Corre como nunca sem olhar pra trás sem dar tempo pra vírgula separar ele do passado que não estava ali pra perseguir, mas... agora respira.... para seguir as pegadas deixadas na vastidão do futuro incerto. Quem diria que estas pernas tão magras, estas canelas tão secas, durariam tempo o bastante pra fazer do distante o aqui e o agora?
Ele enche o pulmão e acelera novamente...
porque ninguém diria e por isso mesmo ele foi sem pensar no não dito só mirando o horizonte e querendo saber o que teria lá do outro lado onde apenas se enxerga com os olhos da imaginação e imagina só chegar a um lugar onde o começo se deita numa linha eterna e nunca mais se levantar era lá que ele queria estar descansando seus ombros tão tensionados pelo tempo perdido com pessoas com trabalho com barulhos com comidas sem tempero com lugares cheios com conversas vazias com garrafas vazias com briga com barriga dolorida de tanto nervoso com mudança de planos com encontro cancelados com mensagens não respondidas com respostas não enviadas com tudo com todos consigo mesmo com a distância que só lhe fazia... perder.... o fôlego.
Solta o ar, sente o corpo endurecer, finge algumas passadas mais lentas e...
retoma o compasso para não perder o pouco espaço compassado e começar novamente e lembrar de tudo que o deixou angustiado todos os dias desta semana interminável e agora é o momento de gastar energia queimando ela com algo que tire do peito o que estava preso nas ideias e pesou ah se pesou faz uma força continue adiante mais rápido veja só agora ele esvazia a mente como se nada absolutamente nada tivesse acontecido achando que isso é que é deixar pra trás o que não lhe fazia bem e meu bem ainda bem que daqui pra frente
Ele não para mais.
quinta-feira, 20 de dezembro de 2018
terça-feira, 11 de dezembro de 2018
De novo
Não é que não cabia. Havia espaço. O que não sabia era como encaixar. A forma também não era o problema, mas faltava posição, jeito, manha. Então, recolhia as peças e guardava na gaveta. Deixava lá, pra lembrança engolir e cobrir de poeira. Peça por peça, pedaço por pedaço, mudas, dentro do criado. O problema não era o que eu sentia. Não havia problema em sentir, mas demorei pra entender.
Nós.
A viagem já estava marcada. A decisão de ir pra longe - e sozinho - veio junto com uma velha vontade: aquele de se perder sabendo pra onde vai. Algo como se lançar ao desconhecido, sabendo que, de fato, trata-se do desconhecido. Uma necessidade que é complicada porque nasce simples: sair. Partir. Um parto, natural, que faz brotar toda a complexidade do ser, resumida num pequeno humano. Partir era o plano. Agora, cabia apenas encaixar os dias nos pedaços de tempo e organizar tudo. Nascer em outro lugar era preciso. Já não havia tanto espaço assim aqui, onde mesmo com posição, jeito, manha era difícil achar alguma forma de encaixar. Inclusive, esta nem era mais uma preocupação a berrar no canto das ideias. Havia emudecido esta tal vontade de encaixar. Demorei pra entender.
Eu.
Hoje ouvi uma música. Apenas uma, e nela fiquei. Bastava. A sensação preencheu o fundo da gaveta e o criado mudo abriu a boca. Suspirou, não disse nada, mas eu entendi que era pra ficar e fiquei. Parado, ali, olhando pra ele, tentando encaixar aquela letra que passava de um ouvido ao outro, pelo fundo da cabeça, dizendo que "todo carinho do mundo para mim é pouco". Remexi algumas peças escondidas, olhei seus pedaços, cada um mostrava fragmentos da sua foto. Os olhos distantes do rosto, mas perto do coração, como janela; a boca partida em duas, metade sorria, metade morria; as mãos, sem a maciez do toque, formavam um pedaço inteiro da imagem por conta das palmas bem abertas, esperando as minhas preenchê-las. As minhas mãos, do outro lado da moldura, encolhidas e cheias de pedaços que começaram a se encaixar. Senti falta. o problema não era o que eu sentia. Não havia problema em sentir, mas eu demorei pra perceber que o problema "é que eu amo você... e eu nem sei por que". De novo.
Você.
Nós.
A viagem já estava marcada. A decisão de ir pra longe - e sozinho - veio junto com uma velha vontade: aquele de se perder sabendo pra onde vai. Algo como se lançar ao desconhecido, sabendo que, de fato, trata-se do desconhecido. Uma necessidade que é complicada porque nasce simples: sair. Partir. Um parto, natural, que faz brotar toda a complexidade do ser, resumida num pequeno humano. Partir era o plano. Agora, cabia apenas encaixar os dias nos pedaços de tempo e organizar tudo. Nascer em outro lugar era preciso. Já não havia tanto espaço assim aqui, onde mesmo com posição, jeito, manha era difícil achar alguma forma de encaixar. Inclusive, esta nem era mais uma preocupação a berrar no canto das ideias. Havia emudecido esta tal vontade de encaixar. Demorei pra entender.
Eu.
Hoje ouvi uma música. Apenas uma, e nela fiquei. Bastava. A sensação preencheu o fundo da gaveta e o criado mudo abriu a boca. Suspirou, não disse nada, mas eu entendi que era pra ficar e fiquei. Parado, ali, olhando pra ele, tentando encaixar aquela letra que passava de um ouvido ao outro, pelo fundo da cabeça, dizendo que "todo carinho do mundo para mim é pouco". Remexi algumas peças escondidas, olhei seus pedaços, cada um mostrava fragmentos da sua foto. Os olhos distantes do rosto, mas perto do coração, como janela; a boca partida em duas, metade sorria, metade morria; as mãos, sem a maciez do toque, formavam um pedaço inteiro da imagem por conta das palmas bem abertas, esperando as minhas preenchê-las. As minhas mãos, do outro lado da moldura, encolhidas e cheias de pedaços que começaram a se encaixar. Senti falta. o problema não era o que eu sentia. Não havia problema em sentir, mas eu demorei pra perceber que o problema "é que eu amo você... e eu nem sei por que". De novo.
Você.
segunda-feira, 10 de dezembro de 2018
Tempestade
O tempo fechou. Ele estava no quintal, brincando com terra e plantas, quando percebeu a mudança no ar. Aquele mormaço que preenchia todo o espaço começou a ser cortado por sopros frios e apressados. O pequeno menino, por volta de seus 5 anos, levantou os olhos até o céu e viu que as nuvens estavam inquietas. Pouco a pouco, o manto cinzento cobriu as luzes de sol e a tempestade se fez presente. Ao invés de correr para dentro de casa, o menino correu foi até a rua e lá esperou pelos primeiros pingos que mais pareciam pedradas.
Trovões não o assustava. Gostava daquele retumbar que estremecia a carne e os ossos. De braços abertos, ele recebia os ventos cada vez mais furiosos. Por entre seus braços e pernas, sentia como se estivesse flutuando. Quando já não cabia mais água no alto e chão debaixo dos pés, caiu o mundo e o voou o menino.
As árvores dançavam com ele, conforme a tempestade orquestrava. Como se o corpo se transformasse num tornado, ele rodopiava, pulava na altura dos joelhos, mexia todos os membros de acordo com o ritmo do toró. Ventava mais do que os próprios ventos, aquele pivete, sozinho. A tempestade, surpresa com tamanha calmaria em meio às suas trovoadas, banhava com suas lágrimas de raiva aquele pequeno ser e, com seus raios, dava a ele o brilho prateado que só sua pele escura poderia refletir.
