sábado, 29 de junho de 2013

Os chamados noturnos do vício

Naquele quarto sujo e apertado só cabia minha insônia. Ela apalpava as paredes e as descascava com unhas curtas, pouco se importando com o sangue pincelado. Maldito barulho. Era sempre assim, tortura noturna, um calor fora de época e a sede que não se matava com água, mas com saliva. Saliva do corpo, não do copo.

Ninguém vende cigarro de madrugada. Logo, ninguém sabe vender cigarros. Nenhuma banca de jornal, padaria ou boteco de esquina sabe vender a porra do maço, afinal, se soubessem, saberiam que vício faz visita sem avisar, a qualquer hora. Vai sentando sem ser convidado; abre a geladeira e pega o que quer; usa seu banheiro e não dá descarga; inspeciona sua carteira e leva até o trevo seco de quatro folhas. Mas eu tive sorte, achei uma farmácia aberta que vendia Lucky Strike vermelho. Sim, bem ao lado das barrinhas de cereais. Aquelas com gosto de antidepressivo infantil.

Pisei em casa fui recebido pelo cheiro de vida desperdiçada no mofo e o toque estridente do telefoda-se. Quem em ligaria a essa hora, caralho? É o vício, mais uma vez.

- Sei que tá tarde, mas queria falar com você.
- Fala.
- Tudo bem?
- Vamos direto ao ponto?
- Custa responder como gente pelo menos uma vez?
- Não faço questão, e você sabe que sou assim, então o que me diz?
- Bom, só queria te lembrar que amanhã, hoje, no caso, eu passo aí para te devolver a camiseta.
- Que camiseta?
- Aquela que você me deu de aniversário. Olha, eu não quero parecer cruel nem nada...
- Já entendi. Relaxa, você não está sendo cruel. Só idiota mesmo.
-  Eu? Olha, acho que não preciso te lembrar sobre como tudo acabou, certo?
- Vai se foder.

E eu já nem podia mais roer minhas próprias unhas para exorcizar a frustração. As paredes daquele pão embolorado já tinham comido tudo. Vício é foda.  

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Sete notas a mais





Os pés descalços deslizavam do céu até o chão de paralelepípedos. Íntimos daquela superfície agasalhada com casco de tartaruga, chamavam a atenção pelos dedos bem redondos com unhas artisticamente modeladas em curvas. Sua cor de terra pediu às sementes do meu coração algo para se criar. Germinou ali nossa paixão. 

Eu te observava do outro lado da calçada. Como se meus olhos adquirissem a timidez e curiosidade de um turista, pude, lentamente, guiá-los até seu rosto. Os cachos lhe davam ares de deus grego bastardo no sangue e sublime na temperança. Empunhado de um violão, sorria sem mostrar os dentes a cada acorde tocado sem mostrar os versos. Mudo, deixou que todos ao redor compusessem a letra de uma melodia vadia, libertina e tranquilamente dada ao simples prazer de ser cobiçada. 

Suavemente, os olhos esverdeados coloriram meu corpo cinzento. Senti o calor de seu desejo ouriçando meus poros e, de suor em suor, lavei-me com a água benta do querer. Untado no sufoco da imaginação sem toque, respondi seu convite com um suspiro quase que imperceptível e soprei ao vento meu sobrenome, só para ver se caberia sobre o seu. 

O Sol brotava de tempos em tempos para obrigar as sombras da insegurança a darem e se esconderem nas muitas vielas que a Bahia sentia orgulho de parir. do seu peito pude ouvir o apelo do coração. Sem , berrava por meus passos e o andar hipnótico de um corpo seduzido pelo cheiro de canela fresca. Fui sim, cil seria não adMitir que por você eu já estava encantado e no seu canto havia encontrado o meu canto, asSim, aconchegado como fim de tarde. Como fim de acorde.

