terça-feira, 8 de março de 2016
Elos
Do suspiro de desespero ao de alívio. Do choro que não chorou, do corpo que não abraçou, ensanguentado. Um elo se estabelecia enquanto o cordão se rompia. Entre nós, o amor nascia. Do ventre, eu me tornei seu.
Elo 1
Cheiro de café, cigarros e sabão. Lá do lato, eu via seu rosto sempre preocupado. Os lábios vermelhos, os cabelos presos de algum jeito caótico e o olhar distante - buscando algo que eu não era capaz de imaginar. Quando me observava, procurava algo a ser corrigido. Rígida, mas alerta, pronta para me proteger, nem que fosse de si mesma. Aprendi a caminhar pelo mundo ao seu lado, segundando na sua mão. Vi o horizonte do seu colo e me calei para admirar a infinitude. Nosso elo se fez assim, cotidianamente, entre broncas, choros, risos e muito carinho. Entre preocupações e revelações. Sempre com aquela tristeza profunda que nos é característica. Algo que confirma nosso elo. Sem ele, não haveria nós. Muito menos eu.
Elo 2
Eu adorava observar seus anéis e unhas perfeitas sobre a mesa. Adorava seu rosto sério, marcado pelo tempo e pelos sentimentos. Adorava ainda mais sua voz cujo timbre ressoava ancestralidade, sabedoria, raiva, dor, superação e orgulho. Inclusive, aprendi contigo o que era orgulho - e o quanto custa mantê-lo em nossas vidas. Cada passo seu, estalado pelos saltos que lhe davam o devido semblante de superioridade, guiava-me rumo à imagem que jamais esquecerei: a senhora negra de vestido florido, perfumada, cabelos curtos e grisalhos caminhando paralelamente à horta que com tanto empenho cultivou. A mãe das mães e dois pais. Minha matriarca, minha heroína, meu referencial de luta. Minha amazona. Meu elo contigo é atemporal, pois na minha lembrança você vive até hoje. Plena. Linda e plena.
Elo 3
A casa da frente parecia impermeável, assim como todos que nela viviam. Outra realidade, uma realidade que afastava o contato. Muros altos, carros na garagem, quintal florido, dois andares, paredes bonitas - revestidas com tinta de cor agradável - cão de raça. Tudo distanciava. Mas o olhar dela me aproximou. Apaixonei-me sem nem ao menos saber o que isso significava. O que sabia era da repentina nevasca no estômago, erupção facial e terremotos no peito. O que eu sabia é que a queria por perto, sempre. Sempre. Foram anos de um amor misturado à amizade e companheirismo. Sim, com bastante sofrimento também. Nada que não fosse de carne osso - de praxe, melhor dizendo. Quando ela me beijou pela primeira vez, pude experimentar o sabor de escolher e ser escolhido. Esperei muito por tal momento e valeu cada segundo - mesmo sem um segundo beijo. Os lábios selaram nosso elo.
Elo 4
As decepções amorosas fizeram com que nossos caminhos se cruzassem. Trocávamos confissões, bolávamos planos e gastávamos os dias tecendo as linhas de nossa própria utopia sentimental, na qual o futuro não era nada além da confirmação dos nossos desejos. Foi nos ombros dela que eu chorei as primeiras lágrimas - e vice-versa. Juntos, aprendemos a rir da desgraça e levantar um ao outro sempre que os joelhos desistissem de se manter firmes. Todos os dias eram nossos. A rua era nossa. Com ela eu podia me libertar um pouco mais: dançava, ria, trocava de roupa, olhava pro meu corpo sem vergonha de ser quem eu era, sentia que alguém me protegia, sentia que era útil. Parceiros no crime, acabamos como qualquer dupla de criminosos - separados pela vida. Nosso elo durou tempo o bastante para eu me recordar de você, hoje, e sentir o coração aquecer de leve. Um elo que não se rompeu. Apenas desapareceu nas areias do tempo. Obrigado, viu? Por me aliviar o sufoco de não poder ser.