Foi assim que ele recebeu a tempestade: leve, pequeno, com um sorriso gigante, de espírito aberto. Procurou-se em meio à ela, a tempestade, e, enfim, encontrou-se.
...
O tempo acabou. A rotina parecia nunca se saciar. Consumia todas as horas possíveis – e impossíveis – sem que fôssemos capazes, muitas vezes, de encontrar algum momento sem nenhuma tarefa a ser realizada. As reclamações quanto à falta de espaço dentro do tempo não são novas, pelo contrário: são tão constantes que acabam por consumir mais tempo. Irônico, inclusive. É o trabalho que pega a maior parte do dia pra si, mas é a ida e volta até ele também. Durante o expediente, reuniões, problemas, soluções, reuniões, comunicados, demandas, reuniões, acúmulo de trabalho, corrida contra o relógio, horas-extras, fim do expediente, reunião urgente.
Ao sair daquele local que tenta parecer com sua casa, mas nada tem de lar, ele olhou pra baixo, em direção ao celular. Por mais alguns segundos, forçou-se a responder compromissos de modo curto e objetivo, temendo perder mais tempo. E por que perder? Porque sente como se estivesse no gargalo da ampulheta, nadando contra a corrente de areia que escorre constantemente. Então, percebeu uma mudança de pressão no ar. “É chuva, bem agora que vou voltar pra casa...”. O céu já estava vestindo seu traje mais escuro. Os cabelos grisalhos dela sacodiam imensos e densos. Mirou o par de olhos cansados em direção à velha amiga e conseguiu achar o tempo. Ele estava fechado, mas longe de acabar. Sabia que não seria capaz de se banhar ali, com tantos compromissos gradados em sua pele – escura, mas sem brilho. Decidiu que iria fazer seu percurso de volta caminhando. Andou, andou, andou bastante e, como se ela estivesse contente com a companhia, acompanhou o rapaz até seu destino. Quando ele pisou dentro da estação de trem, a chuva caiu. Durante todo o caminho, ele sentiu o sopro sobre o rosto e até achou graça nas rajadas de vento que ela soltava para assustar as demais pessoas – apressadas e temendo a chuvarada repentina. Lembrou-se de como dançava e mais: lembrou-se com quem dançava. Encontraram-se.
...
O tempo mudou. Finalmente, um importante ciclo havia se concluído. Foram anos de estudos, pesquisas, aprendizados e relações pessoais. A graduação exigiu muito dele, mas como se portasse um cinismo crônico, parecia que nada lhe atingia a ponto de causar insegurança. Fez o que tinha que ser feito e terminou aquele compromisso. Não só aquele, inclusive. Terminou também o amor que havia cultivado. Esgotava-se ali algo que havia lhe preenchido. A terra voltava a secar e a ele só restavam as lembranças pra lançar ao ar. O cigarro o acompanhava. Cobrava muito de sua saúde, mas era a fonte de distração que o ajudava a descansar a mente. Pela janela do seu quarto, olhou o horizonte e viu, distante, porém crescendo com rapidez, a nuvem escura e gigantesca. Não se lembra da última vez que reparou na tempestade. Enquanto se formava, ela anunciava sua presença com os raios impacientes e ele, como de costume, apenas aceitou sua vinda. Era uma velha visita que chegava em boa hora. Sentado, com as pernas para fora e a fumaça para dentro, arrepiou quando a pele – escura e marcada – foi acariciada pelas pontas geladas dos dedos dela. Era aquele retorno repleto de saudade que faz chegar com frieza, cautela, mas com vontade. Pela primeira vez, ele decidiu conversar com ela. Um trago...
Chova, chova em mim, mais uma vez, minha amiga, minha mãe, minha parceira. Você que sempre me acompanhou... Que sempre soprou minhas feridas sem deixar de punir meus pensamentos tortuosos com seus trovões...Você que me ensinou a ser bravo e, mesmo assim, amável. Sei que estou em dívida contigo. Ando sem tempo para prestar atenção em ti quando chega. Eu já não danço mais na rua, você percebeu, né? Pois é, tempos difíceis. Eu falo muito de tempo, reparou? Ele foi embora, sabia? Acabou. Senti um peso no peito, uma vontade de nada, apenas de desaparecer. Mas desaparecer de que jeito? Não tem como, não agora. Aí eu tento me esconder em meio à essa fumaça aqui, entende? Eu sei que você odeia ela, mas sei que me entende... Quando eu fecho os olhos, ainda te sinto me olhando, vendo eu dançar. Quando você rasga o céu com suas reclamações eu também sinto a vibração debaixo do peito. É nos detalhes que eu te encontro. Quando minha pele brilha, também. Desculpe pela distância.
É só uma questão de tempo.
Trovões não o assustava. Gostava daquele retumbar que estremecia a carne e os ossos. De braços abertos, ele recebia os ventos cada vez mais furiosos. Por entre seus braços e pernas, sentia como se estivesse flutuando. Quando já não cabia mais água no alto e chão debaixo dos pés, caiu o mundo e o voou o menino.
As árvores dançavam com ele, conforme a tempestade orquestrava. Como se o corpo se transformasse num tornado, ele rodopiava, pulava na altura dos joelhos, mexia todos os membros de acordo com o ritmo do toró. Ventava mais do que os próprios ventos, aquele pivete, sozinho. A tempestade, surpresa com tamanha calmaria em meio às suas trovoadas, banhava com suas lágrimas de raiva aquele pequeno ser e, com seus raios, dava a ele o brilho prateado que só sua pele escura poderia refletir.
Foi assim que ele recebeu a tempestade: leve, pequeno, com um sorriso gigante, de espírito aberto. Procurou-se em meio à ela, a tempestade, e, enfim, encontrou-se.
...
O tempo acabou. A rotina parecia nunca se saciar. Consumia todas as horas possíveis – e impossíveis – sem que fôssemos capazes, muitas vezes, de encontrar algum momento sem nenhuma tarefa a ser realizada. As reclamações quanto à falta de espaço dentro do tempo não são novas, pelo contrário: são tão constantes que acabam por consumir mais tempo. Irônico, inclusive. É o trabalho que pega a maior parte do dia pra si, mas é a ida e volta até ele também. Durante o expediente, reuniões, problemas, soluções, reuniões, comunicados, demandas, reuniões, acúmulo de trabalho, corrida contra o relógio, horas-extras, fim do expediente, reunião urgente.
Ao sair daquele local que tenta parecer com sua casa, mas nada tem de lar, ele olhou pra baixo, em direção ao celular. Por mais alguns segundos, forçou-se a responder compromissos de modo curto e objetivo, temendo perder mais tempo. E por que perder? Porque sente como se estivesse no gargalo da ampulheta, nadando contra a corrente de areia que escorre constantemente. Então, percebeu uma mudança de pressão no ar. “É chuva, bem agora que vou voltar pra casa...”. O céu já estava vestindo seu traje mais escuro. Os cabelos grisalhos dela sacodiam imensos e densos. Mirou o par de olhos cansados em direção à velha amiga e conseguiu achar o tempo. Ele estava fechado, mas longe de acabar. Sabia que não seria capaz de se banhar ali, com tantos compromissos gradados em sua pele – escura, mas sem brilho. Decidiu que iria fazer seu percurso de volta caminhando. Andou, andou, andou bastante e, como se ela estivesse contente com a companhia, acompanhou o rapaz até seu destino. Quando ele pisou dentro da estação de trem, a chuva caiu. Durante todo o caminho, ele sentiu o sopro sobre o rosto e até achou graça nas rajadas de vento que ela soltava para assustar as demais pessoas – apressadas e temendo a chuvarada repentina. Lembrou-se de como dançava e mais: lembrou-se com quem dançava. Encontraram-se.
