domingo, 22 de novembro de 2015

Sala para estar



Dez e meia da manhã. Eu havia afastado todos os móveis do centro da sala. No meio do piso gélido, um maço de cigarros fechado, a garrafa inseparável, alguns discos espalhados e o baralho de tarô. Acendi o primeiro, traguei a segunda, toquei o terceiro e li o último. Era um ritual de passagem para me levar de volta ao "eu" perdido no "você". O Enforcado sobre nós.

Livrar-se do vício é uma experiência imensurável. Por mais que digam o quão difícil é passar por esse processo, não consigo detalhar o que seria "duro" e o que seria "suave". Sinto como se você uma mistura, algo amorfo que ocupa espaço dentro de nós, escorre, evapora, às vezes fica sólido como um bloco de pedra, mas nunca permanece o mesmo. Os vícios dançam com nossos sentidos - e isso eu sinto. Faz sorrir quando é para chorar e chorar duas vezes quando é para sofrer. Deixa nos lábios um gosto amargo de despedida e nos olhos uma fome diferente que ronca a cada piscada na espera de uma mensagem ou braços abertos num sorriso. Aparentemente, falo como se estivesse descrevendo uma sensação excitante - ou pelo menos sedutora o bastante para valer o risco de desfrutá-la. Mas então por que preparar toda a sala para o período de "desintoxicação"? Sinceramente, não sei. Apenas faço o que tem que ser feito. Às vezes a gente precisa misturar o "sim" e o "não", o "certo" e o "errado", no intuito de promover uma dança entre a razão e o coração.

Dancemos, então...

Depois do primeiro gole, senti confiança. Fechei os olhos, uni as mãos e estralei os dedos. Daí em diante, revirei as fotos na gaveta da memória e fui rasgando uma a uma, mesmo sem querer e sem acreditar que sumiriam para sempre. A tentativa já valia bastante. Todos os pequenos momentos que eu fiz questão de amplificar com minhas lentes começaram a revelar suas falhas e real (in)significância. O primeiro vício, então, revelou-se: meu apreço por detalhes. Aqueles pequenos pontos que atraem a visão por si só. São como palavras minúsculas ditas durante grandes declarações. Por que gostar tanto de criaturas efêmeras e tímidas? De fonemas sussurrados em meio à enxurrada de outros dizeres? Porque quando você percebe um detalhe, ali, escondido, despercebido, ele - por outro lado - só percebe você. Ele só vê você e só tem significado para você. Passa então a ser seu e te adorar como deus. Aquele que, diante do invisível, brilha feito constelação e traça o destino de quem nunca antes integrou história alguma. Os detalhes me fazem sentir único, privilegiado por tê-los encontrado e ter sido encontrado por eles. Sim, isso cria dentro de nós - ou pelo menos de mim - um desejo recorrente de ouvir só o que me parece fora do comum, porém dentro do meu infinito particular. Foi assim que eu criei em sete dias um universo lexical capaz de colocar em ordem os astros debaixo do peito. O primeiro vício estava no céu, no alto, no silêncio e na escuridão do cosmos. Abrir mão dele pedia que eu fosse capaz de tratar tais detalhes como estrelas... Brilham solitárias, já mortas, distantes, numa outra ponta do "para sempre" no qual eu também já não existo mais. 

O primeiro cigarro se foi e deixou um pouco de sobriedade. Acredito que esse seja sua principal função. Desta vez, busquei, de olhos fechados, o toque, o beijo e o jeito de falar. Do barro do desejo, modelei aquele que seria, à imagem de mim mesmo, meu amor maior. Meu melhor trabalho. O outro, em contato comigo, fazia-me sentir a vida à flor da pele. Chegava lentamente como a primeira brisa quente de verão e arrepiava meus pelos. Pressionada os braços, encurralava meus ossos e então deixava que o magnetismo fundisse as vontades. Foi assim que mais um vício nasceu: do parto que não nos separava, pelo contrário, paria nosso querer a cada manhã amanhecida sobre a cama de casal sem histórias românticas para contar. Havia apelas aquele calor do "não toque" que me lembrava do quão insone é tentar lutar contra a vontade dormindo ao lado dela. Quase como lamber os lábios pra fingir que não está salivando. E tudo isso a troco de quê? De uma promessa vaga soprada durante a noite... Ou de um despertar, no meio da madrugada, daqueles que buscam saciar a sede nos meus lábios. Eu me viciei na tensão. Na proximidade - ainda que distante - e abri mão de sonhar adormecido para sonhar acorrentado e desperto entre as cobertas. Afundando no colchão até que as profundezas me recebem de mar aberto. O corpo dele naufragava no oceano agitado do meu. Este segundo vício, tão material e real, era fruto das ondas impacientes da minha carne que o puxavam para dentro de mim. Na maré alta, cobriam seu rosto de beijos e na baixa deixavam apenas o rastro de feridas não curadas pelas águas salgadas. Desapegar do que era possível de ser pego trouxe-me a chance de, mais uma vez, entender que não há desejo que resista a outro desejo. Se um quer, dois, ainda assim, não fazem.

