quarta-feira, 5 de junho de 2013

Caderno amarelo

Eu gostava da minha mesa. Pequena, cansada pelo tempo, encardida e tudo mais. Pouco me importava sua aparência. Existia uma "aura" em torno dela e quando me sentava para iniciar mais um dia de trabalho, sentia como se aquele móvel criasse uma barreira capaz de me defender das pessoas. Não que eu tivesse medo delas. Eu tinha preguiça mesmo. E se fosse pego bocejando, pronto, perdia o emprego.

A pior de todas era a chefa da sessão. Senhora de descendência oriental, cabelos de alumínio, lábios afinados pela falta de graça e o corpo transbordando em si mesmo. Fumava loucamente. Se estava feliz, fumava; se estava nervosa, fumava em dobro; se estava triste não fumava, engolia o maço e arrotava carbono. Se eu estava no local, tragava minha felicidade sem filtro. Sem piedade. Certa ela. Aprendi muito com isso.

Numa certa manhã, resolvi pegar um caderno para anotar tudo o que captava. Era muita informação para um garoto de 17 anos cuja mente só abrigava bandas de punk rock e a namoradinha "pique" revoltada. A capa era amarela - a cor que mais odeio - e as folhas não passavam de folhas. Nada, absolutamente nada de diferente. Perfeito.

Completei uma página com códigos e procedimentos que deveria utilizar no cotidiano e percebi que havia me desligado por um bom tempo enquanto redigia as informações.

(O lapso de tempo entre a escrita e a leitura do que foi escrito)

Subitamente, o setor inteiro caiu num silêncio medieval. Apenas o ranger da madeira e o assovio do vento expulsavam a ausência de ruído. Olhei para a cara das pessoas que trabalhavam comigo e percebi que seus olhos haviam sido removidos. As bocas estavam bem abertas e completamente vazias de língua e dentes. Pálidos, mantinham-se sentados como defuntos enterrados na vertical. Todos exalavam fumaça dos ombros.

Não senti medo nem aversão. Senti como se eles sempre tivessem sido assim. Velhos, gastos pela frustração de nunca terem sido nada além do motivo pelo qual a fileira de mesas no 8º andar permanecia lá, inalterável. Eram apenas elementos de figuração.

(fecha o caderno, abre os olhos)

Ela veio até mim e jogou uma pilha de processos para serem tramitados. Disse que queria tudo pronto até às 15h. Trabalho só é trabalho quando você sabe realizar tal ofício. Eu não sabia. E me recusara a perguntar mais do que já havia aprendido. Resultado: fiz tudo errado.

Quando ela se aproximou, minhas narinas jogaram um pano preto sobre as vias respiratórias como se cobrissem as janelas de uma casa fúnebre, deprimida pelo luto. Morrera ali meu respeito por aquela mulher. O que antes soava como uma leve admiração pela postura firme e a frieza natural dos fumantes, tornara-se ódio, desprezo e rancor.

Gritou nos meus ouvidos com seu bafo de dragão aposentado, como se suas amídalas tivessem sido substituídas por rochas chamuscadas. Chamou-me de burro indiretamente e resolveu em poucos segundos aquilo que eu levara horas para concluir. Acusou-me de não ter pedido ajuda. ela estava certa nesse ponto; eu realmente não pedi sua ajuda. E daí? Ela também poderia ter se oferecido. Não verbalmente, mas gestualmente. Aquela espinha entortada pela lordose e os traços do rosto desenhados com carvão não me transmitiam nenhum ar de cumplicidade. Boitatá que apagou o fogo pra não queimar todo o fumo. Egoísta demais.

Naquele instante só queria um lugar: minha mesa. Depois de sentado, deixei que a tristeza tomasse o lugar da raiva e recolhi o pouco de mim que havia salvo enquanto me arrastava até o escritório. Eu nunca quis impressionar as pessoas. Sempre gostei de ficar no canto, atrás das cortinas, no banco de reserva. Era como se me bastasse apenas fazer parte do time e ser a garantia de que se algo não desse certo ainda teriam a mim como reforço. Nunca quis ganhar um lugar ao sol. Odeio calor, odeio sol e tudo isso. Enfim, eu não queria que ela me adorasse ou dissesse meu nome com gosto, como fazia com o outro estagiário - maconheiro, boy e ninfomaníaco. Eu só queria que ela respeitasse meu espaço e soubesse que minha presença ali era necessária ainda que silenciosa e oculta.

Escrevi. Escrevi como nunca antes. Lotei as páginas com meus pensamentos, memórias, letras de músicas, ideias e angústias. Pensava muito em minha namorada e comecei a telefonar para ela no final do expediente. Sua voz me confortava... Ela sabia que mesmo longe eu estava ali. Isso era "amor" pra mim. Foram tantos parágrafos que todos no local perceberam minha ausência. Já não me viam mais prestando atenção nos detalhes técnicos, pedindo dicas de procedimentos para os mais velhos ou me oferecendo para buscar material no 4º andar. Eu sentava e escrevia, apenas. Fazia meu trabalho e voltava a escrever.

A mesa antes vazia passou a ser forrada por pequenos pedaços de papel com frases e escritos tirados de outros escritores. Eram como amuletos que afastavam aquela sucubus oriental sem traços de beleza. Pois bem, chegou o dia que tudo se tornou insuportável e eu tive que sair.

O último instante lá foi épico. Jamais me esqueci. Fiz tudo o que tinha para ser feito, terminei minhas tarefas, escrevi mais algumas folhas e então reservei uma maior para o última texto. Nela, depositei todas as mágoas que acumulara durante os meses de trabalho. Tudo o que, em silêncio, envenenou meu apego ao cargo e às pessoas ali presentes. Sequei ao ponto de dizer que não queria contato algum, despedida ou qualquer tipo de palavra de conforto. Não havia mais nada.

Nesse dia, arrumei minhas coisas, limpei a mesa - que mais uma vez seria abandonada - e parti. Todas me disseram "tchau" com a certeza de que estaria de volta amanhã.

Hoje faz 8 anos.    

Nenhum comentário: