domingo, 23 de junho de 2013
Os quintos do inverno
1.
Eu estava nervoso como nunca. Não sabia para onde olhar. Mas era tarde demais. Já havia lhe dito tudo o que sentia. Não tinha volta. Foram dias tortuosos de agonia e sufocamento. Não suportei mais e resolvi dizer em milhares de frases: "eu te amo".
Desastre. Senti a frieza em suas palavras. Tentava a todo custo aquecer meus sentimentos com alguma fagulha de esperança. Tudo em vão. Aprendi naquele instante por que consideram o coração santuário do amor: doeu no peito como se paredes ruíssem sincronizadamente. Descompassei as batidas cardíacas em comunhão com a regência do caos.
Aquele foi o primeiro dia de inverno. Fui obrigado a dizer adeus sem querer, de fato, invocar a partida.
2.
Disseram-me que o álcool é combustível. Faz-se queimar com facilidade. Reuni as folhas no centro do quintal. Estavam amareladas. Peguei um pouco de vodka e senti meu corpo reagindo. Ele estremeceu como se estivesse faminto. Eu sabia bem o que estava pedindo, mas já havia me embebedado demais e precisava fazer logo o serviço.
A pilha aguardava por seu destino. Condenadas por heresia, todas aquelas folhas deveriam arder diante dos meus olhos para então jazerem nas eternas cinzas do esquecimento. Abri a caixa de fósforos, escolhi o inquisidor, aticei sua cabeça, fiz-o queimar de ódio, deixei-o gratinar a ponta dos meus dedos por alguns instantes - precisava me sentir vivo naquele instante, precisava provar a mim mesmo que estava acordado e nada melhor do que a dor para conjurar vida - e deixei que caísse com toda sua força na graça da desgraça.
Arderam, todas, silenciosas, cadavéricas, amaldiçoando-me com os últimos versos que um dia preencheram meu diário. Página por página, vi meu passado tornando-se intangível. A partir daquele momento, tive total domínio sobre o que fui e senti. Sem a precisão da escrita e sua inflexível postura de delatora, cabia somente a mim decidir o que fui e como fui.
Decidi me matar. Suicidei-me num tempo que não estava fadado aos caprichos da mão invisível do destino. Matei-me no passado.
3.
O esquecimento. Sopro que varre da memória a poeria da miséria. Sopro que enche o estômago vazio de sono e mata a fome. Sussurro que cala o choro com a incerteza do tempo vivido; do ardor do tapa; do sexo machucado pelo desejo. Suspiro que, quando inspirado, carrega um sorriso falso e cômodo. E quando espirado, conforta os outros com a inocência infantil de quem não se recorda das cicatrizes nos braços.
O inverno seguia implacável. Todos os dias eu me lembrava de você. Só não esquecia de tentar te esquecer.
4.
Toda ruptura vem carregada de crises. A segurança - a falsa segurança, melhor dizendo - é como calafrios que agitam o corpo para gerar calor. Não são efetivos, não prestam um serviço eficiente, entretanto, confortam os mais pobres e desgraçados mesmo que por tempo insuficiente. Foi com tal segurança que segui aquecido nos dias frios. Mendigando algum arrepio qualquer.
Cobri meu peito com o manto fino da autoestima. Certos dias, acordava cedo e me olhava no espelho. Um detalhe a mais no desenho da barba e meu rosto fingia ter se recuperado por completo do último porre. Eu sorria para mim mesmo, sentido ranger cada músculo do rosto acostumado a dormir até tarde nos dias ensolarados. Era obrigado a disfarçar as cãibras causadas pelo mau uso de minhas expressões - sempre preguiçosas, indispostas e rígidas. Condenadas ao eterno convento regido por minhas lamúrias.
Depois de alguns dias, a barba voltava anárquica. Rompia o tratado de paz com minhas feições e esparramava-se folgadamente pelas macieiras do rosto. Criava crises e raízes.
5.
Eu sabia que haveríamos de nos reencontrar. Nem que fosse durante meu funeral. Então, contei os dias ao contrário esperando que o momento se concretizasse.
Você balançava calmamente a cabeça, respeitando o ritmo cantarolado pelo vento. Parecia tão calmo, sereno, como se a morte tivesse lhe visitado e todos os detalhes de sua partida não mais trariam preocupações. Sentei-me ao seu lado, sem dizer absolutamente nada, e quando meu corpo fez peso no banco de madeira - causando um ruído que, para os corações apaixonados e vigorosos não passaria de um rangido imperceptível - passei a não saber para onde olhar. Aquele som foi como o de uma faca riscando lentamente ambos os crânios. Foi então que olhei para você.
Você e seus profundos olhos castanhos que mais pareciam terra fértil, benzida com o orvalho salgado das lágrimas. Elas, por sua vez, davam ao seu rosto o retrato do amanhecer aquarelado numa expressão temperada.
Senti que minha alma se aconchegava despreocupadamente no tremer das mãos e parecia possuí-las como uma entidade revoltada. Tentei me controlar, mas o álcool - o mesmo que queimou meu passado e me ensinou a orar por esquecimento - aplicou nas minhas veias uma dose cavalar de ceticismo. Sem clemência, o vício excomungou o espírito. O éter transformou-se em etanol.
Esperei um inverno inteiro para sentir seu toque. O único capaz de apaziguar a guerra entre meu amor e minha razão. As palmas de suas mãos aqueceram-me de tal maneira que senti queimar o âmago e uma dor extrema lampejou dentro de mim. Havia vida. Ainda havia vida.
As horas escorreram por entre nossos lábios. Não era tarde demais. Foram dias tortuosos, eu admito. E eu suportei bem, até que resolvi sentar aqui, ao seu lado. Foi então que mais uma vez decidi dizer em milhares de silêncios "eu te amo". Ou melhor, "eu ainda te amo".
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