...
O tempo mudou. Finalmente, um importante ciclo havia se concluído. Foram anos de estudos, pesquisas, aprendizados e relações pessoais. A graduação exigiu muito dele, mas como se portasse um cinismo crônico, parecia que nada lhe atingia a ponto de causar insegurança. Fez o que tinha que ser feito e terminou aquele compromisso. Não só aquele, inclusive. Terminou também o amor que havia cultivado. Esgotava-se ali algo que havia lhe preenchido. A terra voltava a secar e a ele só restavam as lembranças pra lançar ao ar. O cigarro o acompanhava. Cobrava muito de sua saúde, mas era a fonte de distração que o ajudava a descansar a mente. Pela janela do seu quarto, olhou o horizonte e viu, distante, porém crescendo com rapidez, a nuvem escura e gigantesca. Não se lembra da última vez que reparou na tempestade. Enquanto se formava, ela anunciava sua presença com os raios impacientes e ele, como de costume, apenas aceitou sua vinda. Era uma velha visita que chegava em boa hora. Sentado, com as pernas para fora e a fumaça para dentro, arrepiou quando a pele – escura e marcada – foi acariciada pelas pontas geladas dos dedos dela. Era aquele retorno repleto de saudade que faz chegar com frieza, cautela, mas com vontade. Pela primeira vez, ele decidiu conversar com ela. Um trago...
Chova, chova em mim, mais uma vez, minha amiga, minha mãe, minha parceira. Você que sempre me acompanhou... Que sempre soprou minhas feridas sem deixar de punir meus pensamentos tortuosos com seus trovões...Você que me ensinou a ser bravo e, mesmo assim, amável. Sei que estou em dívida contigo. Ando sem tempo para prestar atenção em ti quando chega. Eu já não danço mais na rua, você percebeu, né? Pois é, tempos difíceis. Eu falo muito de tempo, reparou? Ele foi embora, sabia? Acabou. Senti um peso no peito, uma vontade de nada, apenas de desaparecer. Mas desaparecer de que jeito? Não tem como, não agora. Aí eu tento me esconder em meio à essa fumaça aqui, entende? Eu sei que você odeia ela, mas sei que me entende... Quando eu fecho os olhos, ainda te sinto me olhando, vendo eu dançar. Quando você rasga o céu com suas reclamações eu também sinto a vibração debaixo do peito. É nos detalhes que eu te encontro. Quando minha pele brilha, também. Desculpe pela distância.
É só uma questão de tempo.
Os cantos
Mantenha-me. Guarde um lugar para mim onde só você consiga
chegar. Estarei no canto que ninguém nunca olhou. Um lugar perdido na realidade
que, sem se mover, consegue te levar até mim.
Eu estarei lá, no detalhe que consegue chamar sua atenção. Assim, poderá me encontrar, sempre que quiser, e recordar as cores que tingiram a trilha sonora pros nossos sentimentos. Azul, rosa e laranja, borrados no céu entardecido, como se tivessem sido pintadas a dedo no céu. No canto do seu peito eu alcanço o teto onde brilham as lembranças que jamais desaparecerão. Eu moro em você porque você me fez abrigo, simples assim.
Um canto pra mim.
Quero que continue me sentindo. Toda vez que o calor suave do amanhecer tocar seu rosto, lembre-se do meu toque. A cada som que fizer seu sangue vibrar ritmado e devolver ao corpo sua eletricidade, feche os olhos e imagine nossas cores. Deixe-me tocar, dia e noite.
Azul rosa e laranja. Somos nós, dançando, misturados, tom sobre tom, escorrendo pelos cantos da tela, para sempre. Eu jamais te esquecerei. Você é música. É a cor pras minhas músicas favoritas.
Estarei nos cantos que nunca ninguém cantou. Só você.
Eu jamais te esquecerei.
Um canto pra nós.
(Em memória àquele cujo silêncio se fazia canção).
Eu estarei lá, no detalhe que consegue chamar sua atenção. Assim, poderá me encontrar, sempre que quiser, e recordar as cores que tingiram a trilha sonora pros nossos sentimentos. Azul, rosa e laranja, borrados no céu entardecido, como se tivessem sido pintadas a dedo no céu. No canto do seu peito eu alcanço o teto onde brilham as lembranças que jamais desaparecerão. Eu moro em você porque você me fez abrigo, simples assim.
Um canto pra mim.
Quero que continue me sentindo. Toda vez que o calor suave do amanhecer tocar seu rosto, lembre-se do meu toque. A cada som que fizer seu sangue vibrar ritmado e devolver ao corpo sua eletricidade, feche os olhos e imagine nossas cores. Deixe-me tocar, dia e noite.
Azul rosa e laranja. Somos nós, dançando, misturados, tom sobre tom, escorrendo pelos cantos da tela, para sempre. Eu jamais te esquecerei. Você é música. É a cor pras minhas músicas favoritas.
Estarei nos cantos que nunca ninguém cantou. Só você.
Eu jamais te esquecerei.
Um canto pra nós.
(Em memória àquele cujo silêncio se fazia canção).
terça-feira, 30 de outubro de 2018
Olhe pro chão
Meus joelhos viviam ralados na infância. Eu corria muito e não capotava. Porém, eu tropeçava demais enquanto andava. Isso porque eu não andava olhando pro chão: eu olhava pra frente, mirando o horizonte. Meu pai, que sempre implicou com tudo o que eu fazia, era quem saía comigo e já nos primeiros segundos de caminhada lançava um: "Olha pro chão, rapaz! Vai tropeçar e cair aí".
Eu abaixava a cabeça e olhava pra porra do chão. Não via muita coisa além do caminho de barro, asfalto, mais um teco de barro, asfalto, esgoto, barro, asfalto, pula a merda do cachorro, esgoto... O que mais me irritava era, primeiro, meu pai, depois o fato de ter que andar de cabeça baixa. Eu queria andar igual minha avó, mãe de meu pai, cabeça erguida, postura intacta, passos compassados. Só que com ele não tinha o que querer. Era andar olhando pro chão pra não levar xingão.
Uma vez, tinha saído com minha avó e falei pra ela que o pai vivia me dando bronca pra andar olhando pro chão porque dizia que eu iria cair se não olhasse e isso me irritava. Ela perguntou o porquê da irritação e eu disse que não queria andar de cabeça baixa porque parecia que os outros iam achar que eu estava com vergonha deles. Daí, minha avó, no auge de sua sabedoria, disse:
- Seu pai pediu pra você baixar os olhos, não a cabeça.
Nesse momento, tudo fez sentido. "Olha pro chão". Hoje, ando exatamente do jeito que - ambos - me ensinaram: cabeça erguida, visão baixa.
Por que resgatei essa lembrança? Porque hoje, enquanto conversava com um amigo querido sobre sentir que nós, enquanto povo, estamos andando para os lados e não para frente, pensei: tudo isso porque estamos mirando o horizonte sem prestar atenção em nossos passos e onde estamos pisando. Porque, ao mirar apenas o além, não conferimos sobre quais caminhos estamos andando. Consequentemente, passamos pela estrada dos outros - uma espécie de labirinto que nos impede de progredir. Gastamos nossas energias tentando resolver o problema que os outros criaram. Andamos de um lado pro outro.
