retratos, tudo o que um dia me vez ser quem sou, hoje destroça-se livremente. Bela visão. Nasce então o horizonte angustiante que nada me traz, só afasta. No máximo, instiga o desejo de ser tragado ainda em vida.

Os males que matam o corpo, alimentam a alma. A fome some, mas continua a me devorar as carnes. A vontade de se limpar, de lavar a pele e o rosto, some. Mas continua a sujeira em mim. Nenhuma luz batizando os olhos, mas a cegueira afetiva continua em mim. Qualquer canto que preencha meus ouvidos e me desprenda da realidade, por favor. Do concreto, do pavor, por favor. Qualquer canto como leito - e eu me deito, sim. Protejo-me, prometo-me.

Sob o ascendente da destruição, sinto a gravidade anulativa me puxando. Seus braços pesados brincam com as batidas debaixo do peito. Pesa toneladas - ao passo em que alivia a mente. Corpo e pensamento dissonantes, repudiando-se numa guerra eterna cujo vencedor levará nada como prêmio. Tempos em que minha existência se fragmenta e espalha-se diante de mim. Dos pedaços, meu todo disfarçado de pouco. Dos pedaços, um canto qualquer ganha status de abrigo.

Por favor, deixe-me morrer. "Gosto pela destruição", "você gosta disso, de desabar", "esse drama todo, é isso que você quer". É sim. O Enforcado. A tristeza transforma um canto qualquer em cama desarrumada. Sempre a espera de quem não devia ter se levantado. Sempre pronta pra receber os corpos que se arrastam - e se gastam.

Na esquina, com cigarros e brisa gelada. No céu, com a noite pessimista e as estrelas penduradas em suas orelhas. Nos sapatos que não me servem mais, com o desejo de ficar que consome os joelhos. Num canto qualquer, com o perfume a me confundir. Achando-me patético por insistir em gostar de quem não se encantou. Mas achando-me, o que é importante.

Achando-me num canto qualquer.


quinta-feira, 26 de março de 2015

Bem-vinda

Toda desgraça é bem-vinda. Recebida de portas e pernas abertas na dor de cada promessa de prazer duradouro. Ouro de tolo, falsa, desgarrada, mas plena, sorridente, neurótica. Toda desgraça é convidada para as festas, pois dela emana o perfume do caos, da desordem e de sua boca escorre o suco da maçã proibida. Toda desgraça dá graça ao monótono. Ela dança com os sentidos, murcha as flores e espreme suas pétalas nos copos alheios. Enfeitiça, sim. E muito.

Toda desgraça é bem-vinda. Só.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Águas em mim




Sempre que o barulho do mundo me coloca à beira do limite, prestes a saltar do trampolim, eu olho para o azul absoluto das águas e busco nas ondas sonoras um silêncio só meu. Desejo, das profundezas do meu querer, algo capaz de tapar meus ouvidos, preenchê-los com o vácuo do nada e, ao mesmo tempo, embalá-los numa frequência musical emitida somente para mim. Eu me afogo em versos, letras, vozes de sereias curiosas e quando percebo, estou submerso no meu próprio universo. Pego os sentimentos e lembranças e os levo para a Atlantis perdida na maré de saudade, onde ninguém além de mim é capaz de chegar.

Do alto, encho os pulmões com a última rajada de ar. Estufo a caixa torácica e pressiono a borda da esteira com a ponta dos dedos. Entro numa vibração única, localiza entre o passado e o futuro. Finco-me no presente e conto os segundos para me desprender. Aos poucos, os pelos do corpo despertam e fazem na nuca um carinho suave. Se a pele esfria, o sangue ferve. Molho os lábios com o que resta de saliva e concentro-me em fechar os olhos sem perder a bela imagem das águas estampando as vistas. Escureceu em mim. Pulei.

A queda me levou ao pico das sensações. Eu, filho dos rios, mares e cachoeiras, escorpiano, nascido da água e batizado na água, voltei ao útero que por tanto tempo me regou. Eu, semente, broto, hoje flor de lótus, banho-me nos braços longos da deusa marinha... O bom filho à água retorna.

No âmago daquele universo aquático encontrei abrigo. Tudo o que vivi foi se tornando silêncio e somente a sinfonia dos corais coloriam meus sentimentos. Da concha cravada no meu centro, amanheceu o coração perolado e então soube, naquele instante, que a joia mais rara sempre esteve em mim, só precisava ser colocada no lugar certo.

