domingo, 19 de maio de 2013

Foto de família

Ela corre até mim e diz "Vai dar uma volta", mas no fundo eu sei que tá me dizendo pra não ficar dentro de casa. Ele chega bufando. Olhos  vermelhos, palavras tortas - falando o dialeto da raiva - e não me vê como filho. Sou inimigo, erro, problema, despesa, dispensável. Passa por mim como quem diz "Você é o próximo". Não fui porque fui. Saí.

Primeiro passo na rua. O cobre das luzes de mercúrio guia meu olhar marejado. Tudo treme e fica distorcido conforme eu pisco e finjo não sentir nada. Cara amarrada não existe pra quem nunca teve o sorriso solto. O caminho é esse: sempre reto, cabeça erguida, mas olhar baixo. Mão no bolso pra esconder o que não tem, melhor arma nessas horas é a dúvida. E os ratos geralmente não arriscam. Se pá nem eu, por isso a mão no bolso - fazendo figas.

O bairro já está pequeno demais para os meus problemas. Se a escola é uma bosta, foda-se, vou ter que voltar. Não tenho escolha - só obrigações mesmo. Nem adianta gritar aos quatro ventos que o esquema ali dentro é igual ao de presídio. Vão dizer que é exagero, que é desculpa pra não estudar e "virar alguém na vida". Ok, desculpe-se, o que eu quero mesmo é que a vida se curve diante de mim e peça perdão por todas as merdas que me trouxe. O moleque calado que teve os ouvidos preenchidos não pela própria voz a cantarolar, mas pela eterna desavença dos pais. Fui criado à base de arroz, feijão, salada com muito vinagre - pra curar ferida de boca - e um copo bem cheio de fúria. Quatro cadeiras na mesa, mas só duas ocupadas: a minha e a do meu irmão.

Vou dormir triste, com vontade de chorar, só que não vale a pena dar o braço a torcer - muito menos os olhos. Ponho o cobertor sobre a cabeça e tapo os ouvidos. Mas quem consegue dormir assim? Nada. Tá louco? Calor absurdo que começa a cozinhar o corpo e se tiver sede não vai ter mãe pra buscar um copo d'água. Levanto, apanho. Tô suave disso, finjo que sei rezar e começo a conversar comigo mesmo. Sou meu Deus, o único que realmente pode me julgar. Assim eu sigo, acordado de olhos fechados. De bico calado e garganta seca.

Visito um amigo daqui outro de lá, jogo conversa fora na esperança de que eles me coloquem pra dentro. Na casa dos outros eu vejo o que nunca vi na minha. Gente educada, marido com aliança de ouro dando beijo na testa da mulher. Mesa cheia, piadinha, tapa no ombro do garotão que fez aquela lição e tirou um 10. Daora, sabe? É, tudo o que eu queria. Só que deu minha hora e a vida volta a ser abóbora. Bora lá dar uma de rato e arrastar ela pra casa.

Abro o portão bem devagar com medo de invocar o latido dos cães. Tudo certo, eles estão dormindo em cama separadas, acorrentados pela ignorância. Meu irmão tá sempre desmaiado. Graças a dEUs - que nino ele contando mentiras. Antes de sair, deixei um dos meus textos pra que ele lesse e pegasse no sono. Depositei na história uma dose cavalar de sedativo. Fiz uma oração verdadeira pra Morfeu e ele me atendeu:

"
Se na hora de deitar
Seu ouvido doer
Pensa que é a melhor opção
ter a orelha sangrando
e não o coração

Se na hora de ninar
Seu boa noite não sair
Saiba que é melhor do que sufocar
uma frase do que deixar de sorrir
e logo em seguida sonhar

Se na hora de adormecer
Seu coração gemer
Saiba que é o verdadeiro sinal
de que não há nada a temer
Estou aí, com você, até o final

"

Tiro o tênis, a camiseta, a calça, a pele, o cansaço e a angústia. Tomo um banho quente e devolvo ao sangue o pouco de sua temperatura natural. Como é bom chegar em casa e poder entrar debaixo de uma chuva que não lhe enxague a felicidade. Abro a panela, faço meu prato, sento, arrumo o copo e, dessa vez, encho ele não de fúria, mas de saudade.

Saudade do que nunca tive. Um pai e uma mãe unidos de verdade. Uma mesa alegre e viva. Espaço pra falar, pra rir, pra chorar e me confessar. Saudades do gosto que deve ter aquele beijo antes de deitar. Uma saudade que não me pertence, só que me sinto no direito de roubar. Roubei da família dos outros. Trouxe da casa deles uma foto que estava enfeitando o móvel da sala. Não me sinto mal por isso. Pego a velha caixa de fotos, corto - com cuidado e precisão, o rosto dos meus velhos ainda jovens e do meu irmão ainda embrião no "colo" fechado e redondo da barriga materna. Substituo a cara de cada um no retrato roubado e faço a nossa foto. A verdadeira foto de família que agora me pertence. E eu prefiro foto mesmo. Ela congela o momento e cala a boca de todos. Só assim eles deixariam de brigar e pra sempre aqueceriam meu coração. Só assim eu conseguiria dormir esta noite.

Podem até dizer que acabei me tornando um menino seco, duro feito pedra, frio e descontrolado. No fundo, não me importo. Tô mais preocupado em saber como vou roubar uma cômoda pra colocar essa foto de família.

Os cães começaram a uivar. Hora de dormir. Boa noite.

Um comentário:

Aline disse...

Quase me esqueci o quão bom és com as palavras e como seus textos fazem tanto sentido para mim.

Beijinhos