domingo, 2 de outubro de 2016

Pressão alta

Todas as vezes que o teto ficou mais baixo e minha pele gelou, eu tive certeza que minha maldição seria a pressão baixa. O cair do ritmo, esfriar do sangue, a sensação de ser apenas um detalhes prestes a desaparecer. Comecei a reparar em quais situações eu me sentia assim, baixo, doente e disperso. Eram sempre os momentos em que eu me permitia perder; não mais carregar o fardo de ser vitorioso - ou sobrevivente. Eu me permitia não ser; não fazer; não falar; não caminhar; não olhar; não ouvir; só sentir. Minha pressão caía justamente quando os sentimentos subiam à flor da pele e, num momento de ebulição, evaporavam a vontade de viver. De continuar. De fazer tudo o que não fiz - por fora. Mas vivi por dentro.

A lentidão ao meu redor conduzia a dança que nunca tive. Agora, eu descreverei como é a descida.

Passo a cada passo, eu me firmo. Ando como se nada tivesse acontecido. Finjo não ver o que está estampado diante de mim: um mundo estranho; um ambiente pequeno demais - apertado demais; eu caminho como se nada tivesse acontecido, mas eu sei que aconteceu. Sei porque eu desapareci de mim. Passo a cada passo, eu desço para conferir os ruídos no andar de baixo. Quando chego, vejo rostos cinzas a gritar. Eles ordenam que eu saia. Eu saio, subo um degrau, mas não é o suficiente. Ainda ouço seus berros. Então, este barulho me tira a atenção. Biologicamente falando, este é o momento em que o "zunido" nos ouvidos tem início. Como um cabo de guitarra mal plugado, ele quebra a harmonia. Tira a paz. Aos poucos, eu me deixo hipnotizar e então, dominado, sofro com o resto do corpo. Os gritos, eles me expulsam de dentro. Obrigam-me a ir para fora.

Desespero. Angústia. Medo. Vergonha. E seu eu desmaiar? E se alguém tiver que me socorrer aqui? E se eu tiver que pedir ajuda? Incômodo. Eu não quero incomodar. Não agora. Não aqui. Mas estou tão mal. Tento lutar, eu juro que tento. Respiro fundo e pausadamente - como me ensinaram -, mas não funciona. Enjoo e então vou perdendo as forças. Tudo gela e seca. Deserto frio no meio do dia, no meio da mesa, da risada, da festa, do ensaio da banda, do beijo, da cama. Quantas vezes eu desci para o andar de baixo e fui obrigado a voltar aos berros? Não pertenço a lugar algum e essa caminhada me tira o fôlego. Eu fico sem ar, torcendo para que termine logo este sofrimento. Mas ele não termina. Porque eu sempre continuo. Sou eu que não termino.

Eu venci a queda.

Infelizmente.

Volto, apático, pendendo de um lado para o outro. Reconheço-me e não gosto do que vejo. Esta é a volta. Assim que eu volto. Em luto, depois de tanto ter lutado para não sucumbir aos caprichos da vida. Ela me disse: por que sofrer tanto? Vá. Eu tento ir, mas volto. E, para piorar, volto o mesmo. Nem melhor nem pior: o mesmo. Aquele zero, ponto de "não partida"; o marco fadado ao esquecimento; nulo; persistente desistente. O zero. Eu volto zerado, sim. É assim que me sinto. Começo a me preencher novamente com vazios. Você entende o que é transbordar de tanto se encher de vazios? Isso se chama pressão baixa.

Pressão baixa é se encher de vazios até não aguentar mais. E quando você transborda, você volta. Do zero. Para lugar algum. Não deixa rastro nem saudade. Apenas volta. Esquece as chaves, mas lembra como entrar na casa pelos fundos. Esquece o cheiro do seu quarto, mas lembra como preencher cada cômodo com sua vontade de não voltar. A pressão cai no exato momento em que eu sou forçado a ser material novamente. Em que o universo me dá um lugar na sala, uma almofada para colocar sobre as mãos e esconder as unhas pintadas. A pressão cai quando eu volto a um lugar que me anula. Que me faz sala, mas não me faz estar.

Ainda assim, se agora estou aqui - situado nas letras, deitado nas entrelinhas - é porque de alguma forma eu consegui subir alguns degraus. Poucos, sim, eu sei. Mas subi. Subi para olhar como estão as paredes. Eu sempre quis paredes bem lisas, pintadas, arrumadas daquelas que confortam ao invés de confrontar. Mas nunca tive. Mesmo assim, subo. Olho e vejo a tinta descascando. Vejo farelos, imperfeições, mas vejo memórias também. Aquelas lembranças que nunca chegam ao andar de baixo. Sabe aquelas memórias que nasceram para ficar no topo do tempo? Refletindo o céu e resenhando o universo? Então, são elas que estão marcadas nas paredes antigas. Eu subo e me vejo novamente no lar. Meu lar. Escondido de tudo e todos, apenas se fazendo a cada instante do passado - num eterno retorno. E é isso que o andar de cima me traz. É isso que me faz subir - que faz minha pressão subir. O lar. Este eterno retorno. Onde eu me reencontro cheio de passado, vivido o bastante para saber que a pele aguentou. Endureceu e aguentou.

É no andar de cima que recebo visitas. Neste andar superior, eu consigo servir um café ou alguma outra bebida; sou capaz de puxar conversa; rir sem querer chorar; abraçar quem nunca perdoei. É neste andar de cima que eu me sinto alto o bastante para alcançar o sol e deixar que ele aqueça o rosto tão marcado. A cara tão fechada. Janelas abertas para que os olhos enxerguem o resto. Aquele resto que nunca se alcança do andar de baixo. Quando eu subo, eu me sinto alto. E me sinto alto quando a garganta se rende ao doce sabor do álcool. Sim, é aqui que eu mato a poesia e faço dela verdade. Nua, crua, sem ritmo e com frio. Mas ainda assim, alta, superior, na superfície.

Alto, eu consigo finalmente preencher os vazios. Caio nas graças das piores tragédias e me recuso a descer novamente. Assim eu sigo, rumo à porta. Recebo-me, cansado, mas ainda de pé. Ainda alto. E então, a palidez dá lugar ao rubor. Cá estou nós, eu e eu, agora juntos, aquecidos.

