segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Cinzazul




Naqueles dias frios, minha armadura era um pijama gasto e meu castelo – onde reinava em silêncio – não passava das paredes gélidas de casa, cobertas por uma tinta sempre velha, sempre ranzinza. Observava a queda de temperatura como se fosse possível enxergar suas garras rabiscando o vidro da janela. Gostava tanto desses dias frios... Eu não precisava correr ou me esconder para ficar recolhido. Bastava estar.

Hoje, enquanto trabalho, penso no quão simples era a alegria de simplesmente inexistir para além do cômodo em que habitava. Minha mente era o suficiente, pois dentro dela os relógios rodavam num tempo totalmente diferente; as cores não oscilavam tanto – dançavam entre o azul e o cinza – e sempre havia uma voz na nuca das ideias, alguém para conversar. Alguém, eu. Bastava pensar.

Talvez ninguém conseguisse entender meu silêncio. Aquela criança quieta e tímida parecia frágil e medrosa... Aquela criança ali, que não brincava com outras crianças. Coitada dela. A mãe cobrava interatividade, o pai cobrava postura agressiva, o irmão cobrava atenção. Ninguém aceitava o que a criança tinha a oferecer: a chance de falarem menos e escutarem a si mesmos. Preciosa lição. Bastava calar.

Nos seus pensamentos, o pequeno garoto concebia mundos, destruía outros, enfrentava demônios, aliava-se a demônios, reestruturava a ordem, louvava o caos, invertia as leias da razão, voava sem asas, corria sem chão... A criança era ouvida no seu mundo. Respeitada exatamente como era, aquela criatura em constante ebulição caía no sono após se aventurar pelo universo do seu infinito particular. Não era difícil embarcar em tal viagem. Bastava imaginar.

Esta mesma criança cresceu e teve que se lançar ao mundo. Aprendeu diferentes camuflagens e hoje está aqui, comigo. Ela aparece em nesses dias frios para me dizer que não sumiu de vez. Eu fico feliz, pois sei que juntos somos um. Sei que não abri mão do meu silêncio, do frio, do azul e do cinza. Sei e sinto – que é melhor. Enquanto as guitarras conduzem minha atenção para estas linhas, resolvo olhar para o meu lado direito. Novamente, observava a queda de temperatura como se fosse possível enxergar suas garras rabiscando o vidro da janela. Bastava recordar.

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