Elas saíram da caixa como duas pepitas de ouro. Eram amareladas, as botas, e me lembravam mel. Seja como for, nada melhor do que ter nos pés os sapatos que escolheu. Não foi presente, não foi prêmio nem doação - foi vontade atendida. A sensação era ótima. Escolher e ser escolhido.
O primeiro dia foi estranho. Eu andei tordo, sem saber como dar as passadas, mas ainda assim sentindo o mundo a admirar meu desfilar. Botas novas que ensinavam a andar, trilhando caminhos desconhecidos, fazendo minha postura se adaptar... endireitava a coluna às custas da rendição dos joelhos. Doía, só que valia a pena. Valia o pesar. Surgiu, então, a chance de estreá-las numa festa - lugar onde somos (só) praticamente aquilo que aparentamos ser. Eu estava seguro quanto minha imagem, o que era raro. Decidi aceitar o convite. Convite esse que veio daquele que, ao te olhar, congelava o tempo e aquecia o coração. Decidi aceitar duas vezes. E as botas já se mostravam ansiosas.
Cada dia era um ano. Demorava, arrastava-se, custava a acabar, mas acabaria em festa. Tomei todo o cuidado para que o par de botinas não sofresse nenhum dano até o fatídico evento. Caminhava - agora acostumado com o gingado própria delas - prestando atenção no chão, sem baixar a cabeça, claro. Era preciso ver onde pisava, literalmente. Tropeçar estava fora de cogitação. Um dia antes, fiz questão de me vestir com a roupa que pretendia usar e pensei: eu me escolheria. A sensação era ótima. Escolher e por mim ser escolhido.
Acredito que seja importante reproduzir não só os detalhes do momento como também todos os sentimentos que nele se resvalavam. Você para na frente da porta, respirando fundo, olha para o teto como se alguém superior lhe observasse e sorrisse de leve, então mira a visão adiante e vê a pessoa que lhe acompanharia até a festa. Ela se aproxima e cresce, cresce demais, vai ficando gigante do lado de fora da sua casa, e maior ainda do ladro de dentro do seu peito. Um beijo no rosto de rachar qualquer expressão sólida, você sorri entregue. Acha que escolheu e foi escolhido. Ele não percebe suas botas, mesmo elas percebendo ele, aproximando-se de seus pés na tentativa de - já no caminho - irem formando pares. Fomos.
Quando pisei no salão, senti-me cheio. As pessoas ali, ocupando todo o espaço, preenchiam-me. A música era animada, convidativa, boa para dançar a dois. Foi então que eu fiquei preocupado com uma coisa: vão pisotear minhas botas e ele ainda nem as viu! Eu queria estar perfeito para quando fosse reparado, apresentasse a imagem que escolhi ter - e que tinha. Fiquei no meu canto, enquanto ele passava de pessoa em pessoa sorrindo e se deixando sorrir. Sentia que a hora da minha dança estava para chegar, então acalmei-me e aguardei. Em poucos segundos, já olhando para os próprios pés sem ver as botas, eu vi pequenos respingos a chovê-las... Caíam timidamente e ainda assim escureciam a superfície dos calçados. Eu estava chorando... Chorava porque já sabia o que estava para acontecer. E aconteceu.
Subi a visão e lá estava ele aos beijos, feliz, completo, com seu novo par a dançar. A imagem era bonita em sua essência, mas triste na minha. As botas estavam manchadas, eu estava machado, manchei-me com o sal do desgosto. Então, já com os sapatos sujos - batizados pela realidade dura, prontos para o mundo -, convidei-me para dançar. Escolhi-me e fui escolhido.
Girava a cabeça, soltava os braços, sincronizava os ombros com a cintura, libertava-me, divertia-me, rodava, aproximava-me dos outros corpos frenéticos, sorria, pisavam-me os pés, esmagavam-me as pernas, colavam-me, pressionavam-me e assim o salão ganhava vida. Doía, só que valia a pena.
Eu queria ele ao mesmo tempo que me mantinha longe. Eu era escolhido por outros enquanto não saía de perto de mim... Assim foi, assim aconteceu. Tristeza e alegria num samba único. Unidas, escolhidas uma pela outra.
Às vezes, é preciso sujar os sapatos.
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