sexta-feira, 17 de junho de 2016
Quero falar com você, amigo [parte 1]
Diretamente com você, meu amigo. Meu amigo gay, meu amigo que já passou por tantos momentos difíceis desde que se entendeu por gente. Hoje, eu só quero falar com você.
Lembra de quando se sentiu rejeitado pela primeira vez e, ainda aos poucos anos de vida, sabia que não seria a última? Lembra, sim. E o quanto doeu, disso você também se lembra, certo? Certo. Era uma dor diferente de todas as outras que queimaram seus joelhos e cotovelos. Essa dor queimava por dentro, mas era como gelo seco. Um ardor. Tanta dor.
Você não tinha com quem conversar a respeito, porque notou que evitavam tocar no assunto se fosse para esclarecê-lo. As falas eram sempre pontuais e pontiagudas. Perfuravam o peito até chegar naquele pequeno receptáculo onde você escondia o que tinha de mais precioso. Lá, cada palavra escavava um pouco mais em direção a este tesouro escondido. Então, dia após dia, um pouco de si foi roubado.
Lembra de quando socorreu outro amigo seu, gay, depois da aula de Educação Física? Os outros meninos queriam bater nele - e em você - e ambos correram até sua rua. Lá, pegaram os carrinhos de rolemã e brincaram com segurança. Sua mãe fez um lanche para ambos e, na hora da despedida, ele lhe agradeceu por aquele momento. Devolveu uma joia roubada do seu tesouro. Nunca mais você o viu, e o esqueceu.
Lembra de quando ninguém olhava para você, gostava de você, queria você? Então, até o dia que uma garota maravilhosa conseguiu ver beleza em toda sua sensibilidade e silêncio. Ela era forte, muito forte, e um amor. De repente, o primeiro amor que te amou. E que você teve coragem de dar um beijo - no rosto. Ela também devolveu mais uma joia para o tesouro.
Meu amigo, meu querido amigo, como você cresceu rápido. Teve que correr da morte correndo na vida. Acelerou os ponteiros do relógio com as pontas dos dedos e queimou as folhas do calendário com as chamas nos olhos. Havia uma vontade inflamada de viver, de queimar energia, mas não podia. Concentrou a labareda na vela que residia solitário no âmago. Como foi difícil olhar para o mundo e não se ver nem encontrar um lugar para ser. Mas você sempre se teve, conversou tanto consigo mesmo. Isso ajudou muito, não? Sim, eu sei. Tudo por dentro, seguro do mundo, guardado no seu tesouro, entre outras relíquias. Solitude e solidão, juntas.
Rostos para os quais quis sorrir e não sorriu. Mãos as quais quis segurar e não segurou. Cartas que escreveu e não entregou. Beijos que desejou, mas nunca beijou. A realidade era sua cela e os sonhos lhe concediam alguma liberdade. Lá, podia viver sua própria vida, sem omissões, sem repressão. Optou pelas sombras quando o sol nascia. Escondido nos cantos, eu via você meu amigo, tentando não ser percebido, lutando para ser invisível. E conseguiu. Camuflou-se, tentou parecer com o todo e assim garantiu a sobrevivência da carne e a morte contínua de sua alma. A vela se apagara cedo demais.
Andou tanto pelo pelas ruas sem referência alguma. Vagando, apenas. Indo. Sua vida não era de verdade, eu sei, amigo. Sua vida não era sua. Só você era seu, no baú da própria existência, como recordação de momentos nunca presenciados. Passageiro. Mas então, a paixão, aquela primeira, nasceu.
Quantas vezes eu te ouvi chorar por dentro,, amigo, por pensar nele, no sorriso dele, no cheiro dele, no jeito dele, no carinho que ele tinha por você? Várias noites em escuro, debaixo das cobertas, abafando o soluço, embrutecendo o coração. Transformou bem-querer em mal-me-quer, não é? Foi assim que se defendeu do sofrimento. A raiva ao invés da mão dada. E como você gostou dele, hein? Controlar o amor foi um dos maiores desafios que enfrentou, mais até do que os xingamentos e agressões físicas; mais do que a rejeição do pai; mais do que o silêncio da mãe e a gritaria do irmão. Anos, não dias, anos sufocando o que tinha de melhor, com medo de oferecer a joia mais preciosa de seu tesouro e ela ser jogada no lixo. Ou vista como falsa. Calou a boca pra não deixar falar o coração. Amigo, meu querido, eu te entendo perfeitamente. Venha cá, deite a cabeça no meu colo. Vamos continuar...
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