Aconchegados. Até que a gente acorde.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Quarenta e oito quilos



Meus joelhos continuam extremamente magros. Parecem mais ossudos do que nunca. Bom, foda-se, que diferença isso faz? Nenhuma.

O que vou fazer hoje? Sem planos. A rua é a mesma de sempre. De repente, andar por aí ouvindo um som... Sabe como é, só caminhar.

Não quero ser encontrado. Hoje acordei com uma vontade enorme de me pesar. Estou com a sensação de que os dias estão levando pedaços de mim. Depois que eu abri mão do "coração" parece que meu corpo se tornou apenas um depósito de comida sem gosto, de água parada e de ossos pontiagudos. Vou fazer o quê? Nada é pior do que aquele maldito frio na barriga que o pessoal costuma chamar de "borboletas no estômago". Borboletas porra nenhuma. São malditas mariposas vampiro. Odeio mariposas.

A farmácia não está tão longe assim. Só que essa maldita sensação de que vou te encontrar na próxima esquina me faz percorrer milhas e mais milhas atrás de desculpas para desviar o olhar e não dizer "oi". Muito menos perguntar "tudo bem?". Pronto, mais alguns passos e eu chego lá.

Os números não entram em acordo. Desce um, sobe mais três, oscila... Porra... Agora foi! Os mesmos quarenta e oito quilos. Estava com 17 anos num mirrado cadáver de 14. Grande merda também, de que me serviria músculos e peitoral? Ah, olhe bem pra mim e seja franco! Não, melhor não. Deixe a franqueza pra lá.

Troco a música. Agora sim, meia volta e lá estou eu novamente a procrastinar compassadamente. Não, não pode ser... Puta que o pariu, falta tão pouco pra chegar em casa... Caralho... Vou ter mesmo que falar com você? Sim.

- Tão cedo e já está na rua?
- Fui me pesar.
- E precisa disso?
- Sei lá, só fui me pesar.
- E aí? Satisfeito?
- Quem pesa quarenta e oito quilos desde os 14 não pode estar satisfeito.
- Então está com fome de quê?
- [De você] De nada. Que conversa estranha, hein? Tô indo.
- Beleza. Até mais.
- Se pá nunca mais.
- Hã?
- Nada não, foram as mariposas no meu estômago.
- Mariposas?
- Deixa pra lá.

Cada um tem o peso que merece.

domingo, 23 de junho de 2013

Os quintos do inverno



1.

Eu estava nervoso como nunca. Não sabia para onde olhar. Mas era tarde demais. Já havia lhe dito tudo o que sentia. Não tinha volta. Foram dias tortuosos de agonia e sufocamento. Não suportei mais e resolvi dizer em milhares de frases: "eu te amo".

Desastre. Senti a frieza em suas palavras. Tentava a todo custo aquecer meus sentimentos com alguma fagulha de esperança. Tudo em vão. Aprendi naquele instante por que consideram o coração santuário do amor: doeu no peito como se paredes ruíssem sincronizadamente. Descompassei as batidas cardíacas em comunhão com a regência do caos.

Aquele foi o primeiro dia de inverno. Fui obrigado a dizer adeus sem querer, de fato, invocar a partida.

2.

Disseram-me que o álcool é combustível. Faz-se queimar com facilidade. Reuni as folhas no centro do quintal. Estavam amareladas. Peguei um pouco de vodka e senti meu corpo reagindo. Ele estremeceu como se estivesse faminto. Eu sabia bem o que estava pedindo, mas já havia me embebedado demais e precisava fazer logo o serviço.

A pilha aguardava por seu destino. Condenadas por heresia, todas aquelas folhas deveriam arder diante dos meus olhos para então jazerem nas eternas cinzas do esquecimento. Abri a caixa de fósforos, escolhi o inquisidor, aticei sua cabeça, fiz-o queimar de ódio, deixei-o gratinar a ponta dos meus dedos por alguns instantes - precisava me sentir vivo naquele instante, precisava provar a mim mesmo que estava acordado e nada melhor do que a dor para conjurar vida - e deixei que caísse com toda sua força na graça da desgraça.

