domingo, 5 de abril de 2015

Vela



Quando o filho chega em casa, a mãe apaga a vela.

Toda saída é um mistério quando se vive em terras incertas. Ruas arbitrárias que desenham um mapa torto e tortuoso nas regiões periféricas da cidade. Fios que de concreto só têm o asfalto. O laranja-mercúrio banha as carcaças cansadas e feridas que, em meio à meia noite, caminham de volta para os lares, refúgios, quartinhos de empregada ou qualquer canto que as valha - e as valide.

Sob a cômoda, a vela acesa, firme e fiel à fé que segura o coração de mãe sempre preocupado. Ao sair, ela despeja sobre sua cria bênçãos ancestrais, como se a cobrisse com seu véu matriarcal, protegendo-a de todos os males e todos os outros por aí vagando.

Os ponteiros do sofrimento começam a correr, a garganta fica seca feito a de uma ampulheta e cada grão de areia se faz sentir gole a baixo. A mãe reza, acende sua vela e deseja mais um dia de vida. Fora de casa, o mundo se faz mundano e não há mais útero para envolver aquilo que é frágil. Fora de casa, nascemos e o que vem primeiro é o choro - o nosso. O da mãe, ela segura. Guarda junto com a preocupação, ao lado da vela, acesa, desfazendo-se em lamento. Gotas e mais gotas de si mesma, vela e mãe se confundem. Uma chama pela vida do filho, outra chama pela própria morte. Unidas, mantêm-se aquecidas na mesa da cozinha e no pires de porcelana. Encaram-se, trocam brilhos no olhar e lágrimas de sal e cera. Permanecem na vigília.

As tarefas cotidianas são cumpridas. Longas, mas terminadas antes mesmo da memória resgatar o sentimento de aflição. Tudo em seu devido lugar, menos o sossego que demora a deitar no peito. Menos a escuridão que não vem cobrir a luz bucólica oscilando a cada corrente de ar - a cada suspiro da mulher protetora que ora, ora firme, ora, ora soluçando. Será que ele vem hoje? Será que ele vem bem, o meu bem?

Dói ser mãe. Dói ser filho. Dói ser filha. Dói ser. Causa medo, incerteza, tremedeira e febre interna. Entretanto, é o que faz a vida pulsar. É o que a desafia, deixando-a à beira da sorte. Apegada à rotina, torce para que ele chegue sempre no mesmo horário e com ele a tranquilidade. Tudo pronto para recebê-lo, menos o sorriso no rosto. Esse não sai, recusa-se a aparecer para cumprimentar os demais ao redor. A vela, pela metade, começa a desistir. Mas não diz nada. Para que mais sofrimento?

O portão range. Os passos acelerados aumentam de volume e profundidade. Não estão se arrastando, estão marchando em ritmo de manada rumo ao abrigo. A chave gira dentro da fechadura e então morrem os ponteiros da angústia. Para de correr o tempo metálico que não admitia pausas para a velha mãe respirar e conferir se ainda lhe restava alguma força. Eles se olham, ela chora aliviada por trás do abraço titânico. Ele não entendo o porquê de tanta preocupação, afinal já é crescido e sabe se defender. Contudo, compreende que, tratando-se do lugar onde nasceu, das cenas violentas que presenciou e por muitas vezes passou, não há como se defender do desconhecido - e cada dia se faz como uma bala no bulbo da pistola. Cada passo é um tiro às cegas contra a cabeça de alguém na sacada, na calçada ou na sala de casa. Compreende e se entrega aos braços da matriarca. Sente que conforto maior que esse não há. Sob a luz fraca do fogo exausto, ele aquece as mãos, abre as panelas e larga os ombros nas costas da cadeira. Ela some por alguns segundos.

Silenciosa e discreta, celebra consigo mesma a chegada do seu eterno bebê. Canta os parabéns - nessa data tão querida - por mais um dia de vida. Olha para a pobre dama vestida de branco, caída e exausta e então sente que o desejo que fez ao acendê-la se realizou como o prometido. Mais um dia de (re)nascimento. Aniversário diário. Comemoração incessante. Todos os dias, ela, ritualística, pari sua criança e regojiza ao vê-la retornar para o seu aconchego. Agora sim, agora ela pode fazer o que veio fazer ao entrar em seu quarto.

Quando o filho chega em casa, a mãe apaga a vela.

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