terça-feira, 18 de agosto de 2015

Ensine-me a nadar



Parecia sintoma de alguma doença séria - e rara. No entanto, de rara não tinha nada. Mas de doença…

Passei muitos anos no mesmo quarto embolorado, cercado de folhas soltas cheias de ideias presas - pensamentos e mais pensamentos, lamentos e confissões que a ninguém interessavam. Eu, escritor, na miséria da minha profissão, tinha não apenas um ofício, como também um vício.

Gostava do meu canto. Pequeno, mas confortável. Subexposto como minhas fotos favoritas. Bastavamo-nos. Contudo, eu sabia que o cigarro envolto naquela atmosfera sufocante com janelas servindo apenas de cinzeiro iria me tragar. A cada dia a mais, menos capacidade de encher os pulmões. Começava a perder o fôlego enquanto pensava. A exaustão desenhou no meu rosto um quadro daqueles bem antigos no qual o verde musgo é, de fato, musgo. Só que essa condição insalubre combinava perfeitamente com a angústia e melancolia que me acompanham desde sempre. Tudo entrava numa harmonia destrutiva e lamento nenhum conseguiria quebrar o pacto entre vida e morte. Pelo menos, foi o que pensei…

Desci para comprar um maço novo e senti que o som, ao poucos, deixava meus ouvidos. Como se algo expirasse de dentro da cabeça, o tempo espreguiçou-se diante dos meus olhos e então a lentidão passou a guiar meus passos. A cada degrau que eu descia, meu sangue parecia perder seu fervor. Foi então que ouvi meu coração suspirar. A cada batida que eu perdia, meu ar parecia perder seu frescor. Foi então que senti meu corpo despencar. A cada sensação que eu pedia, meus pensamentos pareciam perder sua cor. Foi então que não me senti.

O quarto era diferente. Tinha luz, livros ordenados - e não cobertos de poeria numa desordem completa - e uma janela enorme, recortando um pedaço de céu sem fios. O cheiro também era atípico. Espantou-me o fato de eu conseguir ter olfato algum naquele lugar. Porque na minha casa era impossível. A vida era inodora. Sem perfumes. De repente, a porta se abre e eu sinto meu peito pesar como se uma pedra estivesse posta sobre ele. Quando tentei mover minhas mãos na direção da caixa torácica instintivamente, perdi as poucas energias que haviam sido recuperadas nas horas de inconsciência. O pacto entre a vida e a morte estava abalado. Havia guerra. Tormento. E eu estava no meio.

- Oi, você acordou…
- Desculpe, quem é você?
- Sou seu vizinho. Quando você caiu das escadas, eu estava subindo.
- Eu caí? Por isso que estou todo quebrado…
- Sim. Você desmaiou. Mas deu tudo certo, porque sua cabeça bateu no meu ombro e eu consegui segurar seu corpo.
- Obrigado.
- De nada. Descanse. Eu chamei um médico, então fique aí até que ele chegue.
- Eu preciso voltar para casa.
- Quer que eu avise alguém de lá?
- Moro sozinho.
- Então vai ficar aqui. E fim de conversa. Você não está em condições de me contrariar (risos).
- Aproveite, é por pouco tempo.
- Quer alguma coisa?
- Cigarro.

O médico disse que se eu não mudasse minha rotina de fumante, morreria nos próximos dois meses. Parar com o vício estava fora de cogitação. Cair da escada também. Aproveitei que ainda estava debilitado e na cama fiquei. Olhava para o teto, branco feito uma folha de papel, e imaginei minhas palavras manchando a superfície… Formava um texto mental cujo início se resumia a uma pergunta.

- Qual é o seu nome?
- Bruno.
- Felipe.
- Está melhor, Felipe?
- Sim. Obrigado viu, Bruno.
- Tranquilo. Só saia quando estiver bem.
- Então vou ficar aqui pra sempre.
- Pode ficar.
- Estou brincando.
- Eu não. Falo sério, fique o tempo que precisar. Eu também moro sozinho. Na verdade, eu tenho uma companheira.
- Não quero incomodar a privacidade de vocês.
- Minha companheira é uma sucuri filhote (risos).
- Você tem uma cobra em casa?
- Ela foi deixada no meu consultório. Foi resgatada, na verdade. Traficantes de animais, sabe? Sou veterinário.
- Que triste. E que bom.
- Pois é. Bem, vou sair para comprar algumas coisas. Você quer algo.
- Papel, caneta e…
- Cigarros?

Só conseguia pensar na cobra. Levantei-me e devagar e fui até o aquário onde ela estava. Ao perceber minha presença, olhou para o vidro dos meus olhos e congelou. Silenciosamente, dissemos juntos a mesma coisa: “estou com fome”. Ela, de mim, eu… Dele.

À noite, resolvi conversar com Bruno e dizer que não precisava mais me hospedar em sua casa. Quando entrei na cozinha, senti um cheiro forte de páprica e pimenta do reino. Ele estava terminando de desligar o fogo da panela e me olhou como se eu tivesse estragado um aniversário surpresa. - Eu ia te levar o jantar no quarto, tudo bem bonito, poxa! Comemos, estava muito bom. Trocamos poucas palavras, pois não havia muito o que dizer mesmo. Mas naquele silêncio todo, uma tensão evidente puxava a cadeira e colocava os cotovelos sobre a mesa. Terminei, prato vazio, boca avermelhada, cheirando à fartura, mas ainda com fome. Fome dele.

- Bom, volte sempre, mas sem cair das escadas!
- Tentarei. Prometo.
- Tentará voltar ou não cair da escada?
- Os dois. E você tente me segurar se acontecer novamente.
- Fique tranquilo, já provei que sou bom nisso.
- (sorriso)
- Olha só, você sorri!
- Às vezes.
- Tente isso também.
- Boa n...

Dentro, novamente. Agora não por baixo, nem sozinho, nem pálido ou indisposto. Dentro. Eu estava vivo, vermelho, pulsando, transpirando pelo hálito quente, suando minha alma pelos poros. O que antes não passava de uma cama magra e preguiçosa, agora se desfazia em dunas de lençóis nos quais os corpos corriam um ao encontro do outro, por entre as capas finas e brancas dançando um balé único. Eu já não tinha mais controle algum e matava a fome ali mesmo, enrolado no corpo de Bruno - como uma serpente vidrando meus olhos em seus movimentos e sibilando em seus ouvidos feitiços, poesias malditas, segredos...

De repente, o peito sobe e eu sinto meu coração tropeçar como se uma pedra estivesse em seu caminho.  A cada gemido que eu continha, meu rosto parecia perder sua cor. Foi então que eu não ouvi meu coração retumbar. A cada trovoada de energia que os corpos soltavam, meus arrepios desapareciam. Foi então que senti meu espírito despencar. Caía do topo do céu a estrela da manhã. A sinfonia de desejos se tornou um barulho no fundo da cabeça - cortante feito navalha. Foi então que ele não mais me sentiu. Só seu ombro.

Quando tentei mover minhas mãos na direção das de Bruno, instintivamente, perdi as poucas energias que haviam sido recuperadas nas horas a dois. O pacto entre a vida e a morte estava rompido. Havia guerra. Tormento. Tempestade. E eu estava no meio - agora com ele. Mais uma vez, caído. Samael ferido.

- Consegue me ouvir?
- Sim… O que aconteceu dessa vez?
- Você caiu, novamente.
- Da escada?
- Não necessariamente (sorri).
- Olha, eu nem sei como me desculpar por todo esse trabalho que estou dando.
- Magina, acontece. E eu gosto. Estamos fazendo companhia um pro outro.
- Eu estou bem. Consigo ir pra casa agora.
- O médico disse para você repousar pelo menos mais três dias.
- Eu estou aqui há quanto tempo?
- Dois.
- Preciso dar um jeito nisso… Viver cansa.
- Já sei o que vou fazer.
- O quê? Por favor, não quero dar mais trabalho.
- Vou te ensinar a nadar.
- Hã?

Sufocamento. Toda minha dificuldade de respirar sendo potencializada. Agonia, desgaste, frustração. Água não era para mim. Mas lá estávamos nós. Bruno me segurava enquanto me debatia feito criança. Não conseguia me acalmar, muito menos confiar no corpo submerso. Mas ele não desistia. Ele, no caso, Bruno. Quando percebeu que eu não estava prestando atenção nas dicas que estava me dando, resolveu ser pontual:

- Olha, apenas escute o que vou dizer… Escute pra valer, ok?
- Que seja.

“Pense que você não irá afundar. Agora vá soltando o corpo levemente e inclíne-o. Isso… Respire…. Mais… Tá indo bem. Mexa os braços e pernas… Imagine que está voando. Agora aproveite… E voe.”

Nunca mais caí da escada. Mas desde o último tombo, minha cabeça não abandonou seu ombro. É nele que eu me descanso da existência. É para ele que eu sussurro - sem dizer uma palavra - como foi meu dia. Nele que minha mente se acalma e o coração acha abrigo. Mesmo que ainda haja muitos cigarros no meu maço e tantos outros entre os pulmões, respirar já não é tão difícil assim. Alguém surgiu para abrir as janelas do meu peito. Agora, o ar entra vagarosamente como brisa em fim de tarde. Enfim.

Toda vez que o peso do mundo passa de seus limites, Bruno me leva pra nadar. Com braços abertos e olhos bem apertados, eu voo. Eu vou.

(...)
Parecia sintoma de alguma doença séria - e rara. No entanto, de rara não tinha nada. Mas de doença… Tinha o nome de paixão.

E a cobra, "Esperança".

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