Arderam, todas, silenciosas, cadavéricas, amaldiçoando-me com os últimos versos que um dia preencheram meu diário. Página por página, vi meu passado tornando-se intangível. A partir daquele momento, tive total domínio sobre o que fui e senti. Sem a precisão da escrita e sua inflexível postura de delatora, cabia somente a mim decidir o que fui e como fui.

Decidi me matar. Suicidei-me num tempo que não estava fadado aos caprichos da mão invisível do destino. Matei-me no passado.

3.

O esquecimento. Sopro que varre da memória a poeria da miséria. Sopro que enche o estômago vazio de sono e mata a fome. Sussurro que cala o choro com a incerteza do tempo vivido; do ardor do tapa; do sexo machucado pelo desejo. Suspiro que, quando inspirado, carrega um sorriso falso e cômodo. E quando espirado, conforta os outros com a inocência infantil de quem não se recorda das cicatrizes nos braços.

O inverno seguia implacável. Todos os dias eu me lembrava de você. Só não esquecia de tentar te esquecer.

4.

Toda ruptura vem carregada de crises. A segurança - a falsa segurança, melhor dizendo - é como calafrios que agitam o corpo para gerar calor. Não são efetivos, não prestam um serviço eficiente, entretanto, confortam os mais pobres e desgraçados mesmo que por tempo insuficiente. Foi com tal segurança que segui aquecido nos dias frios. Mendigando algum arrepio qualquer.

Cobri meu peito com o manto fino da autoestima. Certos dias, acordava cedo e me olhava no espelho. Um detalhe a mais no desenho da barba e meu rosto fingia ter se recuperado por completo do último porre. Eu sorria para mim mesmo, sentido ranger cada músculo do rosto acostumado a dormir até tarde nos dias ensolarados. Era obrigado a disfarçar as cãibras causadas pelo mau uso de minhas expressões - sempre preguiçosas, indispostas e rígidas. Condenadas ao eterno convento regido por minhas lamúrias.

Depois de alguns dias, a barba voltava anárquica. Rompia o tratado de paz com minhas feições e esparramava-se folgadamente pelas macieiras do rosto. Criava crises e raízes.

5.

Eu sabia que haveríamos de nos reencontrar. Nem que fosse durante meu funeral. Então, contei os dias ao contrário esperando que o momento se concretizasse.

Você balançava calmamente a cabeça, respeitando o ritmo cantarolado pelo vento. Parecia tão calmo, sereno, como se a morte tivesse lhe visitado e todos os detalhes de sua partida não mais trariam preocupações. Sentei-me ao seu lado, sem dizer absolutamente nada, e quando meu corpo fez peso no banco de madeira - causando um ruído que, para os corações apaixonados e vigorosos não passaria de um rangido imperceptível - passei a não saber para onde olhar. Aquele som foi como o de uma faca riscando lentamente ambos os crânios. Foi então que olhei para você.

Você e seus profundos olhos castanhos que mais pareciam terra fértil, benzida com o orvalho salgado das lágrimas. Elas, por sua vez, davam ao seu rosto o retrato do amanhecer aquarelado numa expressão temperada.

Senti que minha alma se aconchegava despreocupadamente no tremer das mãos e parecia possuí-las como uma entidade revoltada. Tentei me controlar, mas o álcool - o mesmo que queimou meu passado e me ensinou a orar por esquecimento - aplicou nas minhas veias uma dose cavalar de ceticismo. Sem clemência, o vício excomungou o espírito. O éter transformou-se em etanol.

Esperei um inverno inteiro para sentir seu toque. O único capaz de apaziguar a guerra entre meu amor e minha razão. As palmas de suas mãos aqueceram-me de tal maneira que senti queimar o âmago e uma dor extrema lampejou dentro de mim. Havia vida. Ainda havia vida.