A gente capota, levanta e acha que anda pra frente. Entretanto, na verdade, só estamos limpando os joelhos ralados e não olhando pra onde deveríamos realmente olhar.
Pra nossa caminhada.
sábado, 20 de outubro de 2018
Maria Zilda
A lembrança é o que nos faz sentir o presente e ver o futuro.
Maria Zilda, irmã de minha vó, logo, era minha mãe e tia, porque aqui era assim que a gente se sentia. A mais velha, rígida, ereta, esguia, com as frestas da cara talhadas na incansável força da mulher preta nordestina que quando estava imersa no cotidiano, segurava os cabelos com o turbante sempre perfeitamente amarrado - e quando descascava a manga com a faca cega, deixava o crespo reluzir no sol, mostrando pra ele quem é que raiava de verdade. Primeira vez que viajei para fora do quarteirão da minha vila, fui para Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Eu, minha mãe e meu irmão.
Descemos do ônibus num suposto terminal - que, na verdade, era só um ponto parado na beira de uma rua qualquer - e fomos encontrar tia Zilda no local combinado. Desencontros à parte, quando ela chegou, o alívio veio junto. O vestido florido, o turbante, a altura, os óculos gastos e a visão infalível de quem enxerga os outros pelo movimento - e não pela imagem estática - formavam a matriarca em nossa frente. Pagou-me um suco de goiaba naquele calor que parecia um abraço de saudades que já vem com todo o suor escorrido ao longo do longo caminho.
Em sua casa, o cheiro foi a primeira sensação a me dominar. Era cheiro de de quem não deixava um cômodo sem ser lustrado; um taco sem ser encerado; um móvel sem ser espanado. Tia Zilda, como a maioria das mulheres de minha família, ganhou a vida limpando a casa dos outros. Perdeu muito, só que ganhou comida, então, ganhou a vida. Em seu quarto, eu me encantei com as joias e as bonecas de porcelana extremamente perfumadas. Um Jesus ensanguentado nas paredes e o teto era varado pela luz que encontrava aconchego por entre as telhas. O quarto ela era tipo um universo: tinha começo, meio, alto, baixo, e fim. Fiquei lá por alguns bons minutos até ela me chamar pra tomar banho na bica.
O quintal dos fundos tinha um cano que servia de chuveiro pra gente se livrar do calor. Eu fiquei tímido no começo, mas depois não quis sair mais daquela cachoeira de PVC. Havia uma mangueira gigante aos fundos, com uma copa digna de fazer a maior sombra do terreno. Eu já imaginei o dia seguinte, debaixo dela, tranquilo, largado. Mas o dia seguinte não foi bem assim.
Tia Zilda precisava de frango, farinha e feijão preto. Minha mãe ficou encarregada de ir buscar. Subimos uma ladeira enorme, debaixo do sol e - eis aqui o motivo desse texto - uma música tocava em todos os comércios, sem parar, bem alto: "Beija-flor", do Timbalada. Pra mim, foi a trilha sonora do Rio de Janeiro, da quebrada de Duque de Caxias, onde eu cheguei pela primeira vez e por mais uma vez me senti em casa. Era rua, era calor, era gente falando alto, era bicho correndo entre as pessoas correndo, era subida, ladeira, era pico, lá em cima, era mercadinho, era farinha no saco - não na embalagem -, era galinha que minha mãe escolhia sem olhar nos olhos, era frango quando fosse pro prato, era feijão preto pago com moeda. A música entrou em mim como se dissesse: "você vai estar com 31 e ainda falará de mim". No caso, escrevi.
Tia Zilda fez o melhor pirão de todos e o feijão preto dela era só dela, não tem receita que aprenda a fazer como ela fazia. Tia Zilda, como eu te amo até hoje, a senhora sou eu também. Duque de Caxias sempre será a senhora e quando eu piso no Rio, peço sua bênção, assim como a de sua outra irmã, Josefina.
Ela me trouxe farinha quando veio me visitar aqui, em São Paulo, porque comida sempre foi uma forma da gente se conversar em minha família.
Porque o silêncio da fome era algo que a gente evitava com tudo o que tinha: frango, farinha e feijão.
Quando tinha.
Maria Zilda, irmã de minha vó, logo, era minha mãe e tia, porque aqui era assim que a gente se sentia. A mais velha, rígida, ereta, esguia, com as frestas da cara talhadas na incansável força da mulher preta nordestina que quando estava imersa no cotidiano, segurava os cabelos com o turbante sempre perfeitamente amarrado - e quando descascava a manga com a faca cega, deixava o crespo reluzir no sol, mostrando pra ele quem é que raiava de verdade. Primeira vez que viajei para fora do quarteirão da minha vila, fui para Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Eu, minha mãe e meu irmão.
Descemos do ônibus num suposto terminal - que, na verdade, era só um ponto parado na beira de uma rua qualquer - e fomos encontrar tia Zilda no local combinado. Desencontros à parte, quando ela chegou, o alívio veio junto. O vestido florido, o turbante, a altura, os óculos gastos e a visão infalível de quem enxerga os outros pelo movimento - e não pela imagem estática - formavam a matriarca em nossa frente. Pagou-me um suco de goiaba naquele calor que parecia um abraço de saudades que já vem com todo o suor escorrido ao longo do longo caminho.
Em sua casa, o cheiro foi a primeira sensação a me dominar. Era cheiro de de quem não deixava um cômodo sem ser lustrado; um taco sem ser encerado; um móvel sem ser espanado. Tia Zilda, como a maioria das mulheres de minha família, ganhou a vida limpando a casa dos outros. Perdeu muito, só que ganhou comida, então, ganhou a vida. Em seu quarto, eu me encantei com as joias e as bonecas de porcelana extremamente perfumadas. Um Jesus ensanguentado nas paredes e o teto era varado pela luz que encontrava aconchego por entre as telhas. O quarto ela era tipo um universo: tinha começo, meio, alto, baixo, e fim. Fiquei lá por alguns bons minutos até ela me chamar pra tomar banho na bica.
O quintal dos fundos tinha um cano que servia de chuveiro pra gente se livrar do calor. Eu fiquei tímido no começo, mas depois não quis sair mais daquela cachoeira de PVC. Havia uma mangueira gigante aos fundos, com uma copa digna de fazer a maior sombra do terreno. Eu já imaginei o dia seguinte, debaixo dela, tranquilo, largado. Mas o dia seguinte não foi bem assim.
Tia Zilda precisava de frango, farinha e feijão preto. Minha mãe ficou encarregada de ir buscar. Subimos uma ladeira enorme, debaixo do sol e - eis aqui o motivo desse texto - uma música tocava em todos os comércios, sem parar, bem alto: "Beija-flor", do Timbalada. Pra mim, foi a trilha sonora do Rio de Janeiro, da quebrada de Duque de Caxias, onde eu cheguei pela primeira vez e por mais uma vez me senti em casa. Era rua, era calor, era gente falando alto, era bicho correndo entre as pessoas correndo, era subida, ladeira, era pico, lá em cima, era mercadinho, era farinha no saco - não na embalagem -, era galinha que minha mãe escolhia sem olhar nos olhos, era frango quando fosse pro prato, era feijão preto pago com moeda. A música entrou em mim como se dissesse: "você vai estar com 31 e ainda falará de mim". No caso, escrevi.