A pressão sobe novamente com uma simples gota. Salgada, sutil e ritmada. É o fim do desgosto; o fim do corpo; o fim do copo; e o fim do sono.

É este o começo do choro.

A chuva do lado de fora que me eleva. E me leva novamente para o lugar mais alto em mim.

O coração.






quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Pedreiros do universo

O lugar onde nasci nunca foi, mas sempre esteve. Insistente, de tijolo em tijolo, alaranjados pra cobrir o cinza-cimento fingindo algum sentimento, ergue-se de restos de outros restos - o que sobrou dos entulhos do vizinho. Areia faz da calçada banco e da fossa beira, aquele mar que não se entra, não se pisa, não se sente, apenas se observa e espera desaparecer da frente de casa. Virar parede nova, um quartinho a mais, de repente, até mesmo outra casa, agora com cara de mar, doce mar. Chega de sal.

Espaço, precisei e pouco tive.

Tudo apertado, tudo colado, meu barulho no seu barulho, minha orelha na sua orelha, a fronteira entre minha mesa de almoço e a sua - tão curta, com quatro cadeiras, três sempre vazias. A proximidade que reforça a solidão daquele que come sozinho todos os dias, acompanhado só pela fome. O outro lado, com o outro ao lado, é mistério e - ao mesmo tempo - companhia. A vida que não é a minha interessa quando me faz esquecer de como é difícil ser em si. Ser no outro só é mais suave porque podemos voltar quando a casa, literalmente, cair. Eu fico ali, mesmo com pouco espaço, satisfeito. Caibo dentro dele melhor do que dentro de mim. Ou do outro.

Tinta de cal, misturada com bisnaga, aquela do azul melancólico, falhado, esfarelado, manchando os quatro cantos da sala, envenenando nossos pulmões, mas deixando tudo pronto pras visitas. Elas, mais importantes do que nós, os moradores, deveriam desfrutar do melhor que o pior poderia oferecer. Era assim, sempre foi assim e até hoje se mantém. Mostrar o lar pro outro é como mostrar a si para o outro. Não dizíamos "bem-vindo", dizíamos "não repare". A primeira impressão é a que diz quem fica. Viram as costas, temem o sofá, lavam os copos já lavados, medo, muito medo, desconforto, mas o prato que sujaram, este eles não lavam. Ficávamos em casa com a sensação de derrota e vergonha. O outro nos achou feio. Da porta pra fora, as risadas, comentários maldosos e a sensação de viver num lugar bem melhor do que aquele buraco que há pouco lhes acolhia. Você é feio, você é feio, é educado, carinhoso, aconchegante, mas é feio. Eu não quero ser em você e não quero que você seja em mim. Você é feio, como uma casa velha e decadente. E o pé da geladeira está enferrujado.

Rua, caçamba, pedregulho, galho de árvore, mato, carro abandonado, chinelos nos fios, buracos nos postes, asfalto esburacado, casa feia, casa bonita, casa feia, casa mais feia, casa feia, casa bonita, sequência da vida, nós nas arquiteturas da própria rua, entrópicos, diversos, competitivos, contemplativos, unidos pela diferença, pela vontade de ser diferente daquilo que era inevitável: a condição de periféricos. Garrafa de plástico sobre o relógio de luz, sacola de plástico, lona de plástico, mundo de plástico; arroz seco do cachorro, rabiola enroscada nas antenas, esqueleto de peixinho "mandado" no telhado de zinco, vida que pulsa, vida que segue, vida que não é seguida porque dói muito andar sem rumo, vida que persegue outra vida pra chamar de sua... Vidas. Neste espaço, na rua, na minha casa feia, no eu dentro de mim e fora de si, nas loucuras da minha mente sem paredes, no espaço vago em que me escondo toda vez que o barulho da avenida não me deixava acordar pra dormir mais uma noite, eu fico. Eu finco meus pés na minha terra, no meu lugar, no meu ponto de referência - e não só de busão - que antes não passava de um quarteirão rodeado de rivais, aquelas vidas iguais, e perigos. Eu fico, tento, logo resisto. E ainda desejo a melhoria. Eu, aquele de casa feia e fechada. Sem risada.

Das mãos do criador, espero o paraíso. Aguardo por ele, pago por ele, mesmo tendo tão pouco. Aguardo sua chegada, suas mãos gigantescas, calejadas e habilidosas. O criador, o messias, o verdadeiro responsável pela concepção do mundo. Sim, aquele que faz da massa matéria-prima, corrida pra durar 7 dias. Do barro, cria para o homem as condições para criar sua família. Limpa o terreno, nivela o chão, ergue, pouco a pouco, a moradia. Traz luz, traz água, traz terra, traz as condições para existir. O pedreiro, aquele que tem o dom da criação, inquestionável, sabedor do conhecimento (sobre o) concreto, que compreende o pó, a poeira, a areia, o tempo envelhecido nas pilastras, na garganta das ampulhetas, o espaço medido à palma; que domina a alquimia dura do material de construção. Mestre de obras. O verdadeiro mestre de obras. Ele, tão necessário, cria mundos para poder manter o seu. Todas as noites, rezo para ele, na expectativa de que um dia me ouça.

Desejo a parede lisa com massa corrida. Eu desejo a caixa d'água limpa, de plástico azul-sorriso e não de cinza-concreto, para cobrir o veneno que enche o copo e ferve a comida que alimenta o corpo. Quero um portão e não uma porta, quero chuva sem goteira, quero umidade sem infiltração. Quantas coisas eu quis, pedi, vi minha mãe pedir, meu pai tentar fazer. Mas que homem é capaz de reproduzir com exatidão a obra do Criador? No máximo, tapa buracos, faz algumas gambiarras e sobrevive aos dias. Eu não abro mão do meu espaço. Estou tão empregando nele quanto ele em mim. Eu saio dele - todo dias às 7h da manhã - mas ele não sai de mim - há 29 anos.