Elo 5
Nos tempos de fúria, ela vinha armada com as melhores lanças e escudos. No meio da guerra, destacava-se pela agressividade. Mas comigo, era carinho e companheirismo. Tomamos muitos golpes. Sangrávamos juntos a cada recreio. Ainda assim, estávamos lá todos os dias, lutando. Ao lado dela, eu não me sentia culpado por ter tanto ódio e revidar na mesma moeda a agressão que sofria. No final do dia, éramos os dois a cuidar das cicatrizes um do outro. Se o seu sorriso me dessa a confirmação de que ela estava bem, apesar de tudo, então eu seguia tranquilo. Aprendi muito a lidar com a cólera que me consumia ao invés de consumir os meus inimigos. Este elo me deu muita força. Este elo salvou minha vida quando eu não sabia que tinha o direito de reivindicá-la.
Elo 6
Ela me encontrou enquanto eu passava por passar. Mentira. Na verdade, eu passava para ela me ver passar. E um dia, pensava eu: espero passarmos juntos. Aconteceu. Alguém decidiu me pegar pelas mãos e pelos sorrisos, mostrar-me o mundo do amor dividido, das tardes na calçada desenhando nuvens e imaginando nossa casa toda pixada, o filho Henrique e uma vida guiada pela música, literatura e arte. Sua maturidade pisciana me fez crescer séculos em segundos. E eu contava cada um deles pra ficar perto dela. Saía do trabalho e carregava comigo uma trufa com sabor de morango. Era assim que eu dizia a ela o quanto a amava. Foram meses de uma presença que regou a terra seca sobre minha pele. Floresceu, assim, o bem-querer. Um jardim cheio de cores e fragrâncias peculiares. Nele, colhíamos nosso elo.
Elo 7
Duas vivências guiadas pela insegurança quanto ao outro. Não confiar, não se doar, para, então, não se doer. Escrever sempre me ajudou a fechar as janelas do mundo e ouvir meus próprios pensamentos Uma fuga planejada. A importância estava no detalhe de que ninguém me lia além de mim. Até que um dia, alguém leu. Desentendimento, provocação, interesse, curiosidade, proximidade, horas ao telefone, dias para se encontrar, meses para se gostar - e assim nos gostamos. Ela era externamente intensa e internamente sensível. Puro paradoxo. Não tive como conter a paixão - que era fruto de uma admiração absurda. Eu via nela a projeção das minhas vontades - que eram essencialmente caóticas. Também ouvia dela palavras libertadoras. Talvez mal soubesse, mas estava tirando - aos poucos - a couraça sobre meu coração. Nestes anos de amizade, o elo tratou de renovar nossa capacidade de "ser" um no outro.
Elo 8
Existem linhas invisíveis que delimitam até onde uma pessoa pode chegar antes de invadir seu espaço. Caso aconteça de não respeitar os limites, as chances de que uma aversão profunda surja são grandes. Mas, há casos em que não são grandes o bastante para subjugar outro sentimento tão poderoso quanto: o carinho. Ela simplesmente cruzou a faixa, saltitante, e me envolveu num abraço tão forte e tão verdadeiro que, repentinamente, arrancou um sorriso há anos guardado no canto de minha boca. Invadir o campo desconhecido com um exército inteiro de boas intenções é algo admirável mesmo. Depois deste dia, os conflitos vieram como em qualquer embate para descobrir se a terra do outro é habitável. Não era, mas se tornou. Agora, habitamos juntos. Aprendi sobre bondade, sobre saber esperar e, mais do que isso, sobre: fazer a alma esperar. Ri, chorei, declarei-me indivíduo, sujeito sem mais se sujeitar, eu me refleti no seu semblante dourado... Este amor é que o ateia a bandeira de paz no eterno embate dentro de minha pessoa. Existem linhas invisíveis que precisam ser cruzadas para que se tornem estas linhas, agora empenhadas em (d)escrever nosso elo.
Elos que, no final das contas, são elas.
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