As horas escorreram por entre nossos lábios. Não era tarde demais. Foram dias tortuosos, eu admito. E eu suportei bem, até que resolvi sentar aqui, ao seu lado. Foi então que mais uma vez decidi dizer em milhares de silêncios "eu te amo". Ou melhor, "eu ainda te amo".

domingo, 16 de junho de 2013

O preço do maço

Fodi com tudo. Eu sei, tô ligado. Mas mesmo assim vocês ainda fazem questão de me jogar na cara tudo o que joguei nas suas. Eu jurava que seria tão efetivo quanto um tiro de calibre 38. Infelizmente não foi.

Foda-se, decidi que o emprego me custava muito caro. Diariamente, pequenos atos iam descontando valores altíssimos da minha saúde mental. O "bom dia" me custava um dente do sorriso; o aperto de mão era pago em nada suaves parcelas de estalos ósseos que camuflavam o ranger furioso dos dentes; o "sim" não podia ser pago a prazo - a resposta afirmativa exigia ação instantânea; no final do expediente, assim como no final do mês, só me restava dívidas a pagar. No final das contas, o prejuízo era meu.

Sem emprego e com a mente ainda inquieta e faminta. Ignorei o som do estômago roncando para dar de comer à imaginação. Na traseira da minha cabeça eu achava que estava escondido um baú do tesouro cheio de joias literárias. Pensei ser o Hayreddin Barbarossa em carne e fosso. Que babaca. Jamais seria um bom escritor a ponto de sustentar os maços de cigarro com palavras viciosas. Pouco fluía. A criatividade não se submete à vontade do homem, pior ainda se for um qualquer enroscado na barba ruiva da incerteza. Genuinamente perdedor.

Não dei a volta por cima. Continuei assim até que a vitalidade decidiu se aposentar. Ossos à mostra, garganta enferrujada, pálpebras incapazes de repelir a luz e o ábaco de costelas que contava cada grama a menos adquirida ao longo dos anos. Eu era a réplica da miséria, sem compromisso algum com os olhos dos outros. Típica pintura inacabada que causara no artista a prematura sensação de sucesso. Promessa vaga. É isso, eu sempre fui uma promessa vaga. Genuinamente falso.

Solitário e, se rodeado, sufocado o bastante para desejar um galão de gasolina e o cigarro aceso - ambos prontos para chamuscar toda a porra de festa/reunião/happy fucking hour na qual insistem em invocar minha presença. Certa vez, sonhei que entrava numa dessas celebrações sem conhecer as pessoas presentes. Passei pela multidão deixando um fino rastro de nicotina, apenas uma mostra do perfume que se passa por dentro do corpo. Todos riam, tocavam-se, bebiam feito leitões ao meio dia e eu fingia não me importar com nada. Discretamente, peguei meu isqueiro e acendi mais um cigarro - não para mim, mas para a cortina. Fumou a todos numa tragada só.

Amigos se foram. Família foi abortada. Os amores? Todos contribuíram para o câncer no coração que hoje me faz acordar de madrugada e beber um coquetel de remédios batizado com vodka. Eles não têm culpa. Nenhum deles. Eu quis assim, sem açúcar, sem gelo, sem filtro, sem analgésico. Eu quis e posso reclamar o quanto quiser. Desejei minha própria queda para não dar aos ratos o gosto de se autoproclamarem morcegos - jamais olhariam para mim do alto.

Genuinamente vilão.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Dancei porque estava triste



Tranquei a porta do quarto e separei os discos que iria ouvir. Meus pais estavam velhos demais para checar o que eu fazia no andar de cima e meu irmão havia viajado. Senti-me dono do espaço. 