A esquina é volta para casa. A chave no portão dá volta para casa. Aquele cheiro de costume, indetectável, mostra-me o caminho da de volta pra casa. Eterno retorno. Órbita. Meu lugar, o carma, meu espaço, mais carma, meu refúgio, pra cama. Eu e meu lugar. Ficamos os dois, deitados no carma do quarto, olhando para o céu destelhado, construindo outros mundos como pedreiros do universo.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

O horizonte, da sacada

Eu só quero te ver novamente quando estiver despido dessa porcaria de vida. Até lá, sou mais um amigo sem nome que serve de exemplo para os seus amores.

Não me importa se alguma vez falou com amor sobre mim. Nunca foi capaz de ir a fundo e penetrar minha pele. Superficial, a fuga de si mesmo não veio como opção, era a ordem máxima.

O que estou fazendo comigo mesmo? Drogas resolvem? Não. Ou melhor, até conseguem amenizar a pressão, mas por poucas horas. E eu não preciso de horas. O que eu quero são anos e mais anos de paz. Que paz tão cara é essa?

Esse vazio. Essa frustração que precede a conquista. A insatisfação crônica. Não sei mais o que fazer. Sinceramente, perdi a mão de mim mesmo. Sou a receita do que não pode dar certo, mas que ainda assim existe e ganha espaço.

A lista das coisas que não posso fazer é quase tão grande quanto aquela que elenca tudo o que não quero ser. Paralelas, dançam no ar e invadem minha mente na busca por um espaço seguro. Quando conseguem chegar ao âmago da minha essência, percebem que o vazio se comporta como um buraco negro. Suga, absorve e se apropria de tudo o que tem vida. É daí que nasce a eterna fome por algo indefinido.

Onipresença é minha inimiga. Querer falar, querer me fazer presente e sempre ter algo escrito para ser enviado, sim, tudo isso me mata. Mas é uma necessidade que grita tão alto a ponto de me ensurdecer. Quando percebo, já estou encaminhando toneladas de lamúrias.

Essas lamentações são como argila, sem forma, que ajuda a construir um muro em torno da razão. Presa, faz-me abandonar o foco e optar pela escuridão do inconsciente. Neste instante, acendi o cigarro do outro e olhei pela sacada, o mundo era mais complexo do que imaginava.

(...)
Era uma sexta-feira. Voltar para casa seria uma boa opção. Frio, fome e pouco dinheiro. Aceitei o convite. Eu queria mesmo era deixar a minha mente tão vazia quanto o estômago e os bolsos. A entrada do prédio estava cheia de vampiros. Seus olhos vidrados em mim deixavam claro que a vitalidade ainda me pertencia. Talvez, os olhos brilhantes entregavam meu estado “sóbrio”. Alguns andares e chego ao apartamento. Lugar legal com pessoas legais. Mas a geladeira era o que mais me interessava.

Aquela garrafa que parecia abrigar um fantasma me chamou a atenção. Transparente e convidativa foi censurada pela minha sede e seu lacre deixou de existir. Três goles e três copos vazios. O mundo perdeu parte de seu peso e eu ganhei o dom de respirar com calma. A pressão do sangue, a coordenação motora e o olhar ágil deram boa noite e então tive a certeza de que estava no lugar (in)certo.

Gosto de conversar com as pessoas. Porém, naquele estado de “metamorfose” tudo o que me atraia era ouvir cada palavra dita pela boca jovial e inconseqüente. Como se fosse da minha natureza, e de fato é, colhia detalhes e mais detalhes escondidos naqueles dentes brancos. Detalhes que, para os mais entendidos, são batizados de palavras. Os cigarros apareciam e sumiam. Acho que estava fumando a si mesmos. Eu era apenas o espectador daquele momento intimista. Fumar a si mesmo, nada mais intimista.

Toca a campainha e o coração passa a bater na porta do peito. Conto até três e respiro fundo. Pessoa errada, hora errada, respiração certa. Ao virar as costas, voltei os olhos para o horizonte. Noite fria e cheia de neblina, chuvisco e gosto de guarda-chuva na boca. Fome e falta de dinheiro? Não, não esta noite.

Depois de horas fui perceber que alguma coisa tocava no som. Bandas chatas e ritmos inapropriados para o momento. De qualquer forma, eu jamais perceberia tal afronta aos ouvidos no estado em que me encontrava. E posso afirmar, encontrei-me de verdade. Várias vezes. Tentei colocar outras coisas, mas a destreza estava limitada. Desisti e comecei a cantarolar qualquer coisa.

Aquela voz me despertou de longe. Entretanto, não estava atrás dela. O que eu queria veio em seguida. O sorriso que recortava meus olhos e os prendia num outro plano. Aquele rosto que se transformava sem medo e abria os braços para me dar o abraço prometido. Larguei o corpo e um pouco da alma, mas o peso do coração não caiu pela metade. Depois o frio voltou e tudo mais. Distância. Paciência. Desisti e fui fumar qualquer coisa.

Neste instante, bebi do copo do outro e olhei o horizonte pela sacada. Realmente, o mundo é bem mais bonito do que parece. Mas meus olhos ardiam e o estômago berrava. Voltei para dentro do apartamento e recolhi meus excessos. Boa noite.

E agora?

Eu me perguntei. E ainda me pergunto: e agora?

E agora que saí sem as chaves de casa
Para não dar meia volta em minha vida
e abrir as portas do peito?

E agora que caminhei sobre pregos
até o emprego, contanto os passos
pra que as horas passassem logo, em largas passadas?

E agora que lembrei do seu cheiro na hora do almoço
um perfume de mágoas passadas, que me trouxe água aos olhos
com mais sal do que saudade?

E agora que olhei para meu corpo e me senti à vontade
para andar pelas nuas curvas, à noite, e sentar nas ossadas frente a minha casa
aquela cujo endereço está sobre a pele?

E agora que eu sou justamente aquilo que, no passado, torci para ser,
com tanta vontade que quando me vejo, vejo-me no ontem, provando que ainda
sou capaz de me enxergar - mesmo de longe?

E agora que eu cresci, mas não deixei de escrever, de me esconder nas palavras,
de me revelar nas entrelinhas, só, e sempre só, deixando pontas soltas para você me encontrar?