Tia Zilda fez o melhor pirão de todos e o feijão preto dela era só dela, não tem receita que aprenda a fazer como ela fazia. Tia Zilda, como eu te amo até hoje, a senhora sou eu também. Duque de Caxias sempre será a senhora e quando eu piso no Rio, peço sua bênção, assim como a de sua outra irmã, Josefina.
Ela me trouxe farinha quando veio me visitar aqui, em São Paulo, porque comida sempre foi uma forma da gente se conversar em minha família.
Porque o silêncio da fome era algo que a gente evitava com tudo o que tinha: frango, farinha e feijão.
Quando tinha.
sexta-feira, 10 de agosto de 2018
Suco de manga
Rastejando, chego até suas pernas, sinto o sangue pulsando e o calor que sempre desejei ter dentro de mim, pulsando. Viril, venoso e venenoso. A dúvida é: será que subo ou será que mordo? Será que fico ou será que finco minha boca na sua pele? Dúvida nenhuma. Eu sei bem o que quero, só não sei ainda como me convencer a fazer o que quero.
O cheiro. Sempre tive um problema com cheiro. Não sei se posso chamar de problema, mas é algo que me tira a razão. Eu sinto, eu sinto entrando dentro de mim e vai aquecendo o caminho por onde passa. Vai ficando quente e meu corpo começa a se mexer como se estivesse em ebulição. As pernas se fecham tentando evitar o impulso que faz o corpo ir até o outro – o seu – e tirar um pedaço pra comer com as mãos, sem talher. O cheiro da respiração quente no cangote, fervendo cada pelo invisível da nuca, fazendo escorrer suor pelos cantos sem suar; sobra só a sensação do sal salgando o par, nós dois, e o seu sussurro que me diz tudo sem ser chato e previsível. Eu quero é mais. Põe mais gosto nessa sal.
Levanta daí, vai. Dança comigo. Faz o calor ser trilha sonora à flor da pele. Conjuga o verbo errado no imperativo do meu querer – e só do meu – a dizer que te quer porque pode. Porque eu mereço. E mereço você só pro meu eu. Não tira o mormaço e só assopre se for pra apagar o que já está no talo do filtro e pegar outro do maço. Eu quero 22 motivos pra continuar envenenando a fonte do meu bafo quente que te faz voltar todos os dias no mesmo horário, pela manhã da noite não dormida. Tô esperando você buscar no crepúsculo cotidiano um motivo pra vir na minha porta filar meus cigarros.
Essa música maldita que me excita de um jeito que eu não sei explicar, mas é algo parecido com descascar uma manga com as mãos e chupar todo o doce em busca do caroço – que não tem gosto de nada. E quando chego nele, o tal caroço, passo pelos lábios aquele rastro de dureza, rigidez, aquele pedaço impenetrável que num deslizar de mãos lambuzadas vai parar dentro da boca, faz babar, engasgar e, então, cuspir. Suco de manga.
Alguém tira essa música maldita ou aumenta o volume de uma vez por todas?!
quinta-feira, 12 de julho de 2018
Contato
Há muito tempo, desde as datas em que não cabiam nos dias, evito o contato. Tive pra mim que não posso, de fato, aproximar-me demais das pessoas. Isso porque quando me conecto a elas, um processo de devastação se inicia e aquilo que veio da atração quebra a tração se torna a causa da separação. Meu querer quer demais e eu já não tenho mais forças para negar a ele tudo o que não pôde ter. Então, na falsa esperança de lidar com tal situação, simplesmente evito o contato.
Parei diante do mar e comecei a conversar com ela, dona de vários nomes, mas naquele dia queria ser chamada de Janaína. Estava calma, até, observando-me como quem já sabia exatamente o que eu não ia dizer - e que era exatamente o que lhe interessava. Eu fiquei parado, sem entrar na boca de seu oceano. Era uma mistura de medo e respeito, ou ambos ao mesmo tempo. Reverência. Contei a ela como estava meu coração naquele instante. A paisagem me sugava os pensamentos ruins e sentia como se minha maré estivesse novamente cheia. Entretanto, evitei falar sobre ele - que estava pouco mais à frente, jogado nas mechas de Janaína a acariciar a areia com suas pontas. Sabia que se pronunciasse seu nome à ela, invocaria o pior em mim: a vontade de tê-lo. Não houve consolo. Virei-me, caminhei devagar para fora da orla, deixei meus pertences e voltei correndo para os braços dela. Mergulhei em seu peito na busca aconchego, deitei minha cabeça debaixo de suas águas e, finalmente, deixei de existir na superfície. Não fui tão fundo, mas permiti que meu corpo afundasse. A sensação foi boa e, mesmo submerso, ainda senti ele por perto, quebrando os fios de Janaína com suas braçadas.
Avançar e recuar. Quando recuar, recolher. Depois de recolhido, começar a me secar. Já seco, fico intocável. Eis aí a morte do contato. A pele não quer mais. "Abandônico", li uma vez. Este termo se encaixou bem à imagem que tenho de mim. Ainda assim, pensei: como que é abandonado aquele que nunca foi de ninguém? Toda vez que eu quis, não me quiseram e talvez fosse isso que me atraía.
Tração. Ser do outro sem pertencer a ele ou se perder esquecendo de ser quem se é. Quis, muito, sem abrir mão de mim, desejando que eu outro me dominasse achando, de fato, que estava dominando, mas como numa dança - falando da perspectiva de quem é conduzido - eu deixaria ser levado. Atração. Ir e vir, como o movimento das tranças escuras de Janaína, tão pretas quando sua pele molhada de maresia. No momento em que mergulhei, senti que estava indo na direção dele e, sem vê-lo, imaginei seu corpo deslizando próximo ao meu. Sem contato.
Hoje eu sei bem o que fazer, mas finjo que não. Vou seguindo os dias e distraindo a mente e o coração. Não falo mais em amor, muito menos em paixão. Não sinto mais fogo queimando, muito menos chuva encharcando. O que sinto é o chão debaixo dos meus pés. Muitos anos andando sozinho e aprendendo, passo seguido de passo, como me equilibrar. Daí veio a sensação de que mais importante do que saber para onde quero ir é saber como voltar se o "lá" for pior que aqui.
Pergunto a mim mesmo: se gosto tanto dessa firmeza abaixo dos pés, por que me rendo à leveza das águas em que ela vive? Por que eu preciso tanto falar com ela? Janaína nunca me responde com palavras. Prefere me dizer com seu perfume salgado.
Se olho para cima e vejo as nuvens carregadas, sei que minha mãe me ouve, mas por que insisto em Janaína? Eu estava tão bem enquanto seguia pela terra fresca sem me distrair. Por que, agora, eu tive que ir atrás dela buscar acolhimento, compreensão, carinho, lá na bacia do mundo? Por que eu troquei solo por água? Por que troquei terra pelo mar? Por que nem a tempestade eu consegui levar para agitar aquela tranquilidade que repousava no rosto litorâneo de Janaína?
Porque no mar eu não toco, eu sou tocado.
É como me sinto quando deito ao lado dele e tento pegar no sono antes que o pegue pelo braço.
Eu não o toco, eu sou tocado.
Contato.
