quarta-feira, 12 de junho de 2013

Coração de água-viva



Após ter criado o corpo, o artesão não sabia como preencher seu boneco de vidro. Sabia que faltava algo. Primeiro, tentou água, mas a falta de cor fazia com que o brinquedo continuasse passando a sensação de vazio. Usou tinta preta para modificar o semblante. Escureceu demais as entranhas da peça. Algo ali dentro precisava se destacar sem se envaidecer. Algo que tenha nascido para conviver nas trevas com a solidão eterna. 

Foi até à praia na esperança de encontrar inspiração. Molhou os pés, pediu licença para as águas e afundou. Cedeu ao canto das profundezas como quem pula do penhasco só para ter, por alguns segundos, a sensação do voo – ou da queda. Imerso, sentiu o hálito solitário do abismo oceânico. Poucas luzes cintilavam timidamente quase que por obrigação de gerar ali a mínima sensação de espaço. Cada vez mais a pressão o obrigava a expirar a própria vida. No fundo (do seu peito), aquela visita ao mar era, na verdade, sua despedida. Cansou de perder noites e noites de sono pensando na finalização de seu boneco de vidro. Foi então que o fogo lhe acariciou a pele. Ardeu tanto que o grito sufocado se transformou num cardume de bolhas desorientadas. Era ela, a alma das águas, a dançarina das trevas, a eterna vida no meio do nada. A água-viva. 

Delicadamente, consumiu a vitalidade do artesão. Conjurou com seus tentáculos o ritual fúnebre que receberia aquele corpo velho e magro como cadáver e, futuramente, como coral. A última fagulha de vida ordenou que as mãos do velho – já marcadas pelo veneno do ser desossado – fizesse da gasta camiseta uma cela capaz de aprisionar seu algoz. Conseguiu. Subiu. Secou. Finalmente, dentro de sua casa pôde colocar a criatura dentro do boneco e ali se fez a água negra e viva. 

O coração de água-viva

Intocável. Desejável. Sensível. Silencioso. Coração de água-viva que habita o oceano dentro de mim. Dança sem compromisso com o espaço, não esbarra em nada, apenas flui amarrado pelas correntezas e incertezas, sem paradeiro. 

Coração de água-viva que não pode tocar outras criaturas. Que faz do seu amor o veneno mais poderoso. Sabe que o beijo de boas-vindas é também o aceno de despedida.

Coração esse que está aqui, pulsando no seu ritmo, levando com seus tentáculos as muitas lembranças de desejos não realizados e amores afogados.  

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