sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Fruta escura


O medo deles, os pálidos, era o de que o filho da terra escura germinasse mesmo com todo o sal que jogaram em seu berço. Mas ele cresceu. Ele brotou pra fora todo o ódio e, sem pensar duas vezes, aproveitou a primeira chance que teve de cortar seu mal pela raiz. Como erva, começou pelas frestas, pelos cantos. “É dos lugares que ninguém olha que eu vou me espalhar feito daninha no jardim dos salgados”, dizia ele, agora caroço. 


Das mãos antigas, ele, o próximo de sua árvore genealógica, foi jogado pro ar para poder respirar entre os cachos dos ventos. Semeou-se nas entranhas da mãe e com a inchada do pai foi plantado para fora do quintal. O mesmo garoto, o mesmo ódio correndo pelas vinhas, os mesmos frutos férteis, quentes e vivos que não apodreceram ainda que arrancados do galho a chicotadas. O ódio que nutriu tanto quanto amor as árvores já crescidas deu forças para carregar as folhas secas do povo da terra. Dos que se foram, dos que não aguentaram e se foram, caindo amarelados pelo tempo. Adubo, cada um deles e delas virou adubo e abraço úmido que curou, fortaleceu e fez florescer quem hoje amedronta os inférteis com suas raízes robustas. “Floresçamos, eu, vocês, nós, sempre, sempre à flor da pele escura”, dizia ele, agora broto. 

Cada marca na casca de madeira anoitecida talhou uma lembrança amarga, mas delas, e somente quando sentavam ao seu redor para ouvir suas memórias, escorria a seiva doce capaz de untar os lábios secos por uma simples palavra de consolo. “Sente debaixo da minha grandeza e aproveite a sombra que eu faço, aproveita que comigo, todo mundo escurece e se reconhece. Todo mundo cresce quando escurece”, dizia ele, agora ramo – o rumo.  

Durante as conversas sob a penumbra ainda havia muito ódio nas frases ditas e mais ainda nas silenciadas.  O olhar dele percorria os outros olhos, buscando nos pares seus semelhantes – aquelas outras metades agora juntas, quietas, e ainda muito lascadas por cada caule à boca que as tentaram emudecer. Naquela noite cujo fogo não passava de um mero convidado a ouvir o que o garoto – já homem – tinha a dizer, a floresta se fez. Toda vastidão do breu retomou para si cada lote, cada pedaço, cada chão tirado à força, arrancado dos pés. Disseram os salgados que tentaram devorar as selvas e savanas: “vocês colhem o que plantam!”. 

“Então, vocês colherão o ódio. Nós, os frutos”, dizia ele, agora mata.

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