segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Dos Nadas




"Não tira a terra debaixo dos pés, menino. Continue sua subida até o pico mais alto e lá faça seu voo para bem longe de si. Sozinho, encha os pulmões com a brisa crepuscular, vamos, espreguice estas costelas, engula a própria barriga, brinque-se. Faça o céu sorrir com sua imagem infantil, disfarce toda a tristeza que te corrói por entre as veias, feche os olhos e abandone o cheiro do outro. Tudo acabou quando o abraço se tornou apenas um, solitário, entre braços. Acabou no exato momento em que os laços atados a nós invisíveis já não mais conseguiam manter tempo e espaço como aliados do amor de vocês. Mantenha a terra debaixo dos pés, menino. Você precisa de bases."

- Dizia a serpente com seu jeito único de sibilar.

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O nada. O grau absoluto da ausência. O luto da existência. O vácuo. O estado etéreo da angústia. A pressão baixa da líbido que vai até o pé e lá fica, no fundo do osso, beirando o calcanhar, penhasco das pegadas invertidas. Nada, absolutamente nada. O único desejo pleno e verdadeiro. Querer nada e no nada ficar. Passar despercebido pelo tempo e espaço, como uma vírgula na regência cósmica. Permanecer sem ser. 

Lentamente, o corpo inclina rumo à superfície gélida do chão. O ombro se retraí, sustando o peso de seu gêmeo - agora totalmente entregue ao nada. A respiração desacelera, os olhos perdem o ponto focal e transformam cores e formas em fumaça de realidade em pó. E a boca seca. E as mãos se unem, sem força. E os pés se cruzam, sem aperto. E os joelhos... Os joelhos doem, mas o resto do corpo já não sente mais nada. 

Nesta posição, a pressão da vida parece se inverter como ampulheta e ao invés de areia, escorrem os grãos de felicidade. Eles passam, um a um, despedindo-se. Nada pode tirar a criatura ruída dali, afinal, foi o Nada que ali a colocou. O eterno adeus parece fazer todo sentido, afinal, toda despedida não anuncia mais Nada além da partida. 

As vozes no cômodo inferir, o ranger da casa, as árvores que ainda balançam inquietas anunciando a tempestade por vir já não conseguem mais encostar na pele. Nada toca, Nada chega até o chão, Nada incomoda a existência desistente. 

Uma das orelhas beija o chão e como concha reproduz um barulho único - oceânico. Dentro do quarto escuro, parece com o roncar retumbante dos trovões agitando o céu, esse som subterrâneo soa como canção de ninar para a alma exausta e faz daquele piso duro a cama perfeita - fria, dura e lisa. Suavemente, a lua vem desejar "boa noite" e, com seu véu, cobre quem Nada queria além do Nada.

Envolver-se numa dança silenciosa entre o desapego e a melancolia profunda - segurando, sem medo ou arrependimento, a cintura da depressão com as palmas da mão - é algo ritualístico. Momento em que as memórias alegres tornam-se moeda de troca, dinheiro de aposta de quem só quer perder de vez e não ser mais obrigado a encher os bolsos com falsas expectativas. Esse flerte com quem não se flerta, no caso, as três entidades raquíticas - desapego, melancolia e depressão -, assemelha-se às vezes em que mãos conduzem o desejo para lugares impróprios, deixando na pele cinzas e marcas a lembrar que de Nada se lembrava.  

Nos minutos seguintes, as gotas que brotam no vidro da janela sangravam lentamente. Lá fora, alguém precisa chorar. Aqui dentro, sobre o peito precisa chover. Mas quando se está diante do Nada, lágrima pinga no caminho inverso e só o Nada é capaz de tirar do rosto a inexpressão. Ali ficam, intactos, corpo e desalma. Chuva que deságua. 

Ficar. Apenas ficar. Ficar. Desistir. Ficar. Fincar as unhas no braço para tentar sentir algo. Nada. Sente nada. Sente muito por não sentir nada. De repente, algo parece se retorcer no âmago. Algo pulsa com o pouco de força que lhe resta... uma serpente se desenrola e estica sua carcaça para fora do ninho. Ela desliza aos poucos, desenhando horizontes pelas montanhas do corpo, acariciando curvas, caindo em abismos e beijando imperfeições. A serpente sibila e vai em direção à janela. Enrola-se à trinca, abre ambas as abas e deixa os sopros revoltosos da tormenta entrarem. 

O corpo se ergue. 
Caminha sem andar. 
Vê sem olhar. 
Senta-se na beira da janela, ao lado da serpete e de costas para a tempestade. Sente uma leveza incomum, como se finalmente Nada lhe fizesse falta. Nada lhe cobrasse. Nada lhe consumisse e tentasse ter dele mais do que ele mesmo tinha.

- Obrigado pela janela. 
- De Nada.

O Nada. O degrau absoluto da decadência.

"Você não precisa mais de bases".

- Dizia a serpente com seu jeito único de sibilar. 

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