E agora que estamos aqui, um diante do outro, sorrindo de leve, conversando a sós
voltando a reconhecer o cheiro de nós, cheio de nós, nesta falta que não nos permite fazer falta?

E agora?

É agora.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Beijo das serpentes

Antes mesmo de nascer, já haviam me condenado. Bom, pelo menos é o que ouvi dizer por aí. Estes lances de religião é tal, há um pecado natural em mim. Eu não tenho fé alguma, ainda mais quando diz que eu sou "condenado" só por existir. Como vou saber? Só sendo. Então eu fui.

(...)

A vida é uma eterna correria para lugar algum. Desdobro-me em 7 para conseguir criar uma rotina minimamente controlável. Não queria, mas precisou ser assim. Viver é um gasto sem fim, uma morte a cada amanhecer, uma queda a cada minuto - mil questionamentos, nenhuma resposta. Silêncio. Você reza para manter a (in)sanidade, veja só que incoerente. Pois é, prazer, vida.

Então, acabei me acostumando com esse caos. Trabalho - nunca fixo, relacionamentos - nunca fixos, - dinheiro - mais líquido impossível, eu - condenado. Prezo a todos estes pecados. Sim, trabalho é pecado porque te rouba o bem mais precioso: o tempo. Será que é tão precioso assim? Sei lá, deve ser, porque me falta (e, geralmente, o que falta é o que completa). Eu corro demais, só que não me lembro da última vez que olhei para os meus pés. Eu ainda tenho pés? Ué, sem eles, pra me locomover só se me dessem asas. Minha vó diria, "Deus não dá asas à cobra". Saudades, vó. Quanto tempo, minha preciosa.

Hoje eu chego em casa e, quando deito de cara pro teto, fico tentando remontar meu dia. Não consigo. Mas a tentativa é válida. Infelizmente, a maior parte das referências estão ligadas aos meus muitos empregos. Vejo formas, traços, cores, sombreados, linhas, tudo numa simetria irritante  que me salva as vistas. Não suporto nada assimétrico. Só a vida, porque vida a gente não escolhe, né? Bem, prefiro acreditar que não. O corpo cobra bem mais do que antes. Dores que vão desenhando novos mapas no meu mundi. Reviro na cama como a terra revirou durante o fim da pangeia, só que entre lençóis brancos e não oceânicos. Trocaria pangeia por panaceia - a deusa da cura. Sobrevivo à noite sem precisar de pesadelos, afinal. a realidade insone já me assusta o bastante. Meus pensamentos não calam e o coração reclama. Por quanto tempo mais? Não sei.

Agora estou de saída. Muita dor de garganta por causa do cigarro - meu melhor amigo multiplicado por vinte numa caixinha bonita que, quando lacrada, traz-me felicidade imensa. Um amigo meu recomendou maçã. Ele disse que ela limpa a garganta, os dentes, o estômago e ainda te deixa com cara de saudável. A maçã engana, diz ele: "por que você acha que ela é o tal fruto proibido? Maçã é conhecimento, é saber, é questionamento, é vontade de ir além do que foi dito como verdade, ela subverte o acomodado, excita o conformado e, no final das contas, finge ser apenas mais um fruto.". Ele escreve contos, então dá pra perceber o porquê de tanta viagem sobre uma simples fruta. Seja como for, comprei uma por 50 centavos na quitanda aqui perto. Ela é pequeno. A moça disse que o tamanho é verdadeiro, pois está sem fertilizantes. Não sei.

Há quanto tempo não saía. Não saía de mim, da minha rotina, dos meus ossos pesados e músculos cansados. Os olhos já não eram mais os mesmos - rebatiam a luz com uma timidez infantil. Onde já se viu uma criança fechar os olhos pra festa? Bem, eu preciso de mais alguns goles para comemorar a retomada do meu tempo. Precioso. Na pista, eu sentia tudo e todos, girava com os copos nas mãos e derramava bebida nos corpos em ação. O calor esquentava as pernas e gelava a barriga, eu estava no olho do furacão, rodando, entregando-me à natureza furiosa, destruindo-me aos poucos, caindo do pomar como uma folha verde - logo mais a secar. A garganta queimava, eu pagava pela língua, mas pagava com gosto. Chega de insipidez. Como era bom morrer - porque pra vida só a rotina servia. Morri sete vezes, troquei de pele, troquei de voz, troquei de eu, fui cobra, sem os pés - voei. Escorri pelos galhos feliz, conformado com minha incompatibilidade mundana e, já expulso do paraíso, lembrei que tinha uma maçã na bolsa. Sem mais nem menos, senti uma fome enorme. Não de comida, mas de saber.

É tão louco parar no meio do rolê para comer uma maçã. Eu não conseguia deixar de pensar no que o meu amigo disse. Acho que ele tinha algo de serpente também. Provavelmente a língua. Ou as ideias. E por que eu estava comendo escondido? Qual é minha culpa por querer uma maçã? Oras, o que há de errado em ser eu mesmo, atender aos meus desejos e ser feliz? Condenado eu sou desde que nasci, não é mesmo? Então pra que me segurar? Justo agora? Não. Não mesmo. Hoje eu amanheci durante a noite.

Abre-se o mar de gente, passa o falso messias, eu, maravilhoso, andando com passos milimetricamente calculados, flutuando, sem pés, a muitos pés de altura, a tantos outros aos meus não-pés, olho para aquelas pobres almas e mordo o fruto.

A eles, só resta viver com desejo.

