O tempo fechou. Ele estava no quintal, brincando com terra e plantas, quando percebeu a mudança no ar. Aquele mormaço que preenchia todo o espaço começou a ser cortado por sopros frios e apressados. O pequeno menino, por volta de seus 5 anos, levantou os olhos até o céu e viu que as nuvens estavam inquietas. Pouco a pouco, o manto cinzento cobriu as luzes de sol e a tempestade se fez presente. Ao invés de correr para dentro de casa, o menino correu foi até a rua e lá esperou pelos primeiros pingos que mais pareciam pedradas.
Trovões não o assustava. Gostava daquele retumbar que estremecia a carne e os ossos. De braços abertos, ele recebia os ventos cada vez mais furiosos. Por entre seus braços e pernas, sentia como se estivesse flutuando. Quando já não cabia mais água no alto e chão debaixo dos pés, caiu o mundo e o voou o menino.
As árvores dançavam com ele, conforme a tempestade orquestrava. Como se o corpo se transformasse num tornado, ele rodopiava, pulava na altura dos joelhos, mexia todos os membros de acordo com o ritmo do toró. Ventava mais do que os próprios ventos, aquele pivete, sozinho. A tempestade, surpresa com tamanha calmaria em meio às suas trovoadas, banhava com suas lágrimas de raiva aquele pequeno ser e, com seus raios, dava a ele o brilho prateado que só sua pele escura poderia refletir.
Foi assim que ele recebeu a tempestade: leve, pequeno, com um sorriso gigante, de espírito aberto. Procurou-se em meio à ela, a tempestade, e, enfim, encontrou-se.
...
O tempo acabou. A rotina parecia nunca se saciar. Consumia todas as horas possíveis – e impossíveis – sem que fôssemos capazes, muitas vezes, de encontrar algum momento sem nenhuma tarefa a ser realizada. As reclamações quanto à falta de espaço dentro do tempo não são novas, pelo contrário: são tão constantes que acabam por consumir mais tempo. Irônico, inclusive. É o trabalho que pega a maior parte do dia pra si, mas é a ida e volta até ele também. Durante o expediente, reuniões, problemas, soluções, reuniões, comunicados, demandas, reuniões, acúmulo de trabalho, corrida contra o relógio, horas-extras, fim do expediente, reunião urgente.
Ao sair daquele local que tenta parecer com sua casa, mas nada tem de lar, ele olhou pra baixo, em direção ao celular. Por mais alguns segundos, forçou-se a responder compromissos de modo curto e objetivo, temendo perder mais tempo. E por que perder? Porque sente como se estivesse no gargalo da ampulheta, nadando contra a corrente de areia que escorre constantemente. Então, percebeu uma mudança de pressão no ar. “É chuva, bem agora que vou voltar pra casa...”. O céu já estava vestindo seu traje mais escuro. Os cabelos grisalhos dela sacodiam imensos e densos. Mirou o par de olhos cansados em direção à velha amiga e conseguiu achar o tempo. Ele estava fechado, mas longe de acabar. Sabia que não seria capaz de se banhar ali, com tantos compromissos gradados em sua pele – escura, mas sem brilho. Decidiu que iria fazer seu percurso de volta caminhando. Andou, andou, andou bastante e, como se ela estivesse contente com a companhia, acompanhou o rapaz até seu destino. Quando ele pisou dentro da estação de trem, a chuva caiu. Durante todo o caminho, ele sentiu o sopro sobre o rosto e até achou graça nas rajadas de vento que ela soltava para assustar as demais pessoas – apressadas e temendo a chuvarada repentina. Lembrou-se de como dançava e mais: lembrou-se com quem dançava. Encontraram-se.
...
O tempo mudou. Finalmente, um importante ciclo havia se concluído. Foram anos de estudos, pesquisas, aprendizados e relações pessoais. A graduação exigiu muito dele, mas como se portasse um cinismo crônico, parecia que nada lhe atingia a ponto de causar insegurança. Fez o que tinha que ser feito e terminou aquele compromisso. Não só aquele, inclusive. Terminou também o amor que havia cultivado. Esgotava-se ali algo que havia lhe preenchido. A terra voltava a secar e a ele só restavam as lembranças pra lançar ao ar. O cigarro o acompanhava. Cobrava muito de sua saúde, mas era a fonte de distração que o ajudava a descansar a mente. Pela janela do seu quarto, olhou o horizonte e viu, distante, porém crescendo com rapidez, a nuvem escura e gigantesca. Não se lembra da última vez que reparou na tempestade. Enquanto se formava, ela anunciava sua presença com os raios impacientes e ele, como de costume, apenas aceitou sua vinda. Era uma velha visita que chegava em boa hora. Sentado, com as pernas para fora e a fumaça para dentro, arrepiou quando a pele – escura e marcada – foi acariciada pelas pontas geladas dos dedos dela. Era aquele retorno repleto de saudade que faz chegar com frieza, cautela, mas com vontade. Pela primeira vez, ele decidiu conversar com ela. Um trago...
Chova, chova em mim, mais uma vez, minha amiga, minha mãe, minha parceira. Você que sempre me acompanhou... Que sempre soprou minhas feridas sem deixar de punir meus pensamentos tortuosos com seus trovões...Você que me ensinou a ser bravo e, mesmo assim, amável. Sei que estou em dívida contigo. Ando sem tempo para prestar atenção em ti quando chega. Eu já não danço mais na rua, você percebeu, né? Pois é, tempos difíceis. Eu falo muito de tempo, reparou? Ele foi embora, sabia? Acabou. Senti um peso no peito, uma vontade de nada, apenas de desaparecer. Mas desaparecer de que jeito? Não tem como, não agora. Aí eu tento me esconder em meio à essa fumaça aqui, entende? Eu sei que você odeia ela, mas sei que me entende... Quando eu fecho os olhos, ainda te sinto me olhando, vendo eu dançar. Quando você rasga o céu com suas reclamações eu também sinto a vibração debaixo do peito. É nos detalhes que eu te encontro. Quando minha pele brilha, também. Desculpe pela distância.
É só uma questão de tempo.
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