Peguei a garrafa que há meses se escondia no fundo falso de uma gaveta da cômoda e enchi o copo. Tirei o tênis, liguei o som, aumentei-o o máximo que pude e então dancei. Dancei pela tristeza. Por não estar em par – só ímpar. 

Pisava em toda angústia acumulada ao longo dos anos, esquecia-me da sua silhueta a cada giro solitário em torno do meu próprio corpo. Balancei as ideias enquanto a cabeça se banhava de álcool e assim fui realizando minha própria valsa. Meu batismo. Celebrei então a tristeza que, discretamente, revelou-se uma ótima professora de bailado. 

Dancei sem traçar sorriso nos lábios. De olhos abertos, vidrados no nada que me pertencia desde o seu “adeus”. Dancei por mim, mas por você também. Contorci os músculos da barriga, das costas, do tórax assim como você havia feito com os do meu coração. E bati, bati forte os calcanhares em perfeita sincronia com os bumbos de bateria e investidas de contrabaixo responsáveis pelo peso da música – e o meu. 

Cada gole, cada gota de suor, cada parede distorcida e palavra intrusa que eu inseria nas letras das canções me libertavam do mundo e de suas regras idiotas. Pouco a pouco, consegui apagar as lembranças e recordei-me apenas de que ainda não tinha dado “play” na música.

Dancei porque estava triste. E a tristeza se basta.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Coração de água-viva



Após ter criado o corpo, o artesão não sabia como preencher seu boneco de vidro. Sabia que faltava algo. Primeiro, tentou água, mas a falta de cor fazia com que o brinquedo continuasse passando a sensação de vazio. Usou tinta preta para modificar o semblante. Escureceu demais as entranhas da peça. Algo ali dentro precisava se destacar sem se envaidecer. Algo que tenha nascido para conviver nas trevas com a solidão eterna. 

Foi até à praia na esperança de encontrar inspiração. Molhou os pés, pediu licença para as águas e afundou. Cedeu ao canto das profundezas como quem pula do penhasco só para ter, por alguns segundos, a sensação do voo – ou da queda. Imerso, sentiu o hálito solitário do abismo oceânico. Poucas luzes cintilavam timidamente quase que por obrigação de gerar ali a mínima sensação de espaço. Cada vez mais a pressão o obrigava a expirar a própria vida. No fundo (do seu peito), aquela visita ao mar era, na verdade, sua despedida. Cansou de perder noites e noites de sono pensando na finalização de seu boneco de vidro. Foi então que o fogo lhe acariciou a pele. Ardeu tanto que o grito sufocado se transformou num cardume de bolhas desorientadas. Era ela, a alma das águas, a dançarina das trevas, a eterna vida no meio do nada. A água-viva. 

Delicadamente, consumiu a vitalidade do artesão. Conjurou com seus tentáculos o ritual fúnebre que receberia aquele corpo velho e magro como cadáver e, futuramente, como coral. A última fagulha de vida ordenou que as mãos do velho – já marcadas pelo veneno do ser desossado – fizesse da gasta camiseta uma cela capaz de aprisionar seu algoz. Conseguiu. Subiu. Secou. Finalmente, dentro de sua casa pôde colocar a criatura dentro do boneco e ali se fez a água negra e viva. 

O coração de água-viva

Intocável. Desejável. Sensível. Silencioso. Coração de água-viva que habita o oceano dentro de mim. Dança sem compromisso com o espaço, não esbarra em nada, apenas flui amarrado pelas correntezas e incertezas, sem paradeiro. 

Coração de água-viva que não pode tocar outras criaturas. Que faz do seu amor o veneno mais poderoso. Sabe que o beijo de boas-vindas é também o aceno de despedida.

Coração esse que está aqui, pulsando no seu ritmo, levando com seus tentáculos as muitas lembranças de desejos não realizados e amores afogados.  