Páginas pretas II

Falo sobre a falência do ser
quando falo comigo, falo sobre isso
Ecoo por entre os vácuos do corpo
como recado mal dado
daqueles que os outros aumentam
para esconder  insignificância
sinto ânsia sem ansiar
sinto gana de nada, quero
e quero para poder me distanciar
chego no intuito de dizer adeus, veja sou um segundo
pros terceiros abandonar
Olho na tua cara e não te vejo
quero te mostrar que neste vazio tu não farás moradia
Aqui, quem jaz sou eu

Quando, mais uma vez, as luzes se apagam
dentro de mim começa a aparecer toda a sujeira escura
que debaixo do tapete fez volume
montanhas e mais montanhas de restos
que não fui capaz de me desfazer
não fui capaz
Nem sala eu fiz, estava tudo lá, exposto
no meu rosto, na minha boca, no meu gosto
nigrosina para as visitas não voltarem mais
eu, introvertido? Não, incapaz

Há dois dias não tomava banho
não me olhava no espelho, não ouvia minha própria voz
confinado no quarto, morri e esqueci de me enterrar
a luz incomodava os olhos já sem brilho e nas trevas
pude cobrir a mim mesmo com o manto do não-ser
Recolhi-me, voltei a ser feto, protegido pela incerteza da vida
do nascimento, ali, contido, sem nome ainda, uma incógnita
longe, mas dentro de mim, carregando um frio sem pai, na barriga, por 28 anos
Eu não queria acordar e ter outra vida, não
eu queria acordar e ter a mesma vida que tenho
mas que ela fosse menos dura
ou, pelo menos, mais tragável
Que não fosse um parto
Porque eu parto

Quando era pequeno, lembro que pedi a todas as forças
que me fizessem um favor, eu implorei, sim
Pedi para que me tornassem invisível
eu não queria ser visto, pois minha imagem, meu jeito, eu
atraiam dor
Todas as noites, com a reza decorada, eu pedia, por favor
ouça meu clamor, senhor, faça-me sumir, não deixe que me percebam
quando mais um dia nascer, Samael descer, e iluminar a terra seca
Eu ainda quero ser seu filho, não faça eu me morrer, pinte-me da sua cor
transparente, invisível, que eu seja apenas nome, não homem
Por favor, senhor

Depois de perder a esperança no fundo da caixa de Pandora
Percebi, então, que alguém me ouviu na nuca do universo
na curva do infinito, ele, ela, eles, todos, tudo, alguém me ouviu
e me apagou de vez
Ninguém me vê, ninguém consegue me ver, coberto de poeira do passado
ancestral de mim mesmo, caminho por esta terra sendo vulto, um eterno vulgo
que quando se pronuncia, renuncia, não fala alto, jamais grita,
anda por aí, mas nunca por aqui e segue aquele velho ditado
Quem não é visto
Não é lembrado.



sexta-feira, 17 de junho de 2016

Quero falar com você, amigo [parte 1]



Diretamente com você, meu amigo. Meu amigo gay, meu amigo que já passou por tantos momentos difíceis desde que se entendeu por gente. Hoje, eu só quero falar com você.

Lembra de quando se sentiu rejeitado pela primeira vez e, ainda aos poucos anos de vida, sabia que não seria a última? Lembra, sim. E o quanto doeu, disso você também se lembra, certo? Certo. Era uma dor diferente de todas as outras que queimaram seus joelhos e cotovelos. Essa dor queimava por dentro, mas era como gelo seco. Um ardor. Tanta dor.

Você não tinha com quem conversar a respeito, porque notou que evitavam tocar no assunto se fosse para esclarecê-lo. As falas eram sempre pontuais e pontiagudas. Perfuravam o peito até chegar naquele pequeno receptáculo onde você escondia o que tinha de mais precioso. Lá, cada palavra escavava um pouco mais em direção a este tesouro escondido. Então, dia após dia, um pouco de si foi roubado.

Lembra de quando socorreu outro amigo seu, gay, depois da aula de Educação Física? Os outros meninos queriam bater nele - e em você - e ambos correram até sua rua. Lá, pegaram os carrinhos de rolemã e brincaram com segurança. Sua mãe fez um lanche para ambos e, na hora da despedida, ele lhe agradeceu por aquele momento. Devolveu uma joia roubada do seu tesouro. Nunca mais você o viu, e o esqueceu.

Lembra de quando ninguém olhava para você, gostava de você, queria você? Então, até o dia que uma garota maravilhosa conseguiu ver beleza em toda sua sensibilidade e silêncio. Ela era forte, muito forte, e um amor. De repente, o primeiro amor que te amou. E que você teve coragem de dar um beijo - no rosto. Ela também devolveu mais uma joia para o tesouro.

Meu amigo, meu querido amigo, como você cresceu rápido. Teve que correr da morte correndo na vida. Acelerou os ponteiros do relógio com as pontas dos dedos e queimou as folhas do calendário com as chamas nos olhos. Havia uma vontade inflamada de viver, de queimar energia, mas não podia. Concentrou a labareda na vela que residia solitário no âmago. Como foi difícil olhar para o mundo e não se ver nem encontrar um lugar para ser. Mas você sempre se teve, conversou tanto consigo mesmo. Isso ajudou muito, não? Sim, eu sei. Tudo por dentro, seguro do mundo, guardado no seu tesouro, entre outras relíquias. Solitude e solidão, juntas.

Rostos para os quais quis sorrir e não sorriu. Mãos as quais quis segurar e não segurou. Cartas que escreveu e não entregou. Beijos que desejou, mas nunca beijou. A realidade era sua cela e os sonhos lhe concediam alguma liberdade. Lá, podia viver sua própria vida, sem omissões, sem repressão. Optou pelas sombras quando o sol nascia. Escondido nos cantos, eu via você meu amigo, tentando não ser percebido, lutando para ser invisível. E conseguiu. Camuflou-se, tentou parecer com o todo e assim garantiu a sobrevivência da carne e a morte contínua de sua alma. A vela se apagara cedo demais.

Andou tanto pelo pelas ruas sem referência alguma. Vagando, apenas. Indo. Sua vida não era de verdade, eu sei, amigo. Sua vida não era sua. Só você era seu, no baú da própria existência, como recordação de momentos nunca presenciados. Passageiro. Mas então, a paixão, aquela primeira, nasceu.

Quantas vezes eu te ouvi chorar por dentro,, amigo, por pensar nele, no sorriso dele, no cheiro dele, no jeito dele, no carinho que ele tinha por você? Várias noites em escuro, debaixo das cobertas, abafando o soluço, embrutecendo o coração. Transformou bem-querer em mal-me-quer, não é? Foi assim que se defendeu do sofrimento. A raiva ao invés da mão dada. E como você gostou dele, hein? Controlar o amor foi um dos maiores desafios que enfrentou, mais até do que os xingamentos e agressões físicas; mais do que a rejeição do pai; mais do que o silêncio da mãe e a gritaria do irmão. Anos, não dias, anos sufocando o que tinha de melhor, com medo de oferecer a joia mais preciosa de seu tesouro e ela ser jogada no lixo. Ou vista como falsa. Calou a boca pra não deixar falar o coração. Amigo, meu querido, eu te entendo perfeitamente. Venha cá, deite a cabeça no meu colo. Vamos continuar...




sexta-feira, 22 de abril de 2016

Oãçaro

Cubra-me com teu manto de prata
Lua das graças
Meu corpo é teu recipiente
Misture treva à alma
Três vezes, três rostos, três desgraças
Oculto, no inverso, o universo
Do peito às ossadas

Penumbra, caminho das folhas secas
Cada passo uma nota dissonante
Barulho, ruído, algazarra
Tira a paz, dê cabo da tranquilidade
Rasga-me os ouvidos e perturbe minha calma
Venda-me os olhos, sela-me a alma

Dobro a maldição, controlo o maldizer
Curve-se a mim palavra ao contrário dita
que teu chamado inflama minha boca
fruto desta língua maldita
Cai em desuso tua esperança, praga de Pantoda
morta, ultrapassada, calada, idioma da farsa

Faz-se do ritual o costume, do costume
o desejo da dança pelo ar, da dança o gosto
dos corpos a flutuar
Arde a fogueira que navalha as carnes
Pro calor da perdição desenhar sob a flor
os rastros da pele, caminho da tentação.

E foram vilões para sempre



Era uma vez, um coração bom. Fim.

O que mais incomodava em mim era o olhar de desprezo, diziam os outros. Como não me vejo, não me desprezo nem me culpo. Finjo um sorriso qualquer para que não façam minha bebida esquentar com tanta explicação furada. Eu não me incomodo. Isso os incomodava.

Sempre ouvi que era uma criança ruim; um jovem ruim; uma pessoa ruim. Os motivos não variavam muito: frieza, rancor, crítica, tendência auto-destrutiva, silêncio, indiferença. Nenhum deles fazia sentido, pelo menos para mim. Digo isso porque eu apenas era. E gostava - ainda gosto - do meu jeito. Ruim sempre foi a capacidade das pessoas de compreender o outro. Mas, há um momento em que cansa ter que lidar com tantas opiniões inúteis sobre quem você é ou como você age. Então, imaginei como seria se eu aceitasse meu devir: nasci para ser vilão. Como eu reagiria se alguém, hoje, dissesse-me: "Você é ruim!"?

Como?

(...)

Meu amor, eu sou tão vazio. Sempre não estive onde não queria estar, mesmo estando. Olhava para o vácuo refletindo a mim mesmo - uma rachadura no espaço que levada a lugar algum. Podiam gritar, tocar meus braços, roubar minha bebida, eu não voltava para prestar atenção. Porque a insignificância alheia me desconecta. Eu julgo, subestimo, construo a pessoa a partir do piche, não do barro. Espero o pior dela sem me surpreender com a maçã mordida. Eu mordo o orgulho, provoco-o até que ele me tire de sintonia e então caio no esquecimento.

Seu rosto, seus gestos, tudo o que você faz não me interessa. Eu tenho a mim. Agora, aquilo que você não faz é que me desperta o desejo. Eu os quero. Mas sou tão vazio. Tão vazio que nunca tenho fim em mim. Fica esse túmulo, essa boca aberta, esse furo... Então, não se trata de você. Não me importo com você. Só com o que tem a me dar - enquanto puder me dar. E acredito que seja o mesmo aí do seu lado. Mentira, você não é tão vazio.

Conspiro, amaldiçoo, desejo o pior, desejo a morte, desejo o fim, desejo a distância, mas isso só quando não puder mais ser desejado. Sou árvore morta cuja casca coberta de musgo aparenta algum vigor. Sou oco. Tão vazio...

E eu aceito essa condição. Não adianta tentar me encher de culpa. Amigo, eu sou tão vazio que nada aqui consegue se acumular. Vaza, escorre. É assim que é - e que sou. Eu demorei tanto para ter essa conversa comigo. Autorreconciliação.

Estamos bem, eu e eu, sem você.

Praga nenhuma me afeta, nem mesmo seu maldizer. Sua mágoa? Alimenta-me por alguns dias. Sua raiva e indignação? Primárias. E o desprezo? A indiferença em seus olhos quando me vê pela rua? Espelho. Você fica bem mais interessante quando finge não ser o que é - no caso, finge ser eu. Sinto vontade de rir diante de tanta pequenez, contudo, não funciono assim. Prefiro olhar sem te ver, com um par de conchas ocas, sem as pérolas nos buracos dos olhos, sem brilho algum. Sem mais água salgada escorrendo. Sem mar.

Eu sou vilão, enfim. Nasci com coração e logo o perdi. Fui invocado desde o berço como desertor, torto, errado, vil etc. Lutei contra minha natureza cruel, achando que assim viveria melhor. E até vivi. Mas o melhor não é para mim. Pois sou tão vazio, meu querido, tão vazio que tudo cai em desuso no próximo segundo. Já é chato, ultrapassado e o pior: previsível. Eu posso ser previsível, pois sou vazio. E ainda assim, você me procura no fundo da gaveta. Lá estou eu.

Tão vazio.

(...)

E fui vilão para sempre.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Dois em um




Dor em um
Direita que chove
Esquerda que seca
Meio que sufoca
Apaga a vela
Pra noite acesa
Fingir que não provoca

E dói. Dói ser dois, ser rachado, não ser direita nem esquerda, ser caminho, ser o meio, ser nada, porque nem completo é. Não olha pros lados. Sempre em frente, olhando pro nada, afinal, nem direito é. Subindo pra cair da escada. Faz porque fazem. Tenta sê-los, só que volta só. E dói.

Parei aqui para pensar. Não consegui me mexer. Pesei. Fiquei. Pensei: eu sei sofrer, o que não sei é chorar. E dói. Parece que a angústia é a razão do meu suposto devir. Um destino traçado, comido, engolido, por traças. Casca de verme nem pra adubo serve. Eu sou inamável. E dói.

