Após ter criado o corpo, o artesão não sabia como preencher
seu boneco de vidro. Sabia que faltava algo. Primeiro, tentou água, mas a falta
de cor fazia com que o brinquedo continuasse passando a sensação de vazio. Usou
tinta preta para modificar o semblante. Escureceu demais as entranhas da peça.
Algo ali dentro precisava se destacar sem se envaidecer. Algo que tenha nascido
para conviver nas trevas com a solidão eterna.
Foi até à praia na esperança de encontrar inspiração. Molhou
os pés, pediu licença para as águas e afundou. Cedeu ao canto das profundezas
como quem pula do penhasco só para ter, por alguns segundos, a sensação do voo
– ou da queda. Imerso, sentiu o hálito solitário do abismo oceânico. Poucas
luzes cintilavam timidamente quase que por obrigação de gerar ali a mínima
sensação de espaço. Cada vez mais a pressão o obrigava a expirar a própria
vida. No fundo (do seu peito), aquela visita ao mar era, na verdade, sua
despedida. Cansou de perder noites e noites de sono pensando na finalização de
seu boneco de vidro. Foi então que o fogo lhe acariciou a pele. Ardeu tanto que
o grito sufocado se transformou num cardume de bolhas desorientadas. Era ela, a
alma das águas, a dançarina das trevas, a eterna vida no meio do nada. A
água-viva.
Delicadamente, consumiu a vitalidade do artesão. Conjurou
com seus tentáculos o ritual fúnebre que receberia aquele corpo velho e magro
como cadáver e, futuramente, como coral. A última fagulha de vida ordenou que
as mãos do velho – já marcadas pelo veneno do ser desossado – fizesse da gasta
camiseta uma cela capaz de aprisionar seu algoz. Conseguiu. Subiu. Secou.
Finalmente, dentro de sua casa pôde colocar a criatura dentro do boneco e ali
se fez a água negra e viva.
O coração de água-viva
Intocável. Desejável. Sensível. Silencioso. Coração de
água-viva que habita o oceano dentro de mim. Dança sem compromisso com o
espaço, não esbarra em nada, apenas flui amarrado pelas correntezas e
incertezas, sem paradeiro.
Coração de água-viva que não pode tocar outras criaturas.
Que faz do seu amor o veneno mais poderoso. Sabe que o beijo de boas-vindas é
também o aceno de despedida.
Coração esse que está aqui, pulsando no seu ritmo, levando
com seus tentáculos as muitas lembranças de desejos não realizados e amores afogados.
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