No silêncio da leitura



Durante minha adolescência não tive muito contato com livros. Passava a maior parte do tempo na rua, com meus colegas. Lá, conheci histórias de todos os tipos e, indiretamente, absorvi cada uma delas como páginas e páginas de livros fantásticos. Tão fantásticos que só existiam na minha mente. 

Em contrapartida, eu gostava muito de escrever – e isso não é novidade, afinal, dediquei vários dos meus textos à admiração que tenho pela literatura. Engraçado pensar que hoje eu leio muito e sinto como se já tivesse imaginado, nem que por alguns segundos, os conteúdos a mim apresentados.

O prazer que tenho ao adentrar numa nova história se deve à curiosidade. No caso, ela se transforma não no sentimento de “lidar com o desconhecido”, mas de encontrar no desconhecido o que eu – em algum momento daquelas horas gastas nas ruas e calçadas – conheci. Não me sinto escritor, porém acredito que todos nós temos a chance de escrever com gosto. Creio nisso porque não tenho fé nas inspirações divinas ou nos dons. É uma questão de percepção. E vontade. 

Voltando à leitura, desconsidero qualquer indicação que seja definida por terceiros como “obrigatória”. Se não há prazer no ato de alisar frases com a ponta dos cílios então não estamos falando de leitura e sim do ato de ler. Se não existe a oportunidade de escolher uma publicação e também ser escolhido por ela, pouco importa o desenrolar dos fatos ou a diagramação das páginas. Faz-se indispensável alguma intimidade – ou perda de vergonha – ao se trancar no quarto com uma obra sedutora e interessante. Seja pelo perfume com odor de mistério ou textura de capa que remete à pele sedosa, não se pode negar o fato de que terminar um livro é, grosso modo, gozar do prazer de ter entregado ao autor seu corpo e alma – em outros termos, seus olhos e sua sensibilidade.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Caderno amarelo

Eu gostava da minha mesa. Pequena, cansada pelo tempo, encardida e tudo mais. Pouco me importava sua aparência. Existia uma "aura" em torno dela e quando me sentava para iniciar mais um dia de trabalho, sentia como se aquele móvel criasse uma barreira capaz de me defender das pessoas. Não que eu tivesse medo delas. Eu tinha preguiça mesmo. E se fosse pego bocejando, pronto, perdia o emprego.

A pior de todas era a chefa da sessão. Senhora de descendência oriental, cabelos de alumínio, lábios afinados pela falta de graça e o corpo transbordando em si mesmo. Fumava loucamente. Se estava feliz, fumava; se estava nervosa, fumava em dobro; se estava triste não fumava, engolia o maço e arrotava carbono. Se eu estava no local, tragava minha felicidade sem filtro. Sem piedade. Certa ela. Aprendi muito com isso.

Numa certa manhã, resolvi pegar um caderno para anotar tudo o que captava. Era muita informação para um garoto de 17 anos cuja mente só abrigava bandas de punk rock e a namoradinha "pique" revoltada. A capa era amarela - a cor que mais odeio - e as folhas não passavam de folhas. Nada, absolutamente nada de diferente. Perfeito.

Completei uma página com códigos e procedimentos que deveria utilizar no cotidiano e percebi que havia me desligado por um bom tempo enquanto redigia as informações.

(O lapso de tempo entre a escrita e a leitura do que foi escrito)

Subitamente, o setor inteiro caiu num silêncio medieval. Apenas o ranger da madeira e o assovio do vento expulsavam a ausência de ruído. Olhei para a cara das pessoas que trabalhavam comigo e percebi que seus olhos haviam sido removidos. As bocas estavam bem abertas e completamente vazias de língua e dentes. Pálidos, mantinham-se sentados como defuntos enterrados na vertical. Todos exalavam fumaça dos ombros.

Não senti medo nem aversão. Senti como se eles sempre tivessem sido assim. Velhos, gastos pela frustração de nunca terem sido nada além do motivo pelo qual a fileira de mesas no 8º andar permanecia lá, inalterável. Eram apenas elementos de figuração.