Perdi as contas de quantas noites perdi pedindo para ser perdido pelos olhos dos outros. Invisível.

Nunca te disse quantas vezes eu desisti de dizer e "di" ser eu mesmo com medo de ouvir que o que eu decidi ser era indizível.

Tentei explicar e fazer sentido mesmo sentido com tudo o que não aconteceu, tipo eu ser seu, tipo eu, Romeu, agora morto, tipo insensível.

Daí resgato umas memórias e penso no que poderia ter sido, quem eu poderia ter sem ter tido, mas eu fui quem tinha que não ter, quem devia ter sido, mesmo que em si,  insípido.

Ali, calado, ao lado direito esquerdo, doído e largado, no largo, deixei de ser, em alto e ruim som, e passei a ser passado. Para trás, superado como aquele eco inaudível.

Sumi da lembrança. Caí em desuso, como Deus mudo que a gente agradece em prece com pressa da resposta, aquela que nunca vem. Virei retrato na parede deles, um vulto, um rastro. Totalmente intocável.

E dói. Mesmo eu sendo invencível.

terça-feira, 8 de março de 2016

Elos



 Do suspiro de desespero ao de alívio. Do choro que não chorou, do corpo que não abraçou, ensanguentado. Um elo se estabelecia enquanto o cordão se rompia. Entre nós, o amor nascia. Do ventre, eu me tornei seu.

 Elo 1

Cheiro de café, cigarros e sabão. Lá do lato, eu via seu rosto sempre preocupado. Os lábios vermelhos, os cabelos presos de algum jeito caótico e o olhar distante - buscando algo que eu não era capaz de imaginar. Quando me observava, procurava algo a ser corrigido. Rígida, mas alerta, pronta para me proteger, nem que fosse de si mesma. Aprendi a caminhar pelo mundo ao seu lado, segundando na sua mão. Vi o horizonte do seu colo e me calei para admirar a infinitude. Nosso elo se fez assim, cotidianamente, entre broncas, choros, risos e muito carinho. Entre preocupações e revelações. Sempre com aquela tristeza profunda que nos é característica. Algo que confirma nosso elo. Sem ele, não haveria nós. Muito menos eu.

Elo 2

Eu adorava observar seus anéis e unhas perfeitas sobre a mesa. Adorava seu rosto sério, marcado pelo tempo e pelos sentimentos. Adorava ainda mais sua voz cujo timbre ressoava ancestralidade, sabedoria, raiva, dor, superação e orgulho. Inclusive, aprendi contigo o que era orgulho - e o quanto custa mantê-lo em nossas vidas. Cada passo seu, estalado pelos saltos que lhe davam o devido semblante de superioridade, guiava-me rumo à imagem que jamais esquecerei: a senhora negra de vestido florido, perfumada, cabelos curtos e grisalhos caminhando paralelamente à horta que com tanto empenho cultivou. A mãe das mães e dois pais. Minha matriarca, minha heroína, meu referencial de luta. Minha amazona. Meu elo contigo é atemporal, pois na minha lembrança você vive até hoje. Plena. Linda e plena.

Elo 3

A casa da frente parecia impermeável, assim como todos que nela viviam. Outra realidade, uma realidade que afastava o contato. Muros altos, carros na garagem, quintal florido, dois andares, paredes bonitas - revestidas com tinta de cor agradável - cão de raça. Tudo distanciava. Mas o olhar dela me aproximou. Apaixonei-me sem nem ao menos saber o que isso significava. O que sabia era da repentina nevasca no estômago, erupção facial e terremotos no peito. O que eu sabia é que a queria por perto, sempre. Sempre. Foram anos de um amor misturado à amizade e companheirismo. Sim, com bastante sofrimento também. Nada que não fosse de carne osso - de praxe, melhor dizendo. Quando ela me beijou pela primeira vez, pude experimentar o sabor de escolher e ser escolhido. Esperei muito por tal momento e valeu cada segundo - mesmo sem um segundo beijo. Os lábios selaram nosso elo.

Elo 4

As decepções amorosas fizeram com que nossos caminhos se cruzassem. Trocávamos confissões, bolávamos planos e gastávamos os dias tecendo as linhas de nossa própria utopia sentimental, na qual o futuro não era nada além da confirmação dos nossos desejos. Foi nos ombros dela que eu chorei as primeiras lágrimas - e vice-versa. Juntos, aprendemos a rir da desgraça e levantar um ao outro sempre que os joelhos desistissem de se manter firmes. Todos os dias eram nossos. A rua era nossa. Com ela eu podia me libertar um pouco mais: dançava, ria, trocava de roupa, olhava pro meu corpo sem vergonha de ser quem eu era, sentia que alguém me protegia, sentia que era útil. Parceiros no crime, acabamos como qualquer dupla de criminosos - separados pela vida. Nosso elo durou tempo o bastante para eu me recordar de você, hoje, e sentir o coração aquecer de leve. Um elo que não se rompeu. Apenas desapareceu nas areias do tempo. Obrigado, viu? Por me aliviar o sufoco de não poder ser.

Elo 5

Nos tempos de fúria, ela vinha armada com as melhores lanças e escudos. No meio da guerra, destacava-se pela agressividade. Mas comigo, era carinho e companheirismo. Tomamos muitos golpes. Sangrávamos juntos a cada recreio. Ainda assim, estávamos lá todos os dias, lutando. Ao lado dela, eu não me sentia culpado por ter tanto ódio e revidar na mesma moeda a agressão que sofria. No final do dia, éramos os dois a cuidar das cicatrizes um do outro. Se o seu sorriso me dessa a confirmação de que ela estava bem, apesar de tudo, então eu seguia tranquilo. Aprendi muito a lidar com a cólera que me consumia ao invés de consumir os meus inimigos. Este elo me deu muita força. Este elo salvou minha vida quando eu não sabia que tinha o direito de reivindicá-la.

