A carta chegou seca. Selada pela certeza de que não esperava
resposta alguma. Não havia pergunta.
Viriam me buscar na quarta-feira. As rubricas dos meus pais
marcaram mais do que qualquer uma das tatuagens que tenho. Tudo certo, como
eles mesmos disseram “É para o seu bem”. Minha angústia havia impregnado a casa
inteira com um forte cheiro de desgosto. As paredes ganharam um tom esverdeado
e o chão vivia cheio de farelos. Restos de tudo, inclusive de mim. Fiz um
esforço hercúleo para melhorar: saí de casa, conheci outras pessoas, li, reli,
assisti, desliguei a TV, liguei o rádio, aumentei a comida, mas não fui capaz
de ressuscitar o apetite. A fome da vida havia partido, definitivamente.
O “bom dia” era ensaiado enquanto eu dormia. Não achava
justo submeter meus velhos à miserável condição em que encontrava. Porém, toda vez
que buscava um lampejo de felicidade acabava por sucumbir à vontade voraz de
não ter nunca entrado em contato com o amor. Eles me sepultavam lentamente,
antecipando a cada minuto o choro que deveria ser guardado para as últimas
horas do funeral. A vida, meus caros, é só o adiamento da morte. E não há nada
de triste nisso. Triste é não aceitar o andamento das coisas. Triste sou eu por
não aceitar o andamento dos meus próprios sentimentos. Entenderam?
Malas desfeitas.
Estava diante da grande construção, descascada pelo abandono. Mantida pela
piedade. A velha casa não me recebeu de braços abertos. Seus habitantes, vultos
que mais pareciam traços mal desenhados, ignoraram minha chegada. Estava em
paz. Minhas tarefas eram simples: tentar manter o mínimo de vínculo com a vida
e suas imposições. Pediam para que eu nunca ficasse distante demais das outras
pessoas; que comesse regularmente; que andasse pelo jardim durante os dias de
sol; que escrevesse menos e falasse mais. Não precisei tomar uma pílula,
enlouqueci naturalmente – como diziam os relatórios médicos.
Depois de curado, voltei para casa. Minha história não tem
nada de especial. Nenhum final surpreendente ou reviravolta fantástica. Ela só
aceitou o andamento das coisas. Eu ainda não.
Quando saí para comprar cigarros e uma garrafa de vinho, vi
você do outro lado da rua. Estava rindo com seus amigos e portando uma aliança
bem polida. Minha reação, depois de tantos meses sendo extremamente previsível
e manipulável, foi – no mínimo – estranha. Sorri. E não neguei o aceno de mão
quando você se prestou a me cumprimentar. Depois do sorriso, a risada e, em
seguida, as gargalhadas. Estava fora de controle, finalmente fora de controle.
Seus amigos trancaram os lábios e perfuraram minha carne com olhares de falcão.
Rasgavam aquela normalidade que havia se instalado sobre minha pele. Sabiam,
melhor do que eu, que tratamento algum ajudaria alguém que nunca pediu por
socorro.
Sem fôlego, ajoelhei na calçada por alguns instantes e
recompus o ritmo cardíaco. Peguei as moedas que haviam se espalhado e deixei de
enxergar seu rosto por breves instantes. Comprei o que tinha que comprar e
percebi que sua mão antecipou a minha no momento em que tentei, ainda que sem
forças, levantar as sacolas com as três garrafas de bebida. É, triplicou. Uma
para mim, outra para você e a terceira para nossa história.
- Vai beber tudo isso sozinho, sem comer nada?
- Preciso ir. Bom te rever.
- Posso cozinhar algo se você quiser... Macarrão cai bem com
vinho.
- Não estou recebendo visitas.
- Mas você é o convidado.
- Que seja.
Óbvio que não me sentia nem um pouco confortável. Aquela
aliança tinha um nome, um corpo, cabelos provavelmente negros, perfume de fruta
e roupas floridas. Ela me intimidava e, por outro lado, despertava em mim uma
fúria descomunal.
A primeira garrafa
Falei sobre os últimos meses. Ele também. Caí na velha
armadilha de transformar minhas experiências em advertências. Tudo errado. Na
verdade, estava tudo errado desde o mercado. Enfim. A comida estava realmente
boa.
Ele se mostrou atencioso, contente com minha presença e
extremamente curioso. Não tocou no vinho.
A segunda garrafa
Já com o copo entre os dedos, ele passou a me questionar,
desafiando tudo o que eu tinha como convicção, tentando reverter aquela
condição fúnebre em que me encontrava. Era sua forma de compensar a ânsia por “salvar
a vida de alguém”. Eu, por outro lado, achava engraçada essa postura tão
infantil. Deixei fluir, afinal, já estava afogado no álcool...
A terceira garrafa
O desejo queimou como combustível a bebida. O motor
[coração] demonstrou sua potência e rompeu – sem arrependimento – os freios.
Estávamos entregues à embriaguez de um sentimento sufocado pelas formalidades.
Aquele sentimento que não correu como deveria ter corrido; que não percorreu as
estradas que deveria ter percorrido; e que despencou no abismo da solidão por
rejeitar, sem reduzir a velocidade das vontades, o principal destino de ambos: a
vida.
Ao sair, deixei uma carta sobre sua mesa. Nenhuma pergunta.
Só resposta: Continuo sem receber visitas.
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