Parei diante do mar e comecei a conversar com ela, dona de vários nomes, mas naquele dia queria ser chamada de Janaína. Estava calma, até, observando-me como quem já sabia exatamente o que eu não ia dizer - e que era exatamente o que lhe interessava. Eu fiquei parado, sem entrar na boca de seu oceano. Era uma mistura de medo e respeito, ou ambos ao mesmo tempo. Reverência. Contei a ela como estava meu coração naquele instante. A paisagem me sugava os pensamentos ruins e sentia como se minha maré estivesse novamente cheia. Entretanto, evitei falar sobre ele - que estava pouco mais à frente, jogado nas mechas de Janaína a acariciar a areia com suas pontas. Sabia que se pronunciasse seu nome à ela, invocaria o pior em mim: a vontade de tê-lo. Não houve consolo. Virei-me, caminhei devagar para fora da orla, deixei meus pertences e voltei correndo para os braços dela. Mergulhei em seu peito na busca aconchego, deitei minha cabeça debaixo de suas águas e, finalmente, deixei de existir na superfície. Não fui tão fundo, mas permiti que meu corpo afundasse. A sensação foi boa e, mesmo submerso, ainda senti ele por perto, quebrando os fios de Janaína com suas braçadas.
Avançar e recuar. Quando recuar, recolher. Depois de recolhido, começar a me secar. Já seco, fico intocável. Eis aí a morte do contato. A pele não quer mais. "Abandônico", li uma vez. Este termo se encaixou bem à imagem que tenho de mim. Ainda assim, pensei: como que é abandonado aquele que nunca foi de ninguém? Toda vez que eu quis, não me quiseram e talvez fosse isso que me atraía.
Tração. Ser do outro sem pertencer a ele ou se perder esquecendo de ser quem se é. Quis, muito, sem abrir mão de mim, desejando que eu outro me dominasse achando, de fato, que estava dominando, mas como numa dança - falando da perspectiva de quem é conduzido - eu deixaria ser levado. Atração. Ir e vir, como o movimento das tranças escuras de Janaína, tão pretas quando sua pele molhada de maresia. No momento em que mergulhei, senti que estava indo na direção dele e, sem vê-lo, imaginei seu corpo deslizando próximo ao meu. Sem contato.
Hoje eu sei bem o que fazer, mas finjo que não. Vou seguindo os dias e distraindo a mente e o coração. Não falo mais em amor, muito menos em paixão. Não sinto mais fogo queimando, muito menos chuva encharcando. O que sinto é o chão debaixo dos meus pés. Muitos anos andando sozinho e aprendendo, passo seguido de passo, como me equilibrar. Daí veio a sensação de que mais importante do que saber para onde quero ir é saber como voltar se o "lá" for pior que aqui.
Pergunto a mim mesmo: se gosto tanto dessa firmeza abaixo dos pés, por que me rendo à leveza das águas em que ela vive? Por que eu preciso tanto falar com ela? Janaína nunca me responde com palavras. Prefere me dizer com seu perfume salgado.
Se olho para cima e vejo as nuvens carregadas, sei que minha mãe me ouve, mas por que insisto em Janaína? Eu estava tão bem enquanto seguia pela terra fresca sem me distrair. Por que, agora, eu tive que ir atrás dela buscar acolhimento, compreensão, carinho, lá na bacia do mundo? Por que eu troquei solo por água? Por que troquei terra pelo mar? Por que nem a tempestade eu consegui levar para agitar aquela tranquilidade que repousava no rosto litorâneo de Janaína?
Porque no mar eu não toco, eu sou tocado.
É como me sinto quando deito ao lado dele e tento pegar no sono antes que o pegue pelo braço.
Eu não o toco, eu sou tocado.
Contato.
segunda-feira, 23 de abril de 2018
Atração
Era uma noite sem nuvens no céu. Apenas aquele azul escuro e
profundo, forrado com pontos cintilantes. Eu estava acompanhado de meu melhor
amigo. Caminhávamos pelas ruas do bairro sem motivo específico. Bastava-nos
andar. Era o movimento que nos atraía – e a companhia um do outro também. Atraía.
Lembro me de parar por alguns instantes e comentar com ele sobre a imensidão do universo sobre nós. Ele, curiosamente, parecia acender os olhos como se fossem estrelas. Eu explicava sobre qualquer coisa que para mim fazia sentido, mas que não tinha compromisso – ou base – algum com a ciência; com a exatidão do saber.
- Veja como estamos distantes. Como não existe nada perto fora daqui.
- Verdade. A gente tá no meio do universo e ele não tem fim, né?
- É, ele não tem fim.
- E eu achando que a gente que tava longe de tudo morando aqui. Longe é lá fora, no espaço.
- Sim. Aqui não tem muita coisa pra fazer e pra sair daqui é difícil, mas pensa como deve ser lá no vácuo. Sempre silêncio, sempre frio.
- Mas é bonito de olhar daqui. A gente não é o centro do universo, né?
- Não, nem sei se tem centro só sei que nós é que não somos. Tem galáxias e acho que todo mundo que tá dentro delas se acha o centro das coisas, mas não é. Não se um dia conseguir sair do lugar onde está e ver que existem mais lugares.
- Louco isso. Você acredita em vida fora daqui?
- Acho que sim. Porque se a gente pensar que lá fora tudo pode estar “morto” é porque em algum momento teve vida. E não só a nossa. Mas sei lá, não me interessa muito pensar nisso.
- Eu acho que não tem como sermos os únicos, é tudo muito grande e a gente é muito pequeno.
- Sim, pode ser que tenha. Mas o que me interessa mesmo é pensar no tempo lá fora, no espaço.
- Como assim?
- Não sei explicar direito, mas o tempo lá é diferente do daqui e isso influencia em tudo e todos. Fora daqui, passado, presente e futuro tão em tempos diferentes do nosso passo, presente e futuro aqui, entende?
- Acho que sim...
- Daí eu sinto que estamos mais longe de tudo mesmo... Mais afastados... Sozinhos.
- Bom, mas estamos aqui, não? Então é isso.
Após esta conversa, lembro que continuamos a olhar o céu, buscando uma profundidade que encontrávamos em nossas cabeças, um buraco negro, um vácuo que só poderia ser preenchido com os mistérios do conhecimento. Éramos dois adolescentes tentando entender o universo, nossa posição nele e o que ele escondia de nós – ou o que não estávamos enxergando.
Quando fiquei mais velho, costumava dizer em algumas conversas que para mim e meus amigos, durante a infância, o universo era do tamanho do quarteirão em que morávamos e que a qualquer dobra de esquina desconhecida morava o infinito. Hoje, ao recordar deste momento com meu amigo, penso que a sensação de afastamento, isolamento, de estar à deriva no todo é, em muitos aspectos, fruto de uma necessidade “humana” de se autocentrar para não se sentir solto na imensidão. Para ter onde voltar, ir, ficar, partir. Para ter movimento. Era o movimento que nos atraía – e a companhia um do outro também.
Atraía.
Percebi, com esta conversa, que nas palmas de minha mão cabe uma microdimensão capaz de abrir janelas para o além daqui. Foi assim que eu aprendi algo apenas olhando para o céu numa noite sem nuvens:
Que nós nunca estamos longe quando somos o centro de nosso próprio universo. Nem sozinhos.
Lembro me de parar por alguns instantes e comentar com ele sobre a imensidão do universo sobre nós. Ele, curiosamente, parecia acender os olhos como se fossem estrelas. Eu explicava sobre qualquer coisa que para mim fazia sentido, mas que não tinha compromisso – ou base – algum com a ciência; com a exatidão do saber.
- Veja como estamos distantes. Como não existe nada perto fora daqui.
- Verdade. A gente tá no meio do universo e ele não tem fim, né?
- É, ele não tem fim.
- E eu achando que a gente que tava longe de tudo morando aqui. Longe é lá fora, no espaço.
