terça-feira, 12 de maio de 2015

Três doses de corpos vazios



Nova

Volta descalça pela estrada de barro, após uma noite de dança no sertão. Ela vem rodando de leve, sorrindo, descabelada, despreocupada. Suave como nunca. Vê-se aos poucos conforme o dia amanhece, rosado. Lembra-se de que não lembra mais o caminho de casa. Que anda pra não ficar parada, mas sem correr, pra não competir com as horas - aquelas também perdidas.

Cada passo adiante é um pulo para longe do passado carcereiro. Um pulo da ponte que a levava a lugar nenhum - justamente para o nada em que gostaria de estar. Um salto dos ponteiros do relógio no pulso alheio - pontualmente a lhe obrigar a levantar e ir fazer café.

Ela, então, sente seu corpo sendo seu novamente e não mais dos outros. Beija os próprios braços, aprecia o perfume de gente impregnado na pele. O corpo dela. O corpo é dela, banhado dos suores de outros senhores no cangote, do cansaço da dança no cangaço da vida seca. Devolve-se num abraço cheio de si. Finalmente, nova em si.

Cheia

Todos tinham ido embora. Quase todos. O próprio bar já não estava mais lá. Ele vagava parado, em torno de si mesmo, cheio de rastros e restos dos muitos e muitas que ali se desfizeram em embriaguez. Chão salgado, do qual nada brota senão a saudade. Mas eles ficaram. Os dois ali, juntos, colados num eterno e perdido espaço entre o "oi" e o adeus".

Ele chegou tropeçando nas próprias vontades. Queria dançar, mas não sabia. Queria olhar, mas não a via. Quando a viu, quis beijá-la, mas não a conhecia. Quando finalmente a conheceu, entre uma dança torta e outra, fechou os olhos, esqueceu de perguntar seu nome, selou seus lábios e colou no seu colo. Ali ficou, fincado no entre braços da garota mais linda que nunca viu na vida.

Ela, por usa vez, vazia permanecia. Dava-se a ele porque não sabia como não ser mulher. Foi doutrinada a servir, mesmo que para isso não servisse a si mesma. Abraçou o jovem de pele incandescente. Mas vazia permanecia. Pois já não acreditava mais na dança dos homens, muito menos em seu toque suplicante, sempre em busca da mãe perdida ou da mão da amante escondida.

Ela era, para ele, santuário e jardim forrado de rosas. Para si, contudo, era refúgio, como um bar vazio e cansado no meio do deserto. Sempre a abraçar os outros, sempre cheia de gente. Sempre cheia de tanta gente.

Minguante

Na calçada, o beiço da rua, ele senta e figura a fossa da própria existência. A cena é típica: cabeça entre as pernas, mãos sobre os joelhos, lágrimas pingando no chão seco, tragadas pela sede do solo.

Esforça-se para erguer a muleira novamente, mas o peso da mágoa não deixa. Carrega em sua nuca o nunca mais, o fim, a separação, a rachadura no melhor dos retratos - aquele que pinta o amor intenso até ontem seu. Homem que foi abandonado pelo seu homem. Lobo abandonado pelo seu próprio lobo - o homem do homem.

Deseja entender como pode o amor acabar repentinamente se, para nascer, custa tanto ao ser.  Grita pra dentro da boca, num murmurar animalesco, toda a dor da ferida recém-aberta e empurra goela abaixo cada palavra não dita. Cada frase maldita. Acaba o querer, vai-se a paixão, resta nada além dele mesmo, meio cheio, meio vazio. Minguado.

 Corpos como botes vazios, navegando à deriva sob os luares.

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