Só precisava ser colocada no fundo da alma. 

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Fiz-te

No barro da realidade enterrei minhas mãos. Tirei uma lasca do todo e comecei a modelar você. Meus dias se arrastavam vazios, esparramados por um longo campo deitado diante do horizonte labiríntico onde o olhar se perdia a cada piscada. Eu precisava de mais - que não fosse mais de mim mesmo. Por alguns minutos enchi os pulmões de ar, soprei o monte de ideais que se acumulavam na cabeça e embaralhei meus desejos. Pouco a pouco, fui organizando o que viria a ser meu. No caso, você. Fiz-te.

O menino de terra

Tomei cuidado para não deixar que seus braços fossem longos demais. Seu abraço deveria ser curto, firme, envolvente e seguro. Em seguida, trancei as pernas para que no cainhar houvesse ginga, agilidade e graça. Cada passo, um desvio pra mais perto de mim. Ombros largos, pista para meus entrelaços, peito vazio, pro meu querer residir e a pele lisa, banhada pela cor do sol e do solo fértil. Ainda evitava trabalhar seu rosto.

As mãos eram pequenas feito castiçais, próprias para sustentar, à luz de velas, o clarear do meu sorriso ao te ver surgir diariamente. Penumbra nenhuma seria capaz de nos apagar. Assim ficou seu toque: um alicerce indispensável, um "dar de mãos" morno e delicado que em dias de ventania me soltava um beijo no ar. A inspiração estava em seu ápice e me fazia perder horas ganhando anos de dedicação à sua concepção. Seria o parto a me dividir, tão esperado e tão doloroso. Cheio de prazer e medo, de "não saber".

Seu rosto era redondo, com pequenos olhos rasgados. Uma boca sutil, desenhada à ponta fina e que revelava o céu estrelado da boca a cada risada larga. O nariz se curvava em queda livre, despreocupado com a simetria alheia e comprometido apenas com a composição daquele que viria a ser meu novo horizonte - minha nova razão de se perder. As orelhas eram arredondadas como feijões e serviriam de entrada para meu sussurrar chegar até seus pensamentos mais altos.

Nos cabelos, uma tempestade. Redemoinhos, furacões, caracóis, emaranhado de cachos, maré cheia de volume, conchas perdidas entre o mangue de fios... Leveza, maciez, delicadeza, sem começo nem fim. De repente, caos, anarquia, nuvens carregadas... O topo de suas ideias era assim, um olimpo decadente, cada vez mais humano. O chuvaréu que precede bonança s(em) mim.

Pronto. Feito. Fiz-te. E quando abriu os olhos, não me reconheceu nem ao menos esboçou reação. Apenas encarou-me. E mesmo com todo meu esforço em demonstrar o quanto de amor já depositava em sua existência, nada o motivava a me retribuir tal sentimento.

Fiz-te por fora, ao meu modo. Mas por dentro você sempre será mistério. Coração não se modela.



terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Toque de areia


Das mãos secas, o toque de areia corria pela pele feito rio de um passado esquecido, deixando nas dunas curvilíneas do corpo deitado um rastro de ontem interminável. Afundavam-se os dedos confortáveis naquele desejo  movediço e lento, morno e suave que me fazia erosão nos lábios. Deixava o sol queimar a cama amarelada, invejar nossos dias mais longos e ser rei somente quando, cansados, cochilávamos sob seus coléricos raios ultra violentos.

Quantas vezes você me deixou escorrer pela garganta da sua ampulheta? Quantas vezes eu fui muito no começo e quase nada no final? Quantas vezes repetimos o tempo em grãos, contanto cada primeiro dos nossos segundos beijos? Recontando as sensações numa tentativa humana - demasiada humana - de viver o que foi bom como se fosse, de fato, pra sempre? Sempre assim. Todas as vezes. Muitas, inclusive.

Esfarelados no sofá da sala alheia, correndo pra não pegar chuva demais ou se cobrindo de maré cheia, amávamos-nos assim, por todos os cantos onde poeira fosse aceita. Deixávamos para o mundo um (pó)uco de ambos. E quando os dias difíceis vinham fiscalizar nossa bonança, você me sacudia da sua pele, tentando se libertar daquele rastro gasto de vontade incessantemente latente. Mas numa próxima brisa, lá estava eu novamente, dissolvendo-me em você. Cobrindo meu homem de outro homem.