- Sim. Aqui não tem muita coisa pra fazer e pra sair daqui é difícil, mas pensa como deve ser lá no vácuo. Sempre silêncio, sempre frio.
- Mas é bonito de olhar daqui. A gente não é o centro do universo, né?
- Não, nem sei se tem centro só sei que nós é que não somos. Tem galáxias e acho que todo mundo que tá dentro delas se acha o centro das coisas, mas não é. Não se um dia conseguir sair do lugar onde está e ver que existem mais lugares.
- Louco isso. Você acredita em vida fora daqui?
- Acho que sim. Porque se a gente pensar que lá fora tudo pode estar “morto” é porque em algum momento teve vida. E não só a nossa. Mas sei lá, não me interessa muito pensar nisso.
- Eu acho que não tem como sermos os únicos, é tudo muito grande e a gente é muito pequeno.
- Sim, pode ser que tenha. Mas o que me interessa mesmo é pensar no tempo lá fora, no espaço.
- Como assim?
- Não sei explicar direito, mas o tempo lá é diferente do daqui e isso influencia em tudo e todos. Fora daqui, passado, presente e futuro tão em tempos diferentes do nosso passo, presente e futuro aqui, entende?
- Acho que sim...
- Daí eu sinto que estamos mais longe de tudo mesmo... Mais afastados... Sozinhos.
- Bom, mas estamos aqui, não? Então é isso.
Após esta conversa, lembro que continuamos a olhar o céu, buscando uma profundidade que encontrávamos em nossas cabeças, um buraco negro, um vácuo que só poderia ser preenchido com os mistérios do conhecimento. Éramos dois adolescentes tentando entender o universo, nossa posição nele e o que ele escondia de nós – ou o que não estávamos enxergando.
Quando fiquei mais velho, costumava dizer em algumas conversas que para mim e meus amigos, durante a infância, o universo era do tamanho do quarteirão em que morávamos e que a qualquer dobra de esquina desconhecida morava o infinito. Hoje, ao recordar deste momento com meu amigo, penso que a sensação de afastamento, isolamento, de estar à deriva no todo é, em muitos aspectos, fruto de uma necessidade “humana” de se autocentrar para não se sentir solto na imensidão. Para ter onde voltar, ir, ficar, partir. Para ter movimento. Era o movimento que nos atraía – e a companhia um do outro também.
Atraía.
Percebi, com esta conversa, que nas palmas de minha mão cabe uma microdimensão capaz de abrir janelas para o além daqui. Foi assim que eu aprendi algo apenas olhando para o céu numa noite sem nuvens:
Que nós nunca estamos longe quando somos o centro de nosso próprio universo. Nem sozinhos.
quarta-feira, 4 de abril de 2018
Queimando embaixo do peito
Eu tive que deixar o fósforo cair por entre meus dedos e
atingir o chão. Observei o fogo se espalhar pela madeira, varrendo tudo o que
era vivo e cobrindo de cinzas as suas pegadas. Sentei na beira da janela – como
você tanto odiava – e continuei a observar. Eu era o incêndio e a casa, eu era
o incêndio e a casa, ao mesmo tempo, sendo assistidos por mim no lugar que você mais odiava. Foi
o mais próximo de nós que consegui chegar no momento de dizer adeus.
O ranger de cada canto parecia tentar me convencer a tomar
alguma atitude antes que tudo fosse tragado. A cama berrava as frases que você
me disse no dia em que me enganou e tratou meu corpo como corpo, um nada que não se
encaixava ao seu tudo; as escadas pediam para que eu desistisse da paralisia
que me confortava e pisasse nos mesmos degraus que você havia pisado quando me
levou em direção ao quarto; mas eu não me mexia.
Pouco a pouco, o calor começou a me envolver. Lábios secos,
sem lágrimas pra salvar, eu já não sentia muita coisa além do ar a desaparecer.
Acostumado com a fumaça dos cigarros, naquele instante só me restou aproveitar
a chance única de fumar o passado. Aquela casa, o passado. Fumar o que havia
sobrado de você nos móveis, nas paredes, no banheiro.
Da janela, consegui imaginar seu rosto furioso me mandando
descer. Sua raiva vinha do medo de que eu caísse para o lado de fora. Eu achava
graça na sua preocupação e, às vezes, desafiava ela justamente para me sentir
pego pelo seu olhar. Hoje, por mais que o espectro dele esteja diante do meu, a
queda é inevitável. Um pequeno impulso para trás e lá não estava mais eu.
O fogo, a casa, o incêndio, a janela, eu não mais nela,
você, pra sempre confinado nos meus pulmões.
O ar que eu não respiro mais.
O ar que eu não respiro mais.
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018
Páginas Pretas IV
Eu... prefiro cair pelos cantos
do que me render ao ouvido do outro
sempre atento e eu, nunca mudo,
pronto pra me deixar entrar e não sair
da sua mente. Aquela que está bem
que está saudável e que vai me dizer
como arrancar o caroço em minha mente.
O pedaço duro que não serve de semente.
Mesmo com rima simples eu
sei que ele não vai entender.
Chego, entro, sento, olho e fico
parado diante do outro, tentando dizer
mas calado.
Travado, não consigo me mexer,
é estranho, é forçado, mas não faz tremer
nem suar, nem nada.
Tá tudo bem? Tá. Não parece.
E se for falar, vai soltar à mesa o que não
faz sentido algum. No final das contas, quando
fechar o bar, o conselho será: você precisa procurar ajuda.
Sentei por quê? Aceitei por quê? Existem conversas que
só existem porque não são anunciadas.
Elas simplesmente surgem do entendimento a
respeito do que está em jogo e se entregam
à competição de narrativas.
Se eu te contar o que estou sentindo, você vai me dizer
o que eu gostaria de ouvir?
Se sim, então fale logo.
Se não, dá licença.
Lá dentro as frases gritam. Elas berram o
que eu deveria dizer pra gente se entender.
Mas não consigo. Parece que engasgo e
fica tudo preso entre a garganta e a nunca.
Posso bater no peito que não adianta.
Cavuco, acaricio, mas nada, nada sai. E aos poucos
eu o vejo desaparecer de mim. Ele desiste de
tentar me resgatar.
Ele cansa de tentar conversar e
me convencer a me ajudar.
Quer sentimentos leves, quer um toque macio
quer aconchego no sorriso constante da outra
E eu só sei estar vazio.
Ele simplesmente some.
Eu, finalmente,
começo a me sentir
como um peso.
do que me render ao ouvido do outro
sempre atento e eu, nunca mudo,
pronto pra me deixar entrar e não sair
da sua mente. Aquela que está bem
que está saudável e que vai me dizer
como arrancar o caroço em minha mente.
O pedaço duro que não serve de semente.
Mesmo com rima simples eu
sei que ele não vai entender.
Chego, entro, sento, olho e fico
parado diante do outro, tentando dizer
mas calado.
Travado, não consigo me mexer,
é estranho, é forçado, mas não faz tremer
nem suar, nem nada.
Tá tudo bem? Tá. Não parece.
E se for falar, vai soltar à mesa o que não
faz sentido algum. No final das contas, quando
fechar o bar, o conselho será: você precisa procurar ajuda.
Sentei por quê? Aceitei por quê? Existem conversas que
só existem porque não são anunciadas.
Elas simplesmente surgem do entendimento a
respeito do que está em jogo e se entregam
à competição de narrativas.
Se eu te contar o que estou sentindo, você vai me dizer
o que eu gostaria de ouvir?
Se sim, então fale logo.
Se não, dá licença.