Naquele momento, eu já ansiava pelo que achava ter superado. As fotos, o corpo, tudo parecia lutar pra resistir ao esquecimento - ou indiferença. "E se...", "De repente eu posso...", "Será que se eu...", "Lutei o bastante?"... As armadilhas foram postas estrategicamente e parecem não se intimidar com toda a capacidade que minha mente tem de desarmá-las. Há sempre um fator surpresa e é aí que elas me pegam de jeito. Pois bem: eis que começou a tocar aquela música. Aquela música. Olhei em direção à janela e foi como ver uma macieira brotar instantaneamente. Seu tronco entrelaçava as curvas amadeiradas e no topo um volumoso verde preenchia boa parte do espaço. Encarando-me, silenciosa, apenas deixou revelar-se aquele pequeno fruto. Vermelho, lustroso, simples e solitário. Era detalhe e matéria ao mesmo tempo. Era bonito de se ver e desejável de se comer. Enquanto eu permanecia paralisado, a música continuava a tocar sutilmente. Percebi, assim, que ela se apresentava como um sibilo no pé do ouvido. Dizia-me: "permita-se fazer a diferença, quebre suas próprias regras, supere-se e vá ser feliz. Você foi criado para isso.". Os ombros relaxaram e a angústia parecia ter ficado em segundo plano. As folhas da macieira sacudiram um pouco e pude sentir a corrente de ar passando pelo meu rosto, rodopiando em volta da nuca e então apagando as poucas velas que havia acendido para deixar o clima da sala mais intimista. Como se tal espaço fosse o recinto da minha essência, senti que haviam apagado as luzes dentro de mim. Deixe-me levar... Fui até o telefone, disquei o número dele, ensaiei algumas palavras - todas repletas de metáforas e detalhes que - ao meu ver - levariam-o até mim mais uma vez... E quando ouvi sua voz, senti o peso. 

No instante perdido entre o encher de pulmões para então preparar o fôlego para a palavra que viria em seguida, tive uma acesso de raiva e ansiedade. Mais uma vez, tudo misturado, tudo impossível de se mensurar. Lembrei de quantas vezes liguei, das muitas vezes em que quis ligar, esperei e não tive a chance de ser a pessoa a dizer "alô". Do quanto me custou aguentar sozinho a solidão e não a solitude. Dias e mais dias arrastado como grilhões nos calcanhares, tudo porque eu simplesmente estava viciado em ter alguém, mesmo que esse alguém não me tivesse. Os nomes, os endereços, os títulos, nada me interessava. Só a presença e a resposta para meus estímulos e desejos. Só. E só eu fiquei. Porque não me entreguei ao outro, de fato, entreguei-me à situação em si. Ele era o caminho a ser percorrido, por isso que não suportava desvios. Muito menos me sentir perdido. Eu sabia onde queria chegar. O problema era descobrir como. E achei, por muitos anos, que a resposta estava fora de mim, nos gestos dele. 

Voltei a atenção para a sala, joguei o olhar para o canto esquerdo e lá estava a carta do Enforcado, esperando para entrar em cena. Talvez, o principal remédio contra essa pequena recaída. Sua simbologia era rica, mas apenas uma palavra me bastava para compreender a mensagem que queria passar: sacrifício. Dor, abstinência, falta, sofrimento, angústia, tudo isso num nível alto, constante e inevitável. Tudo isso para que, no final das contas, algo de positivo surgisse. Pois sofrimento só consegue massacrar as pequenas felicidades quando não se sabe se o que virá depois dele será mais tempestade ou alguma gota de bonança. Ele nos obriga a pensar apenas no seu fim, quando na verdade o importante é entender o seu presente, o meio, o pesar do agora. Acabei me sacrificando em prol dos meus vícios e da promessa de que eles bastariam pra preencher lacunas ancestrais da minha história. Percebi então que não preciso me livrar deles, dar um fim repentino e pronto, pois novos surgirão. Eu precisava de me recuperar, reabilitar minha capacidade de me destruir e me reconstruir. Eu precisava morrer pra renascer, fechar um círculo e, assim, iniciar outro. Precisava do sacrifício e ele viria com a permanência dos meus vícios e o controle dos mesmos. 

Coloquei a corda em volta do pescoço e pulei. O último vício - aquele que me sufoca porque me faz sofrer o que precisa ser sofrido - estava entre o céu e as profundezas do mar. Ele transitava pelos meus dias, pela casa desarrumada, pela saudade que sinto dele, pelos passos na rua, pelos cheiros que me enfeitiçam... Ele existia no hoje e dizia toda vez que me encontrava:

"Permita-se fazer falta".     


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