(fecha o caderno, abre os olhos)

Ela veio até mim e jogou uma pilha de processos para serem tramitados. Disse que queria tudo pronto até às 15h. Trabalho só é trabalho quando você sabe realizar tal ofício. Eu não sabia. E me recusara a perguntar mais do que já havia aprendido. Resultado: fiz tudo errado.

Quando ela se aproximou, minhas narinas jogaram um pano preto sobre as vias respiratórias como se cobrissem as janelas de uma casa fúnebre, deprimida pelo luto. Morrera ali meu respeito por aquela mulher. O que antes soava como uma leve admiração pela postura firme e a frieza natural dos fumantes, tornara-se ódio, desprezo e rancor.

Gritou nos meus ouvidos com seu bafo de dragão aposentado, como se suas amídalas tivessem sido substituídas por rochas chamuscadas. Chamou-me de burro indiretamente e resolveu em poucos segundos aquilo que eu levara horas para concluir. Acusou-me de não ter pedido ajuda. ela estava certa nesse ponto; eu realmente não pedi sua ajuda. E daí? Ela também poderia ter se oferecido. Não verbalmente, mas gestualmente. Aquela espinha entortada pela lordose e os traços do rosto desenhados com carvão não me transmitiam nenhum ar de cumplicidade. Boitatá que apagou o fogo pra não queimar todo o fumo. Egoísta demais.

Naquele instante só queria um lugar: minha mesa. Depois de sentado, deixei que a tristeza tomasse o lugar da raiva e recolhi o pouco de mim que havia salvo enquanto me arrastava até o escritório. Eu nunca quis impressionar as pessoas. Sempre gostei de ficar no canto, atrás das cortinas, no banco de reserva. Era como se me bastasse apenas fazer parte do time e ser a garantia de que se algo não desse certo ainda teriam a mim como reforço. Nunca quis ganhar um lugar ao sol. Odeio calor, odeio sol e tudo isso. Enfim, eu não queria que ela me adorasse ou dissesse meu nome com gosto, como fazia com o outro estagiário - maconheiro, boy e ninfomaníaco. Eu só queria que ela respeitasse meu espaço e soubesse que minha presença ali era necessária ainda que silenciosa e oculta.

Escrevi. Escrevi como nunca antes. Lotei as páginas com meus pensamentos, memórias, letras de músicas, ideias e angústias. Pensava muito em minha namorada e comecei a telefonar para ela no final do expediente. Sua voz me confortava... Ela sabia que mesmo longe eu estava ali. Isso era "amor" pra mim. Foram tantos parágrafos que todos no local perceberam minha ausência. Já não me viam mais prestando atenção nos detalhes técnicos, pedindo dicas de procedimentos para os mais velhos ou me oferecendo para buscar material no 4º andar. Eu sentava e escrevia, apenas. Fazia meu trabalho e voltava a escrever.

A mesa antes vazia passou a ser forrada por pequenos pedaços de papel com frases e escritos tirados de outros escritores. Eram como amuletos que afastavam aquela sucubus oriental sem traços de beleza. Pois bem, chegou o dia que tudo se tornou insuportável e eu tive que sair.

O último instante lá foi épico. Jamais me esqueci. Fiz tudo o que tinha para ser feito, terminei minhas tarefas, escrevi mais algumas folhas e então reservei uma maior para o última texto. Nela, depositei todas as mágoas que acumulara durante os meses de trabalho. Tudo o que, em silêncio, envenenou meu apego ao cargo e às pessoas ali presentes. Sequei ao ponto de dizer que não queria contato algum, despedida ou qualquer tipo de palavra de conforto. Não havia mais nada.

Nesse dia, arrumei minhas coisas, limpei a mesa - que mais uma vez seria abandonada - e parti. Todas me disseram "tchau" com a certeza de que estaria de volta amanhã.

Hoje faz 8 anos.