Elo 6

Ela me encontrou enquanto eu passava por passar. Mentira. Na verdade, eu passava para ela me ver passar. E um dia, pensava eu: espero passarmos juntos. Aconteceu. Alguém decidiu me pegar pelas mãos e pelos sorrisos, mostrar-me o mundo do amor dividido, das tardes na calçada desenhando nuvens e imaginando nossa casa toda pixada, o filho Henrique e uma vida guiada pela música, literatura e arte. Sua maturidade pisciana me fez crescer séculos em segundos. E eu contava cada um deles pra ficar perto dela. Saía do trabalho e carregava comigo uma trufa com sabor de morango. Era assim que eu dizia a ela o quanto a amava. Foram meses de uma presença que regou a terra seca sobre minha pele. Floresceu, assim, o bem-querer. Um jardim cheio de cores e fragrâncias peculiares. Nele, colhíamos nosso elo.

Elo 7

Duas vivências guiadas pela insegurança quanto ao outro. Não confiar, não se doar, para, então, não se doer. Escrever sempre me ajudou a fechar as janelas do mundo e ouvir meus próprios pensamentos Uma fuga planejada. A importância estava no detalhe de que ninguém me lia além de mim. Até que um dia, alguém leu. Desentendimento, provocação, interesse, curiosidade, proximidade, horas ao telefone, dias para se encontrar, meses para se gostar - e assim nos gostamos. Ela era externamente intensa e internamente sensível. Puro paradoxo. Não tive como conter a paixão - que era fruto de uma admiração absurda. Eu via nela a projeção das minhas vontades - que eram essencialmente caóticas. Também ouvia dela palavras libertadoras. Talvez mal soubesse, mas estava tirando - aos poucos - a couraça sobre meu coração. Nestes anos de amizade, o elo tratou de renovar nossa capacidade de "ser" um no outro.

Elo 8

Existem linhas invisíveis que delimitam até onde uma pessoa pode chegar antes de invadir seu espaço. Caso aconteça de não respeitar os limites, as chances de que uma aversão profunda surja são grandes. Mas, há casos em que não são grandes o bastante para subjugar outro sentimento tão poderoso quanto: o carinho. Ela simplesmente cruzou a faixa, saltitante, e me envolveu num abraço tão forte e tão verdadeiro que, repentinamente, arrancou um sorriso há anos guardado no canto de minha boca. Invadir o campo desconhecido com um exército inteiro de boas intenções é algo admirável mesmo. Depois deste dia, os conflitos vieram como em qualquer embate para descobrir se a terra do outro é habitável. Não era, mas se tornou. Agora, habitamos juntos. Aprendi sobre bondade, sobre saber esperar e, mais do que isso, sobre: fazer a alma esperar. Ri, chorei, declarei-me indivíduo, sujeito sem mais se sujeitar, eu me refleti no seu semblante dourado... Este amor é que o ateia a bandeira de paz no eterno embate dentro de minha pessoa. Existem linhas invisíveis que precisam ser cruzadas para que se tornem estas linhas, agora empenhadas em (d)escrever nosso elo.

Elos que, no final das contas, são elas.



quarta-feira, 2 de março de 2016

Des

Deseje-me a cada adeus.

Detenha-me como se nunca mais fôssemos no ver novamente.

Desenhe-me nos seus pensamentos.

Destrua-me nas paredes de sua casa, nas cartas, no cheiro das roupas.

Descole-me da sua pele.

Desdenhe-me quando toparmos um com o outro.

Desaponte-me na frente do outros.

Desligue-me dos seus quereres.

Despeça-me dos seus planos.


Despida-me por dentro e encontre-se.


Descubra-me da cama na madrugada.

Desperte-me com seu soluço.

Desafie-me a lhe perdoar, mesmo doendo.

Devolva-me o amor capaz de superar o orgulho.

Desculpe-me pelo inverno que trouxe comigo.

Destranque-me do seu peito.

Desloque-me até o seu quarto.

Desfaça-me inteiro.


E nunca mais desista.

Nunca mais.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Cinzazul




Naqueles dias frios, minha armadura era um pijama gasto e meu castelo – onde reinava em silêncio – não passava das paredes gélidas de casa, cobertas por uma tinta sempre velha, sempre ranzinza. Observava a queda de temperatura como se fosse possível enxergar suas garras rabiscando o vidro da janela. Gostava tanto desses dias frios... Eu não precisava correr ou me esconder para ficar recolhido. Bastava estar.

Hoje, enquanto trabalho, penso no quão simples era a alegria de simplesmente inexistir para além do cômodo em que habitava. Minha mente era o suficiente, pois dentro dela os relógios rodavam num tempo totalmente diferente; as cores não oscilavam tanto – dançavam entre o azul e o cinza – e sempre havia uma voz na nuca das ideias, alguém para conversar. Alguém, eu. Bastava pensar.

Talvez ninguém conseguisse entender meu silêncio. Aquela criança quieta e tímida parecia frágil e medrosa... Aquela criança ali, que não brincava com outras crianças. Coitada dela. A mãe cobrava interatividade, o pai cobrava postura agressiva, o irmão cobrava atenção. Ninguém aceitava o que a criança tinha a oferecer: a chance de falarem menos e escutarem a si mesmos. Preciosa lição. Bastava calar.

Nos seus pensamentos, o pequeno garoto concebia mundos, destruía outros, enfrentava demônios, aliava-se a demônios, reestruturava a ordem, louvava o caos, invertia as leias da razão, voava sem asas, corria sem chão... A criança era ouvida no seu mundo. Respeitada exatamente como era, aquela criatura em constante ebulição caía no sono após se aventurar pelo universo do seu infinito particular. Não era difícil embarcar em tal viagem. Bastava imaginar.

Esta mesma criança cresceu e teve que se lançar ao mundo. Aprendeu diferentes camuflagens e hoje está aqui, comigo. Ela aparece em nesses dias frios para me dizer que não sumiu de vez. Eu fico feliz, pois sei que juntos somos um. Sei que não abri mão do meu silêncio, do frio, do azul e do cinza. Sei e sinto – que é melhor. Enquanto as guitarras conduzem minha atenção para estas linhas, resolvo olhar para o meu lado direito. Novamente, observava a queda de temperatura como se fosse possível enxergar suas garras rabiscando o vidro da janela. Bastava recordar.