quinta-feira, 23 de maio de 2013

Triste é aceitar



A carta chegou seca. Selada pela certeza de que não esperava resposta alguma. Não havia pergunta. 

Viriam me buscar na quarta-feira. As rubricas dos meus pais marcaram mais do que qualquer uma das tatuagens que tenho. Tudo certo, como eles mesmos disseram “É para o seu bem”. Minha angústia havia impregnado a casa inteira com um forte cheiro de desgosto. As paredes ganharam um tom esverdeado e o chão vivia cheio de farelos. Restos de tudo, inclusive de mim. Fiz um esforço hercúleo para melhorar: saí de casa, conheci outras pessoas, li, reli, assisti, desliguei a TV, liguei o rádio, aumentei a comida, mas não fui capaz de ressuscitar o apetite. A fome da vida havia partido, definitivamente. 

O “bom dia” era ensaiado enquanto eu dormia. Não achava justo submeter meus velhos à miserável condição em que encontrava. Porém, toda vez que buscava um lampejo de felicidade acabava por sucumbir à vontade voraz de não ter nunca entrado em contato com o amor. Eles me sepultavam lentamente, antecipando a cada minuto o choro que deveria ser guardado para as últimas horas do funeral. A vida, meus caros, é só o adiamento da morte. E não há nada de triste nisso. Triste é não aceitar o andamento das coisas. Triste sou eu por não aceitar o andamento dos meus próprios sentimentos. Entenderam? 

 Malas desfeitas. Estava diante da grande construção, descascada pelo abandono. Mantida pela piedade. A velha casa não me recebeu de braços abertos. Seus habitantes, vultos que mais pareciam traços mal desenhados, ignoraram minha chegada. Estava em paz. Minhas tarefas eram simples: tentar manter o mínimo de vínculo com a vida e suas imposições. Pediam para que eu nunca ficasse distante demais das outras pessoas; que comesse regularmente; que andasse pelo jardim durante os dias de sol; que escrevesse menos e falasse mais. Não precisei tomar uma pílula, enlouqueci naturalmente – como diziam os relatórios médicos. 

Depois de curado, voltei para casa. Minha história não tem nada de especial. Nenhum final surpreendente ou reviravolta fantástica. Ela só aceitou o andamento das coisas. Eu ainda não. 

Quando saí para comprar cigarros e uma garrafa de vinho, vi você do outro lado da rua. Estava rindo com seus amigos e portando uma aliança bem polida. Minha reação, depois de tantos meses sendo extremamente previsível e manipulável, foi – no mínimo – estranha. Sorri. E não neguei o aceno de mão quando você se prestou a me cumprimentar. Depois do sorriso, a risada e, em seguida, as gargalhadas. Estava fora de controle, finalmente fora de controle. Seus amigos trancaram os lábios e perfuraram minha carne com olhares de falcão. Rasgavam aquela normalidade que havia se instalado sobre minha pele. Sabiam, melhor do que eu, que tratamento algum ajudaria alguém que nunca pediu por socorro. 

Sem fôlego, ajoelhei na calçada por alguns instantes e recompus o ritmo cardíaco. Peguei as moedas que haviam se espalhado e deixei de enxergar seu rosto por breves instantes. Comprei o que tinha que comprar e percebi que sua mão antecipou a minha no momento em que tentei, ainda que sem forças, levantar as sacolas com as três garrafas de bebida. É, triplicou. Uma para mim, outra para você e a terceira para nossa história.

- Vai beber tudo isso sozinho, sem comer nada?
- Preciso ir. Bom te rever.
- Posso cozinhar algo se você quiser... Macarrão cai bem com vinho.
- Não estou recebendo visitas.
- Mas você é o convidado.
- Que seja. 

Óbvio que não me sentia nem um pouco confortável. Aquela aliança tinha um nome, um corpo, cabelos provavelmente negros, perfume de fruta e roupas floridas. Ela me intimidava e, por outro lado, despertava em mim uma fúria descomunal. 

A primeira garrafa

Falei sobre os últimos meses. Ele também. Caí na velha armadilha de transformar minhas experiências em advertências. Tudo errado. Na verdade, estava tudo errado desde o mercado. Enfim. A comida estava realmente boa. 

Ele se mostrou atencioso, contente com minha presença e extremamente curioso. Não tocou no vinho.

A segunda garrafa

Já com o copo entre os dedos, ele passou a me questionar, desafiando tudo o que eu tinha como convicção, tentando reverter aquela condição fúnebre em que me encontrava. Era sua forma de compensar a ânsia por “salvar a vida de alguém”. Eu, por outro lado, achava engraçada essa postura tão infantil. Deixei fluir, afinal, já estava afogado no álcool...
 
A terceira garrafa

O desejo queimou como combustível a bebida. O motor [coração] demonstrou sua potência e rompeu – sem arrependimento – os freios. Estávamos entregues à embriaguez de um sentimento sufocado pelas formalidades. Aquele sentimento que não correu como deveria ter corrido; que não percorreu as estradas que deveria ter percorrido; e que despencou no abismo da solidão por rejeitar, sem reduzir a velocidade das vontades, o principal destino de ambos: a vida. 

Ao sair, deixei uma carta sobre sua mesa. Nenhuma pergunta. Só resposta: Continuo sem receber visitas.

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