Os parentes chegam aos poucos. Tímidos, silenciosos, grisalhos
demais para refletirem o brilho do sol. Já o maldito banho de luz dourada
quebra, ironicamente, qualquer chance de fazer daquele velório um espetáculo
nublado e chuvoso. Um belo dia para morrer.
Tento não fumar antes de começar a cerimônia, pois o cheiro
de fumaça se mistura facilmente ao perfume exagerado daquelas flores
exageradas. Flores de verdade com intenções de plástico. Falsas, pra ser mais
claro. Pego os óculos escuros no bolso da calça e fico cego. As lentes não têm
grau algum, resultado: o breu veste meu par de globos gastos pelo tempo de
preto. Luto, pra ser mais metafórico. Pronto, equipado, protegido, vulgo, impenetrável
– seja pelos raios solares ou os muitos olhares. Rima desnecessária.
Começa a falação. Tanto lirismo desperdiçado. A beatificação
daquele corpo miúdo que já não atende mais aos chamados da vida soou como uma
sentença de morte tardia. Condenaram a verdade. Vira sagrada aquela criatura
que lambuzou os beiços com vinho e cicuta; que correu nua atrás de seus
semelhantes; que enfeitiçou ventres e amaldiçoou o amor; que saltara as
próprias veias todas as vezes em que mergulhou no abismo da paixão. Naquele
instante, resgatam da lama as suas ações e, com a ponta da língua, lambem a
superfície deteriorada dos gestos que, há pouco tempo, eram condenados como
pervertidos e doentios. E os tios? Um perfeito coro de lamúrias tão bem
ensaiadas que poderiam ganhar o prêmio de “Melhor interpretação” num desses
festivais repetitivos. Disse eu a mim mesmo: por mais quantos minutos? Respondi
eu a mim mesmo: pro resto da vida.
Chega o momento mais esperado. A hora da provação. O “adeus” com
cara de “até logo”. Destrancam a tampa do caixão. Sinto meu peito encolher. A
cavidade ficou tão evidente que os familiares esgoelaram prantos de desespero.
Caminho alguns passos, respiro profundamente, abro a tampa e, como num lampejo
de arrependimento e sarcasmo, nublo aquele pequeno ser com minha sombra. Para
compor a cena final, mando à merda o dia ensolarado e choro lágrimas de sal
sobre suas feridas ainda frescas. Agora sim, típico clima de funeral. Uma chuva de
raiva, indignação e insatisfação. Entregam-me uma faixa para registrar a mensagem definitiva. Esperei de mim algo apoteótico, sublime,
mas fui breve – como se deve ser nos momentos de partida e desapego.
“Descanse em paz, coração de Vinicius”.
“Descanse em paz, coração de Vinicius”.
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