Lá dentro as frases gritam. Elas berram o
que eu deveria dizer pra gente se entender.
Mas não consigo. Parece que engasgo e
fica tudo preso entre a garganta e a nunca.
Posso bater no peito que não adianta.
Cavuco, acaricio, mas nada, nada sai. E aos poucos
eu o vejo desaparecer de mim. Ele desiste de
tentar me resgatar.
Ele cansa de tentar conversar e
me convencer a me ajudar.
Quer sentimentos leves, quer um toque macio
quer aconchego no sorriso constante da outra
E eu só sei estar vazio.
Ele simplesmente some.
Eu, finalmente,
começo a me sentir
como um peso.
sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018
Fruta escura
O medo deles, os pálidos, era o de que o filho da terra escura germinasse mesmo com todo o sal que jogaram em seu berço. Mas ele cresceu. Ele brotou pra fora todo o ódio e, sem pensar duas vezes, aproveitou a primeira chance que teve de cortar seu mal pela raiz. Como erva, começou pelas frestas, pelos cantos. “É dos lugares que ninguém olha que eu vou me espalhar feito daninha no jardim dos salgados”, dizia ele, agora caroço.
Das mãos antigas, ele, o próximo de sua árvore genealógica, foi jogado pro ar para poder respirar entre os cachos dos ventos. Semeou-se nas entranhas da mãe e com a inchada do pai foi plantado para fora do quintal. O mesmo garoto, o mesmo ódio correndo pelas vinhas, os mesmos frutos férteis, quentes e vivos que não apodreceram ainda que arrancados do galho a chicotadas. O ódio que nutriu tanto quanto amor as árvores já crescidas deu forças para carregar as folhas secas do povo da terra. Dos que se foram, dos que não aguentaram e se foram, caindo amarelados pelo tempo. Adubo, cada um deles e delas virou adubo e abraço úmido que curou, fortaleceu e fez florescer quem hoje amedronta os inférteis com suas raízes robustas. “Floresçamos, eu, vocês, nós, sempre, sempre à flor da pele escura”, dizia ele, agora broto.
Cada marca na casca de madeira anoitecida talhou uma lembrança amarga, mas delas, e somente quando sentavam ao seu redor para ouvir suas memórias, escorria a seiva doce capaz de untar os lábios secos por uma simples palavra de consolo. “Sente debaixo da minha grandeza e aproveite a sombra que eu faço, aproveita que comigo, todo mundo escurece e se reconhece. Todo mundo cresce quando escurece”, dizia ele, agora ramo – o rumo.
Durante as conversas sob a penumbra ainda havia muito ódio nas frases ditas e mais ainda nas silenciadas. O olhar dele percorria os outros olhos, buscando nos pares seus semelhantes – aquelas outras metades agora juntas, quietas, e ainda muito lascadas por cada caule à boca que as tentaram emudecer. Naquela noite cujo fogo não passava de um mero convidado a ouvir o que o garoto – já homem – tinha a dizer, a floresta se fez. Toda vastidão do breu retomou para si cada lote, cada pedaço, cada chão tirado à força, arrancado dos pés. Disseram os salgados que tentaram devorar as selvas e savanas: “vocês colhem o que plantam!”.
“Então, vocês colherão o ódio. Nós, os frutos”, dizia ele, agora mata.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018
Raio de areia
Nestes dias de noite por dentro, eu viajo sozinho pelas
vielas que desenhei com a ponta das unhas. O mundo petrificou meus pelos e cobriu de cinza a pele toda. Deixei por onde passei rastro e marca das palavras que me faltaram à boca, mas nunca à mente. Nublado, senti o cheiro de chuva que se aproximara subitamente e aceitei, a cada trovoada sob o peito, a chegada da tempestade. Cortava o céu o raio em busca das areias que ainda me aqueciam por dentro.
O ritual é o mesmo: apago as velas, abro a garrafa, afogo a garganta, seco os lábios e chamo por quem não vai ouvir minha voz rouca de tanto cantar nossas músicas. Num cômodo pequeno, com espaço suficiente para sufocar meu desejo, fico enjaulado, temperando as vontades com álcool. O corpo é o primeiro a desistir e eu adoro. A sensação de queda sem se estilhaçar é algo raro, tem que saber desistir e se abandonar.
Eu, quando sinto que há chão debaixo dos pés, faço questão de me enganar. Finjo que estou bom, recuperado, sóbrio, firme, levanto e sinto o mundo rodar. Não sou de jogar nada fora, nem comida, nem bebida nem a mim, e acho que nem a você, mas quando as solas se cansam do concreto, do certo, do correto, jogam-se nas areias escuras do Kemet – sempre quente - que confortam e sepulcram aqueles que já morreram demais pra viver. Os pés, quase sempre rachados, afundam.
Volto toda manhã. Eu volto como aquela luz insuportável que corta as pálpebras e faz cada músculo do corpo recuperar suas funções e posições, tipo motor aquecendo pra sair, sem hora pra voltar, mas sempre com hora marcada pra partir. Aquele amanhecer que azeda por mostrar que ainda estamos azedos e o sono de ontem não foi o bastante. Eu sou assim, o despertar sem música, sem sopro, sem voz, só corpo, calor, copo seco, peso, carne, língua, osso, saliva, sangue, suor, dor. Te(n)são.
Há uma roleta de pessoas que se exprimem pra entrar no meu barril e ser a próxima bala a furar minha cabeça pra atingir o coração. Nunca saberão, entretanto, quando vão ser a bala da vez - ou o beijo da vez.
O que sabem é que entre areia e tempestade, vão sempre me encontrar, parado, afundando os pés. Relampejando as ideias.
Trovoando o coração.
O ritual é o mesmo: apago as velas, abro a garrafa, afogo a garganta, seco os lábios e chamo por quem não vai ouvir minha voz rouca de tanto cantar nossas músicas. Num cômodo pequeno, com espaço suficiente para sufocar meu desejo, fico enjaulado, temperando as vontades com álcool. O corpo é o primeiro a desistir e eu adoro. A sensação de queda sem se estilhaçar é algo raro, tem que saber desistir e se abandonar.
Eu, quando sinto que há chão debaixo dos pés, faço questão de me enganar. Finjo que estou bom, recuperado, sóbrio, firme, levanto e sinto o mundo rodar. Não sou de jogar nada fora, nem comida, nem bebida nem a mim, e acho que nem a você, mas quando as solas se cansam do concreto, do certo, do correto, jogam-se nas areias escuras do Kemet – sempre quente - que confortam e sepulcram aqueles que já morreram demais pra viver. Os pés, quase sempre rachados, afundam.
Volto toda manhã. Eu volto como aquela luz insuportável que corta as pálpebras e faz cada músculo do corpo recuperar suas funções e posições, tipo motor aquecendo pra sair, sem hora pra voltar, mas sempre com hora marcada pra partir. Aquele amanhecer que azeda por mostrar que ainda estamos azedos e o sono de ontem não foi o bastante. Eu sou assim, o despertar sem música, sem sopro, sem voz, só corpo, calor, copo seco, peso, carne, língua, osso, saliva, sangue, suor, dor. Te(n)são.
Há uma roleta de pessoas que se exprimem pra entrar no meu barril e ser a próxima bala a furar minha cabeça pra atingir o coração. Nunca saberão, entretanto, quando vão ser a bala da vez - ou o beijo da vez.
O que sabem é que entre areia e tempestade, vão sempre me encontrar, parado, afundando os pés. Relampejando as ideias.
Trovoando o coração.
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