quarta-feira, 22 de maio de 2013

Todo dia pode ser o pior dia da sua vida



Débora

Nunca me importei com as sardas, o cabelo vermelho e os olhos azuis demais. Muitas pessoas dizem que eu não tenho motivos para reclamar deles, afinal, são lindos e de uma cor rara. Mal sabem que também sofro de uma doença que, aos poucos, vai consumindo minha visão. O azul é prêmio de consolo. 

Gosto muito de ler. Sempre esqueço da realidade quando começo a folhear as páginas com histórias de outros. Mas também passo horas diante da televisão, sonhando com a vida de novela que muitos, inclusive eu, gostariam ter. Só que eu cresci. E o vazio também. 

Não me achava bonita o bastante. Pintava o cabelo de preto. Só que todo o esforço – e dinheiro gasto – foi em vão. As raízes de cobre pareciam resistir a qualquer tipo de química. A maquiagem não corrigia o salpicado de canela no meu rosto. Era insuportável... Tentei mudar, e não consegui. Só os olhos se mantiveram azuis para os outros e negros para mim. A tintura renegada pelos cachos escorreu para as pálpebras. Fiquei cega antes mesmo de construir a imagem ideal de mim mesma. Na memória, eternamente ruiva, sardenta e sozinha.

Marcelo

O que me mata é essa falta de tempo. E quando tenho tempo, falta-me espaço para fazer tudo o que tenho acumulado na mente. Trabalho durante os cinco dias da semana e só fico com migalhas no final do mês. Falta de organização? Falta de administração? Falta de foco? Não. Falta de tempo.

Meus sonhos são analgésicos. Tiram a dor causada pela frustração, mas não curam, de fato, o espeto que impede minha coluna de se alinhar e minha vida de seguir firme, sustentada pelas próprias pernas. Paralítico, é assim que me sinto todas as vezes que arranco uma folha do calendário e me deparo com outra, idêntica. Nem fizeram questão de mudar o desenho da página para fingir que algo realmente mudou. Algo além do mês. Além do tempo. 

Eu sempre quis ser pai e agora sou. Tenho a Débora, que mais parece um morango: ruiva com pequenas sementinhas escuras sobre as bochechas. Um amor. Meu amor. Ela está com sete anos e hoje vou busca-la pela primeira vez na escola. Não suporto sua mãe – que um dia também foi meu amor. Possessiva, excessiva, boca aberta e inconstante. Amei-a e a odiei justamente por esses aspectos. Bem, mas o foco não está nela, não mais. Débora, estou saindo de casa, chego em alguns instantes. 

(1 hora depois)

Já estava pendurando os goles. Não tinha nada na carteira além da foto de Débora. Tentei, juro que tentei, mas a tentação se mostrou mais disposta do que meus esforços. Perdoe-me, minha filha, mas não cheguei a tempo de te buscar. Tempo... Mais uma vez tempo. A falta dele, pra ser sincero. 

O que me falta é tempo para encontrar os cacos de mim que ficaram pelo caminho – e pelas garrafas vazias. 


Rita

“Possessiva, excessiva, boca aberta e inconstante”. Foi isso que ele me disse na cama e na mesa da cozinha – enquanto assinávamos os papeis do divórcio. Ele estava enganado. Sou dispersa, reservada e introspectiva. O que mostrei a ele era apenas uma projeção da pessoa que seria capaz de manter casa, casamento e emprego sem demonstrar fraqueza alguma. Infelizmente, superestimei seu nível de interpretação. Eu estive enganada.

Débora não me olhava nos olhos. Nem no rosto, nem em nenhum lugar. Não prestava atenção nos meus movimentos. Estava sempre distante, mesmo confinada no berço azul. Sim, Marcelo queria tanto um menino que fez questão de comprar os móveis azuis. Eu não me abalei nem fui contra, afinal, gênero – ao meu ver – não se define por cor. Nem por brinquedos. A pequena detestava bonecas, fogões e escovas de cabelo. Mas adorava ler romances, histórias de princesas e poemas açucaradamente intragáveis. Mas não me via. E se via, via pouco. 

Eu queria sua atenção, perdia o controle da voz e berrava sem parar na falsa esperança de que ela se interessasse por mim. Marcelo não me importava mais. Estava de caso novo com uma antiga amante: a bebida. Eu queria Débora, o único pedaço de mim que ainda valia a pena. Mas quando terminei de pentear seus cabelos, percebi que minhas mãos estavam cheias de fios avermelhados e sua cabeça, diante de mim, sofria com os arranhões riscados pelos dentes do pente. Eu, possessiva, excessiva, boca aberta e inconstante. Débora nunca mais se enganou depois desse episódio.  

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