Toque-me, sinta minha tempestade de areia dançar com seu corpo, feche os olhos, evite-me aos poucos, mas envolva-se como nunca antes. (A)Funda-se a mim.

Pois da areia viemos, e na areia nos amaremos enquanto houver deserto à flor da pele.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Alcateia

A fome nunca passa. Desde pequenos, a fome sempre esteve com eles.

Chegam os três silenciosamente no local repleto de presas. Os olhos estão opacos, o que lhes permite transitar pelos corpos despercebidamente. Eles reconhecem cada um presente pelo cheiro, pelos movimentos distraídos e aquela fragilidade característica de quem nasceu pra ser devorado. Andam em círculos, separados, mas conectados pela fome. Sempre fome. Três lobos famintos, prontos para caçar, cada um ao seu modo, mas todos com o mesmo objetivo. Comer.

O primeiro desliza entre as vítimas com seu pelo vistoso e rosto manso. Pede carinho, pede mão no pescoço, envolve o corpo ao do alvo e dança livremente. Seus olhos vão se acendendo como chama de vela e causam hipnose imediata. Ele ri sem mostrar as presas - sem assustar a presa. Ela, por sua vez, sente um perfume diferente e treme, deixa ser conduzida, acredita na segurança que aquela criatura bela transmite por meio da respiração calma e paciente. Quem tem pressa come cru. E a fome sabe esperar a hora certa de cobrar seu dízimo. Ele prepara o ataque como se executasse tal prática há séculos. O chamado ancestral não falha e quando o corpo franzino menos percebe, está dentro da bocarra escancarada do lobo. Sangrando de desejo e morrendo de vida. Ele não se farta, busca mais, sempre dançando, sempre usando seu gingado como armadilha. Sempre conseguindo mais do que pode devorar.

O segundo se mantém nas sombras. Observa a movimentação, fixa o olhar penetrante e rosna de leve como se advertisse a todos sobre sua raiva animalesca. Ele deixa claro que está ali pra atacar e sabe que a melhor caça é aquela que se permite ser pega. Como se estivesse farto e bem alimentado, caminha soturnamente entre os pés alheios, sem encostar neles. Quer ser vulto, sombra, mistério e rondar a comida até que ela não aguente de curiosidade e salte em sua direção. Seu ossos são evidentes, um lobo velho e enrijecido pelo tempo. Os olhos refletem uma luz prateada e fúnebre. Olhos de quem promete descanso eterno. De repente, altera-se o ar e o som. Alguém se aproxima dele, rouba de suas costelas arrepios e então puxa suas patas para o próprio quadril. Ele não mira sua visão diretamente para o rosto da vítima. Espera ela suplicar. Quando torna-se insuportável resistir ao "eu-oculto" daquela besta, a presa se oferece. Ele come silenciosamente, sem dividir com os outros dois, só com a fome. E então some.

O último lobo define seu alvo desde o primeiro contato com a multidão. Inseguro quanto a força de sua mandíbula, absorve dos outros dois o "modo de caçar" e se torna completo. Seu pelo espesso e visível impressiona a todos. Seus movimentos leves e repetitivos servem de convite - anunciam a vontade de ser tocado. Nem manso, nem raivoso. Ele é centrado. Aproxima-se da caça, imita seus passos, compreende sua intenção, toca e deixa ser tocado, cai no encanto e esquece da fome. Este é seu diferencial. Dos três, é o único que consegue esquecer da fome e querer da vítima apenas o apego. Quer pertencer, ser de estimação, ser levado pra longe, pra uma casa distante e então permitir-se ser domesticado. Quer abandonar a alcateia para então conviver com aquela criatura fraca e de sorriso duvidoso. Sua barriga estremece, ele uiva de desespero e então morde. Uma única mordida. Sente o sangue escorrendo. O seu. Foi mordido também, Mordido pela própria presa; pelo próprio alimento; por uma criatura diferente de si, mas tão cheia de fome quanto. Percebe então que seu tempo ali acabou. Uiva, avisando para os demais que está partindo.

Vai e leva consigo a fome que não (o) matou.